(RMAP:228-230)
Cada aspecto da vida (do “viver” no sentido intransitivo) não é necessariamente um aspecto da experiência vivida (Erleben, “viver” no sentido transitivo). A digestão, por exemplo, não é uma experiência vivida, desde que ocorra sem desconforto ou prazer. Toda a vida não é necessariamente vivida, todo o Leben não é necessariamente Erleben. Em certo sentido, apenas a experiência vivida é também experiência de si. Mas nem toda experiência é qualificada como “vivida” em nossa língua.
[229] De fato, a linguagem dessas meditações herdou da psicologia o termo “vivência” (Erlebnis), que, como termo técnico, tem uma extensão muito ampla, diferente daquela que possui na linguagem comum. Uma percepção que se tem, uma fantasia, uma lembrança que se guarda, uma hipótese que se mantém, um julgamento que se faz, uma inferência que se realiza, todos são “vivências” de acordo com essa terminologia — que também utilizamos aqui e ali. Segundo esse uso, o termo “vivência” é praticamente sinônimo da palavra “cogitação” em Descartes. Mas a linguagem comum geralmente não concorda com isso, em ambos os casos. De um pensamento, não dizemos que é uma vivência. De um sentimento, sim. De uma emoção, também. De uma paixão, sem dúvida. De uma dor ou prazer físico, igualmente. De uma percepção visual ou auditiva, não (talvez “vivamos” visões, mas não vistas). De uma inferência lógica, menos ainda.Além disso, na linguagem comum, pode-se até falar de “vivências” referindo-se às coisas que são experimentadas, em vez de às experiências: um evento do mundo natural ou social pode ser uma “vivência”, como uma enchente ou uma guerra. Mas podemos atribuir ao termo esse significado no caso de eventos que “tocam” ou “afetam” pessoalmente aqueles que os vivenciam. Não se diz de uma reunião de condôminos ou de uma assembleia de pais de alunos que ela “se vive”, a menos que se seja um sessentista tardio. Mas, finalmente, como a própria linguagem comum admite, é melhor reservar o termo “vivência” para a experiência que se faz, em vez de para a coisa que é experimentada; assim, apenas as experiências que envolvem afetividade serão normalmente qualificadas como experiências “vividas”. Há vivências mais ou menos dolorosas, mas não há vivências mais ou menos inteligentes.
[230] Por que isso acontece? Haveria uma ligação privilegiada entre a afetividade e a subjetividade? E qual seria? 1Se admitirmos o que a linguagem sugere, podemos identificar as vivências no sentido próprio ou estrito com as experiências que também são experiências de si. Pois nem toda experiência é necessariamente uma experiência de si.
- Entre os pensadores franceses, é sem dúvida Michel Henry quem explorou mais profundamente essa mesma ideia. Mas seu pensamento parece demonstrar uma hostilidade ao lado “visível” do universo, ao seu lado “fenomenal”, o que parece difícil de conciliar com o significado um tanto restrito que damos à palavra “fenomenologia”.[
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