A inclinação para tomar a concatenação entre matéria e forma como sendo a constituição de todos os entes recebe ainda, porém, um impulso particular pelo facto de o todo do ente, com base numa crença – que é a bíblica – , ser de antemão representado como criado, isto é, aqui, como confeiçoado. É certo que a filosofia desta crença pode assegurar que todo o agir criador de Deus deve ser representado de um outro modo que não o do fazer de um artesão. Contudo, quando, ao mesmo tempo ou mesmo de antemão, o ens creatum é pensado, de acordo com a crença numa pré-determinação da filosofia tomista para a interpretação da Bíblia, a partir da unidade de matéria e forma, então a fé é interpretada a partir de uma filosofia cuja verdade assenta num NÃO-ESTAR-ENCOBERTO [Unverborgenheit] do ente que é de um outro gênero do do mundo em que, na fé, se acredita. [tr. Borges-Duarte et alii; GA5: A ORIGEM DA OBRA DE ARTE]
O que é que acontece aqui? O que é que, na obra, está em obra? A pintura de van Gogh é a patenteação originária [Eröffnung] daquilo que o utensílio, o par de sapatos de camponês, é em verdade. Este ente sai [heraustritt] para o NÃO-ESTAR-ENCOBERTO do seu ser. Os gregos chamavam ao NÃO-ESTAR-ENCOBERTO do ente aletheia. Nós dizemos ‘verdade’ mas pensamos muito pouco ao ouvir esta palavra. Na obra – caso nela aconteça uma patenteação originária do ente naquilo que ele é e como é – , está em obra um acontecer da verdade. [tr. Borges-Duarte et alii; GA5: A ORIGEM DA OBRA DE ARTE]
‘Verdade’ quer dizer a essência do verdadeiro. Pensamo-la a partir da recordação da palavra dos gregos. aletheia significa o NÃO-ESTAR-ENCOBERTO do ente, Mas será isso já a determinação da essência da verdade? Não será que estamos a fazer passar a mera alteração da palavra usada – NÃO-ESTAR-ENCOBERTO em lugar de verdade – por uma caracterização daquilo que está em causa? Enquanto não experimentarmos aquilo que dever ter acontecido para que se torne necessário referir a essência da verdade pela palavra ‘NÃO-ESTAR-ENCOBERTO’, continuará certamente a tratar-se de uma troca de nome. [tr. Borges-Duarte et alii; GA5: A ORIGEM DA OBRA DE ARTE]
Será necessário, para isso, que se faça a renovação da filosofia grega? De modo nenhum. Uma renovação – mesmo que fosse possível isso que é impossível – não nos ajudaria em nada, pois a história encoberta da filosofia grega consiste, desde o início, no facto de não permanecer conforme à essência da verdade que brilha na palavra aletheia, e no facto de o seu saber e o seu falar acerca da essência da verdade se ter de desviar mais e mais para a discussão de uma essência derivada da verdade. A essência da verdade como aletheia permanece impensada no pensar dos gregos e, com maior razão, na filosofia ulterior. O NÃO-ESTAR-ENCOBERTO é para o pensamento o que de mais encoberto há no aí-ser [Dasein] grego, mas, ao mesmo tempo, é aquilo que determina, desde cedo, todo o estar-presente daquilo que está presente. [tr. Borges-Duarte et alii; GA5: A ORIGEM DA OBRA DE ARTE]
Todavia, porque é que não nos contentamos com a essência da verdade que, entretanto, se tornou familiar para nós desde há séculos? ‘Verdade’ significa hoje – e desde há muito – a conveniência do conhecimento com aquilo de que se trata. Porém, para que o conhecer e a proposição que o formula e que o exprime se possa adaptar àquilo de que se trata, para que, por conseguinte, isso possa ser vinculativo para a proposição, para tal é preciso, então, que aquilo que está em jogo se manifeste ele mesmo enquanto tal. Como é que é suposto que se manifeste, se ele próprio não pode sair do estar-encoberto, se não está ele mesmo posto no não-encoberto? A proposição é verdadeira na medida em que se rege por [sich nach… richtet] aquilo que está não-encoberto, i. e. pelo verdadeiro. A verdade da proposição é sempre apenas, em cada caso, esta correcção [Richtigkeit]. Os conceitos críticos de verdade, que, desde Descartes, partem da verdade [entendida como] certeza, são apenas variações da definição de verdade como correcção. Esta essência da verdade que nos é familiar – a correcção do representar – é posta e desaparece com a verdade como NÃO-ESTAR-ENCOBERTO do ente. [tr. Borges-Duarte et alii; GA5: A ORIGEM DA OBRA DE ARTE]
Quando apreendemos, aqui e noutros casos, a verdade como NÃO-ESTAR-ENCOBERTO, não acontece que nos refugiemos apenas numa tradução mais literal de uma palavra grega. Recordamo-nos daquilo que, como não-experimentado e impensado, subjaz à essência da verdade que nos é familiar e que, por isso, cai em usura – a essência da verdade no sentido da correcção. Consentimos, por vezes, na admissão de que, para provarmos e concebermos a correcção (a verdade) de uma proposição, teríamos, naturalmente, de retroceder até algo já manifesto. Não nos podemos, de facto, esquivar a esta pressuposição. Enquanto falarmos e pensarmos assim, compreenderemos sempre a verdade apenas como correcção, a qual, certamente, requer ainda uma pressuposição, que nós próprios – o Céu saberá como e porquê – fazemos. [tr. Borges-Duarte et alii; GA5: A ORIGEM DA OBRA DE ARTE]
Porém, não somos nós quem pressupõe o NÃO-ESTAR-ENCOBERTO, mas é o NÃO-ESTAR-ENCOBERTO do ente (o sera) que nos transfere para um estar-a-ser tal que, no nosso representar, permanecemos sempre inseridos no NÃO-ESTAR-ENCOBERTO e postos a jusante dele. Não é apenas aquilo pelo qual se rege um conhecimento que tem de estar já de algum modo não-encoberto, mas também o âmbito total em que se move este “reger-se por algo”, e, do mesmo modo, aquilo para o qual se torna manifesta uma adaptação da proposição à coisa tem, como totalidade, já de se dar no não-encoberto. Com todas as nossas representações correctas, não seriamos nada, nem poderíamos sequer pressupor que algo estivesse já manifesto por que nos [pudéssemos] reger, se o NÃO-ESTAR-ENCOBERTO do ente não nos tivesse já exposto àquele [meio] clareado no qual todo o ente está, para nós, introduzido e do qual se retrai. [tr. Borges-Duarte et alii; GA5: A ORIGEM DA OBRA DE ARTE]
Mas como é que isso se passa? Como é que a verdade acontece como NÃO-ESTAR-ENCOBERTO? Há, porém, que dizer antes mais claramente o que é este NÃO-ESTAR-ENCOBERTO ele mesmo. [tr. Borges-Duarte et alii; GA5: A ORIGEM DA OBRA DE ARTE]
O encobrimento pode ser um recusar-se [Versagen] ou um dissimular. Nunca temos, de modo terminante, a certeza de se tratar de um ou do outro [caso]. O encobrir encobre-se e dissimula-se a si mesmo. Isso significa que o lugar aberto no meio do ente – a clareira – não é nunca um palco fixo com o pano constantemente levantado, no qual se passa [abspielt sich] a representação [Spiel] do ente. Antes, porém, a clareira acontece apenas ao modo deste duplo encobrir. O NÃO-ESTAR-ENCOBERTO do ente não é nunca um estado de coisas apenas aí perante, mas um acontecimento. O NÃO-ESTAR-ENCOBERTO (a verdade) não é nem uma propriedade daquilo que está, de cada vez, em causa, [tomado] no sentido do ente, nem uma propriedade das proposições. [tr. Borges-Duarte et alii; GA5: A ORIGEM DA OBRA DE ARTE]
Rodeados pelo ente que imediatamente nos envolve, julgamo-nos ‘em casa’. O ente é-nos familiar, é fiável, protector [geheuer]. Apesar disso, um encobrir constante, na dupla figura do recusar-se e do dissimular, atravessa a clareira. Aquilo que é protector não é, no fundo, protector, é ameaçador [un-geheuer]. A essência da verdade, i. e. o NÃO-ESTAR-ENCOBERTO, está transida por uma escusa [Verweigerung]. Este escusar-se, no entanto, não é uma falta ou um defeito, como se a verdade fosse um puro NÃO-ESTAR-ENCOBERTO que se tivesse livrado de todo o encoberto. Se o pudesse fazer, já não seria aquilo que em si mesma é. Este escusar-se, ao modo do duplo encobrir-se, é inerente à essência da verdade como NÃO-ESTAR-ENCOBERTO. A verdade é, na sua essência, não-verdade. Há que dizê-lo assim para indicar, de um modo acutilante e que talvez cause perplexidade, que o escusar-se, ao modo do encobrir-se, pertence ao NÃO-ESTAR-ENCOBERTO como clareira. Pelo contrário, a proposição ‘A essência da verdade é a não-verdade’ não deve ser interpretada como querendo dizer que a verdade é, no fundo, falsidade. Tão pouco significa tal proposição que a verdade nunca é ela mesma, mas que, representada dialecticamente, seja sempre também o seu contrário. [tr. Borges-Duarte et alii; GA5: A ORIGEM DA OBRA DE ARTE]
A terra só irrompe pelo mundo, o mundo só se funda na terra na medida em que a verdade acontece como combate originário de clareira e encobrimento. Mas como é que a verdade acontece? Respondemosb: acontece de uns poucos modos essenciais. Um destes modos como a verdade acontece é o ser-obra da obra. A obra, levantando um mundo e elaborando a terra, é a contenda deste combate, no qual se conquista o NÃO-ESTAR-ENCOBERTO do ente no seu todo – a verdade. [tr. Borges-Duarte et alii; GA5: A ORIGEM DA OBRA DE ARTE]
A verdade acontece no estar aí de pé do templo. Isso não quer dizer que aqui algo seja apresentado correctamente e restituído, mas antes que o ente no seu todo é trazido ao NÃO-ESTAR-ENCOBERTO e mantido nele. ‘Manter’ significa originariamente ‘velar por’. A verdade acontece na pintura de van Gogh. Isso não quer dizer que algo perante seja aqui retratado correctamente, mas que, no tornar-se manifesto do ser-utensílio do calçado, o ente no seu todo, o mundo e a terra no seu contraste, chegam ao NÃO-ESTAR-ENCOBERTO. [tr. Borges-Duarte et alii; GA5: A ORIGEM DA OBRA DE ARTE]
A verdade está em obra na obra – portanto, não [está aí em obra] apenas algo de verdadeiro. O quadro que mostra os sapatos de camponês, o poema que diz a fonte romana, não dão apenas a conhecer o que é este ente singuiar enquanto tal (se é que dão alguma vez algo a conhecer…), antes deixam acontecer o NÃO-ESTAR-ENCOBERTO enquanto tal, relativamente ao ente no seu todo. Quanto mais simplesmente e de modo mais essencial surgir no seu estar-a-ser apenas o calçado, quanto menos ornamentada e mais pura surgir no seu estar-a-ser apenas a fonte, tanto mais imediatamente e de forma mais envolvente todo o ente se torna com eles mais ente. O ser que se encobre é, desta maneira, clareado. A luz assim configurada proporciona o seu brilhar [(a)parecer – Scheinen] na obra. O brilhar proporcionado na obra é o belo. A beleza é o modo como a verdade enquanto NÃO-ESTAR-ENCOBERTO está a ser. [tr. Borges-Duarte et alii; GA5: A ORIGEM DA OBRA DE ARTE]
Aqui, o criar é sempre pensado em referência à obra. O acontecer da verdade faz parte da essência da obra. Determinamos de antemão a essência do criar a partir da sua relação com a essência da verdade enquanto NÃO-ESTAR-ENCOBERTO do ente. A pertença do ser-criado à obra só pode ser posta à luz a partir de um esclarecimento ainda mais originário da essência da verdade. Volta a pôr-se a pergunta pela verdade e sua essência. [tr. Borges-Duarte et alii; GA5: A ORIGEM DA OBRA DE ARTE]
A palavra techne indica antes um modo do saber. Saber significa: ter visto, no sentido lato de ‘ver’, que significa: perceber aquilo que está presente enquanto tal. A essência do saber, para o pensar grego, assenta sobre a aletheia, quer dizer, sobre o desencobrimento [Entbergung] do ente. Sustenta e conduz todo o comportamento relativamente ao ente. A techne, enquanto saber apreendido de modo grego, é, nessa medida, um produzir do ente, enquanto traz aquilo que está presente enquanto tal para fora do estar-encoberto precisamente para o NÃO-ESTAR-ENCOBERTO do seu aspecto, [pondo-o] diante [vor (+bringen)]; techne não significa nunca a execução de um fazer. [tr. Borges-Duarte et alii; GA5: A ORIGEM DA OBRA DE ARTE]
A verdade é não-verdade, na medida em que faz parte dela o âmbito da proveniência do ainda-não (do não-) desencoberto, no sentido do encobrimento. No NÃO-ESTAR-ENCOBERTO como verdade está ao mesmo tempo a ser o outro “não” de um duplo vedar [Verwehren]. A verdade enquanto tal está a ser no confronto entre a clareira e o duplo encobrimento. A verdade é o combate original no qual é de cada vez conquistado, de um dado modo, o aberto no qual se introduz e do qual se reserva tudo aquilo que se mostra e se subtrai como ente. Quando e como quer que rebente e aconteça este combate, os combatentes, a clareira e o encobrimento, separam-se, por meio dele, um do outro. É assim que se conquista o aberto do espaço de combate. A abertura deste aberto, i. e. a verdade, só pode ser aquilo que é, a saber, esta abertura, quando e enquanto se estabelece a si mesma no seu aberto. É por isso que tem de haver, de cada vez, neste aberto um ente no qual a abertura recebe a sua posição [Stand] e a sua permanência [Ständigkeit]. Como a abertura ocupa o aberto, mantém-no aberto e sustenta-o. Pôr [Setzen] e ocupar [Besetzen] são aqui sempre pensados a partir do sentido grego de thesis, que quer dizer um levantar no não-encoberto. [tr. Borges-Duarte et alii; GA5: A ORIGEM DA OBRA DE ARTE]
Com a referência ao estabelecer-se da abertura no aberto, o pensar toca num domínio circunscrito que ainda não pode ser aqui exposto. Note-se apenas isto: se o estar-a-ser do NÃO-ESTAR-ENCOBERTO do ente pertence de algum modo ao próprio ser (cf. Sein und Zeit [Ser e tempo] § 44), este permite, a partir do seu estar-a-ser, que a margem consentida pela abertura (a clareira do aí [das Lichtung des Da]) – onde cada ente irrompe a seu modo – aconteça e proporciona-a enquanto tal. [tr. Borges-Duarte et alii; GA5: A ORIGEM DA OBRA DE ARTE]
O estabelecimento da verdade na obra é o produzir de um ente que antes ainda não era e que, posteriormente, nunca mais virá ao ser. A produção [Hetvorbringung] coloca este ente no aberto de tal forma que só aquilo que há a trazer [à presença] clareia a abertura do aberto, no qual surge diante. Ai onde a produção trouxer expressamente [consigo] a abertura do ente – a verdade o produzido é uma obra [de arte]. Tal produzir é criar. Enquanto trazer, é mais um receber e um tomar no interior da conexão com o NÃO-ESTAR-ENCOBERTO. Mas então, em que é que consiste o ser-criado? Vamos esclarecê-lo mediante duas determinações essenciais. [tr. Borges-Duarte et alii; GA5: A ORIGEM DA OBRA DE ARTE]
O surgir diante do ser-criado a partir da obra não quer dizer que, na obra, deva tornar-se perceptível que foi feita por um grande artista. O que foi criado não o foi para dar testemunho de ser o resultado da actividade de um virtuoso, ganhando aquele que o realiza, por meio disso, prestígio aos olhos do público. Não é o N.N. fecit aquilo que deve ser notório, mas é sim o simples “factum est” que, na obra, deve ser mantido no aberto: isto[, a saber], que aqui aconteceu o NÃO-ESTAR-ENCOBERTO do ente e que só acontece como este algo de acontecido; isto, que tal obra é e não, pelo contrário, não é. O choque que [reside no facto de] esta obra, [sendo] como é, ser, e o carácter ininterrupto [das Nichtaussetzen] deste modesto choque constituem a consistência [Beständigkeit] do repousar-em-si na obra. Aí onde permanecem desconhecidos o artista e o processo e as condições do surgimento da obra, ressalta do modo mais puro, a partir da obra, este abalo, este “que” do ser-criado. [tr. Borges-Duarte et alii; GA5: A ORIGEM DA OBRA DE ARTE]
O querer aqui indicado – que não recorre a um saber, nem o decide de antemão – é pensado a partir da experiência fundamental do pensar em Sein und Zeit. O saber que permanece um querer, e o querer que permanece um saber [ – isso] é o entregar-se exstático do homem existente ao NÃO-ESTAR-ENCOBERTO do ser. O estar-resoluto-que-des-cerra [re-solução – Entschlossenheit] pensado em Sein und Zeit não é a acção decidida [decidierte Aktion] de um sujeito, mas sim a patenteação originária do aí-ser a partir do aprisionamento no ente para a abertura do ser. Porém, na existência, o homem não sai de um interior para um exterior – acontece antes que o estar-a-ser da existência é o instar vigente na cisão essencial da clareira do ente. Nem no criar que indicámos antes, nem no querer que agora referimos, pensamos no executar e na acção de um sujeito que se põe a si mesmo como [o] fim a que aspira. [tr. Borges-Duarte et alii; GA5: A ORIGEM DA OBRA DE ARTE]
Este saber, que, enquanto querer, radica na verdade da obra e que só assim permanece um saber, não extrai a obra do seu estar-em-si, não a arrasta para o círculo do mero vivenciar e não a rebaixa atribuindo-lhe o papel de algo que suscita vivências. O resguardar da obra não separa os homens singularizando-os com base nas suas vivências, antes os integra na pertença à verdade que acontece na obra e, deste modo, funda o ser-para-os-outros [Fureinandersein] e o ser-com-os-outros [Miteinandersein] como estar-em-vigência histórico do ser-o-aí a partir da conexão com o NÃO-ESTAR-ENCOBERTO. O saber ao modo do resguardar não tem absolutamente nada que ver com os exageros pretensiosos do perito, apenas capaz de dar conta daquilo que é formal na obra, das suas qualidades e encantos. Saber, como ter-visto, é um estar-decidido [Entschiedensein]; é o instar no combate que a obra conformou no traço-fenda. [tr. Borges-Duarte et alii; GA5: A ORIGEM DA OBRA DE ARTE]
Na obra, está em obra o acontÉecimento da verdade, e isso ao modo de uma obra. Assim, essência da arte foi previamente determinada como o pôr-em-obra da verdade. Porém, esta determinação é deliberadamente ambígua. Por um lado, diz que a arte é o fixar da verdade que se estabelece na figura. É o que acontece no criar como pro-duzir o NÃO-ESTAR-ENCOBERTO do ente. Mas pôr-em-obra significa ao mesmo tempo: pôr em andamento e levar a acontecer o ser-obra. Isso acontece como resguardar. Portanto, a arte é o resguardar criador da verdade na obra. Logo, a arte é um devir e um acontecer histórico da verdade. Então a verdade surge a partir do nada? De facto – se com o nada se está a fazer referência ao mero nada do ente, e se, nesse caso, o ente é representado como o que está habitualmente perante que, em seguida, por meio do estar-aí da obra, vem à luz como o que apenas pretensamente é o verdadeiro ente e que[, assim,] é abalado. A verdade nunca é colhida do que está perante e do que é habitual. Antes se passa que a patenteação originária do aberto e a clareira do ente só acontecem na medida em que é projectada [entworfen wird] a abertura que chega ao estar-lançado [Gewogenheit]. [tr. Borges-Duarte et alii; GA5: A ORIGEM DA OBRA DE ARTE]
A verdade, como clareira e encobrimento do ente, acontece na medida em que é poetada. Enquanto deixar-acontecer da chegada da verdade do ente, toda a arte é, enquanto tal, na sua essência, poesia. A essência da arte, na qual se baseiam, acima de tudo, a obra de arte e o artista, é o pôr-se-em-obra da verdade. A partir da essência poética da arte acontece que, no meio do ente, ela franqueia um lugar aberto em cuja abertura nada é como habitualmente. Em virtude do projecto, posto em obra, do NÃO-ESTAR-ENCOBERTO do ente que se nos lança, tudo aquilo que é habitual e que vale até agora [Bisherige] se converte em não-ente. Perdeu a capacidade de dar e guardar o ser como medida. O estranho é que a obra não surte de modo nenhum o seu efeito sobre o ente que vale até agora mediante conexões de causa a efeito. O efeito da obra não consiste num efectuar. Assenta numa modificação, que acontece a partir da obra, do NÃO-ESTAR-ENCOBERTO do ente, e isso significa: do sera. [tr. Borges-Duarte et alii; GA5: A ORIGEM DA OBRA DE ARTE]
Porém, a poesia não é um inventar errante do que quer que seja, nem um desvanecer do mero representar e imaginar no irreal. Aquilo que a poesia, como projecto clareante, desdobra no NÃO-ESTAR-ENCOBERTO e lança para o traço-fenda da figura, é o aberto que ela permite que aconteça, e até de modo que só agora o aberto no meio do ente leva este a brilhar e a ressoar. Olhando com o olhar que vê essências para a essência da obra e para a sua conexão com o acontecimento da verdade do ente, põe-se a questão de saber se a essência da poesia – e isso significa, ao mesmo tempo, do projecto – pode ser pensada de forma suficiente a partir da imaginação [Imagination] e da capacidade imaginativa [Einbildungskraft]. [tr. Borges-Duarte et alii; GA5: A ORIGEM DA OBRA DE ARTE]
Como é a linguagem que nomeia pela primeira vez o ente, só esse nomear faz que o ente venha à palavra e apareça. Este nomear designa o ente para o seu ser a partir deste. Tal dizer é um projectar do clareado dentro do qual se anuncia ‘enquanto quê’ [ais ivas] o ente vem ao aberto. O projectar é o disparar de um lance [Wurf] e é deste modo que o NÃO-ESTAR-ENCOBERTO se conforma com o ente enquanto tal. O dizer anunciante [Ansagen] projectante torna-se logo a seguir num renunciar a dizer [Absagen] toda a confusão indistinta em que o ente se vela e se subtrai. [tr. Borges-Duarte et alii; GA5: A ORIGEM DA OBRA DE ARTE]
O dizer projectante é poesia [ditado poético]: a saga do mundo e da terra, a saga da margem consentida pelo seu combate e, assim, do lugar de toda a proximidade e lonjura dos deuses. A poesia é a saga do NÃO-ESTAR-ENCOBERTO do ente. A língua de cada vez em causa é o acontecimento do dizer no qual irrompe de forma histórica para um povo o seu mundo, e no qual a terra é conservada como o que está encerrado. O dizer projectante é o que, no pôr à disposição do dizível, traz simultaneamente ao mundo o indizível enquanto tal. É em tal dizer que, para um povo histórico, são pré-cunhados os conceitos do seu estar-a-ser, i. e. da sua pertença à história do mundo. [tr. Borges-Duarte et alii; GA5: A ORIGEM DA OBRA DE ARTE]
O projecto poético da verdade, que se põe em obra como figura, também não se realiza nunca em direcção ao vazio e ao indeterminado. Na obra, a verdade é antes lançada para aqueles que, estando para vir, serão quem resguarda, i. e. lançada para uma humanidade histórica. Contudo, o que é lançado para… não é nunca algo que seja exigido impertinentemente de forma arbitrária. O projecto verdadeiramente poético é a patenteação originária daquilo para o que o aí-ser, enquanto histórico, já está lançado. E isto é a terra e, para um povo histórico, a sua terra, o fundo que se encerra, sobre o qual repousa com tudo aquilo que, ainda encoberto para si mesmo, já é. Mas é o seu mundo que vigora a partir da conexão do aí-ser com o NÃO-ESTAR-ENCOBERTO do ser. É por isso que tudo aquilo que é co-dado ao homem no projecto tem de ser extraído do fundo fechado e posto expressamente sobre ele. É só desta forma que ele é fundado enquanto fundo que suporta. [tr. Borges-Duarte et alii; GA5: A ORIGEM DA OBRA DE ARTE]
Pelo contrário, o início contém sempre a plenitude não-descerrada do ameaçador, e isso quer dizer, do combate com o protector. A arte enquanto ditado poético é instituição no terceiro sentido (o da instigação do combate da verdade), é instituição como início. Sempre que o ente no seu todo, enquanto ente ele mesmo, requer a fundamentação na abertura, a arte chega à sua essência enquanto instituição. Foi no mundo grego que ela aconteceu pela primeira vez no Ocidente. Aquilo a que daí para diante se veio a chamar ‘ser’ foi posto em obra de forma paradigmática. O ente assim tornado originariamente patente no seu todo foi depois transformado em ente no sentido do criado por Deus. Isso aconteceu na Idade Média. Este ente foi de novo transformado no começo e no curso da modernidade. O ente tornou-se em objecto susceptível de ser dominado e decifrado por meio do cálculo. De cada vez, irrompeu um mundo novo e essencial. De cada vez, a abertura do ente teve de ser estabelecida no ente ele mesmo mediante a fixação da verdade na figura. De cada vez, aconteceu o NÃO-ESTAR-ENCOBERTO do ente. Este põe-se em obra, e é a arte que consuma esse ‘pôr’. [tr. Borges-Duarte et alii; GA5: A ORIGEM DA OBRA DE ARTE]
A verdade é o NÃO-ESTAR-ENCOBERTO do ente enquanto ente. A verdade é a verdade do ser. A beleza não vem em acréscimo para junto desta verdade. Quando a verdade se põe em obra, aparece. O aparecer – enquanto ser da verdade na obra e como obra – é a beleza. Desta maneira, o belo faz parte do acontecer apropriador [Sichereignen] da verdade. Não é algo que diga respeito unicamente ao fruir e somente como seu objecto. O belo reside, no entanto, na forma, mas apenas pelo facto de a forma se ter outrora clareado a partir do ser enquanto entidade do ente. Foi nesse momento que o ser aconteceu apropriando-se [sich ereignet] como eidos. A idea conforma-se com a morphe. O synolon, o todo uno de morphe e hyle, quer dizer, o ergon, é ao modo da energeia. Este modo da presença transforma-se na actualitas do ens actu. A actualitas transforma-se em realidade efectiva. A realidade efectiva transforma-se em objectividade. A objectividade transforma-se em vivência. No modo como o ente, para o mundo determinado como ocidental, é enquanto real, encobre-se uma singular combinação da beleza com a verdade. A transformação da essência da verdade corresponde a história do estar-a-ser da arte ocidental. Há que compreendê-la tão pouco a partir da beleza tomada por si, como a partir da vivência, pressupondo que o conceito metafísico da arte alcance a sua essência. [tr. Borges-Duarte et alii; GA5: A ORIGEM DA OBRA DE ARTE]
Assim, o “fixar” da verdade pensado correctamente não pode, então, estar em contradição com o “deixar-acontecer”. Pois, por um lado, este “deixar” não é nenhuma passividade, é antes a mais elevada actividade (cf. Vorträge und Aufsätze [Ensaios e conferências], 1954, pág. 49) no sentido da thesis, um “operar” e um “querer” que, no presente ensaio, na pág. 55, é caracterizado como sendo o “entregar-se ex-stático do homem existente no NÃO-ESTAR-ENCOBERTO do ser”. Por outro lado, o “acontecer” no deixar-acontecer da verdade é o movimento que vigora na clareira e no encobrimento, mais precisamente: na sua unificação, a saber, o encobrir-se da clareira enquanto tal, do qual, por seu turno, provém todo o clarear-se. Este “movimento” requer mesmo um fixar no sentido do trazer-a-emergir-diante, expressão em que há que entender o trazer no sentido que é indicado na pág. 51, na medida em que o trazer-a-emergir-diante criador (que tira) “(é) antes um receber e um tomar no interior da conexão com o NÃO-ESTAR-ENCOBERTO”. [tr. Borges-Duarte et alii; GA5: A ORIGEM DA OBRA DE ARTE]
Se considerarmos em que medida é que a verdade como NÃO-ESTAR-ENCOBERTO do ente não significa senão o estar-presente do ente enquanto tal, i.e., o ser (ver pág. 59), então o discurso acerca do estabelecer-se da verdade, i.e., do ser, no ente toca aquilo que é digno de questão na diferença ontológica (cf. Identität und Differenz [Identidade e diferença], 1957, pág. 37 e ss.). É por isso que se diz de forma cautelosa (A origem da obra de arte, pág. 49 e s.): “Com a referência ao estabelecer-se da abertura no aberto, o pensar roça um domínio circunscrito que ainda não pode ser aqui exposto.” Todo o ensaio A origem da obra de arte se move conscientemente, porém, de forma inexpressa, no caminho da pergunta pelo estar-a-ser do ser. A meditação sobre o que é a arte está determinada apenas, no seu todo e de forma decisiva, pela pergunta sobre o ser. A arte não é tida nem como campo de realização da cultura, nem como uma aparição do espírito, pertence ao acontecimento de apropriação [Ereignis] unicamente a partir do qual se determina o “sentido do ser” (cf. Ser e tempo). A pergunta acerca do que é a arte é uma das perguntas para as quais, no ensaio, não são dadas quaisquer respostas. O que quer que se lhes assemelhe não é senão uma directiva para o perguntar. (Cf. as primeiras frases do epílogo.) [tr. Borges-Duarte et alii; GA5: A ORIGEM DA OBRA DE ARTE]
Para Protágoras, o ente permanece referido ao homem enquanto ego. Porém, de que tipo é esta referência ao eu? o ego demora-se no círculo do não-encoberto, enquanto algo que lhe está atribuído. Desta forma, ele percepciona tudo o que neste círculo está presente como sendo. O percepcionar do que está presente funda-se no demorar-se dentro do círculo do NÃO-ESTAR-ENCOBERTO. Através do demorar-se no que está presente, a pertença do eu ao que-está-presente é. Este pertencer ao que está presente e aberto delimita este contra o ausente. A partir deste limite, o homem recebe e guarda a medida para aquilo que-está-presente e ausente. Confinando-se ao que está, em cada caso, não-encoberto, dá-se ao homem a medida que limita o si mesmo respectivamente a isto ou àquilo. O homem não coloca a medida, à qual todo o ente, no seu ser, se tem de conformar, a partir de uma egoidade isolada. O homem da relação grega fundamental ao ente e ao seu NÃO-ESTAR-ENCOBERTO é metron (medida), na medida em que assume o comedimento ao círculo do NÃO-ESTAR-ENCOBERTO, delimitado pela egoidade, e assim reconhece o estar-encoberto do ente e a impossibilidade de decidir sobre o seu vir-à-presença ou ausência, do mesmo modo que sobre o aspecto daquilo que se essencia. Daí que Protágoras diga (Diels. Fragmente der Vorsokratiker, Protágoras B, 4): [citação em grego]. “Não estou em condições de saber algo (isto é, de modo grego: de receber algo “visualmente”) sobre os deuses, nem que são, nem que não são, nem como são no seu aspecto (idea)”. [citação em grego]. “Muito é aquilo que impede percepcionar o ente como tal: tanto o não-estar-manifesto (o estar-encoberto) do ente como também a brevidade do curso da história do homem”. Não é de admirar de que Sócrates, em vista desta prudência de Protágoras, diga dele (Platão. Teeteto, 152 b): [citação em grego]. “e de presumir que ele (Protágoras), enquanto homem prudente, não fale à toa (na sua frase sobre o homem como metron)”. [tr. Borges-Duarte et alii; GA5: O tempo da imagem no mundo]
A posição metafísica fundamental de Protágoras é apenas uma delimitação, isto é, ainda uma conservação da posição fundamental de Heráclito e Parmênides. A sofistica só é possível sobre o fundamento da sophia, isto é, da interpretação grega do ser como vir-à-presença e da verdade como NÃO-ESTAR-ENCOBERTO, NÃO-ESTAR-ENCOBERTO esse que permanece ele mesmo uma determinação essencial do ser, pelo que o que-está-presente se determina a partir do NÃO-ESTAR-ENCOBERTO e o vir-à-presença a partir do que-não-está-encoberto como tal. Mas qual a distância que separa Descartes do início do pensar grego, quão diferente é a interpretação do homem que o representa como sujeito? É precisamente porque no conceito do subjectum ainda ressoa a essência grega do ser, o hypokeisthai do hypokeimenon na forma do vir-à-presença (ou seja, do constantemente subjacente), tornado desconhecido e inquestionado, que se pode ver a partir dele a essência da mutação da posição metafísica fundamental. [tr. Borges-Duarte et alii; GA5: O tempo da imagem no mundo]
Uma coisa é a conservação do círculo em cada caso delimitado do NÃO-ESTAR-ENCOBERTO através do percepcionar do que-está-presente (o homem enquanto metron). Outra coisa é o avançar para a área desobstruída da objectivação possível, através do calcular do representável, que é acessível a qualquer um e vinculativo para todos. [tr. Borges-Duarte et alii; GA5: O tempo da imagem no mundo]
Qualquer subjectivismo é impossível na sofistica grega porque aqui o homem nunca pode ser subjectum; não pode sê-lo porque o ser é aqui vir-à-presença, e a verdade é NÃO-ESTAR-ENCOBERTO. [tr. Borges-Duarte et alii; GA5: O tempo da imagem no mundo]
No NÃO-ESTAR-ENCOBERTO, acontece apropriando-se a phantasia, isto é, o vir a aparecer do que-está-presente enquanto tal para o homem, homem que está presente face àquilo que se manifesta. O homem, enquanto sujeito que representa, fantasia, isto é, movimenta-se na imaginatio, na medida em que o seu representar insere imageticamente o ente, enquanto objectivo, no mundo como imagem. [tr. Borges-Duarte et alii; GA5: O tempo da imagem no mundo]
Representar quer aqui dizer pôr diante de si algo a partir de si, e assegurar aquilo que é posto enquanto tal. Este assegurar tem de ser um calcular, porque só a calculabilidade garante, à partida e constantemente, estar certo do que se está para representar. O representar já não é o percepcionar do que-está-presente, a cujo NÃO-ESTAR-ENCOBERTO pertence o próprio percepcionar, e isto como um tipo próprio de vir-à-presença que se dirige ao que-está-presente não-encoberto. O representar já não é o pôr-se-a-descoberto para…, mas o agarrar e conceber de… Não é o que-está-presente que vigora, mas o ataque que domina. O representar é agora, de acordo com a nova liberdade, um avançar, a partir de si, para a área ainda por assegurar do que está seguro. O ente já não é o que-está-presente, mas só o que está posto em frente no representar, o que é ob-jectivo [Gegenständige]. Re-presentar é ob-jectivação que avança, que doma. O representar empurra tudo para dentro da unidade do que é assim objectivo. O representar é coagitatio. [tr. Borges-Duarte et alii; GA5: O tempo da imagem no mundo]
Esclareceu-se também agora em que sentido o homem, enquanto sujeito, quer ser e tem de ser medida e centro do ente, isto é, agora, medida e centro dos objectos. O homem já não é agora metron no sentido do comedimento do percepcionar ao respectivo círculo do NÃO-ESTAR-ENCOBERTO do que-está-presente, face ao qual cada homem está sempre presente. Enquanto subjectum, o homem é a co-agitatio do ego. O homem funda-se a si mesmo como medida para todas as escalas com as quais se mede (se calcula) aquilo que pode valer como certo, isto é, como verdadeiro, como algo que é. A liberdade é nova enquanto liberdade do subjectum. Nas Meditationes de prima philosophia, a libertação do homem para a nova liberdade é trazida ao seu fundamento, ao subjectum. A libertação do homem moderno não só não começa com o ego cogito ergo sum, nem a metafísica de Descartes é apenas a metafísica posteriormente fornecida para esta liberdade, que, portanto, seria apenas um anexo exterior, no sentido de uma ideologia. Na co-agitatio, o representar reúne tudo o que é objectivo no conjunto do estar-representado. O ego do cogiatare encontra agora a sua essência em estar junto do estar-representado, em assegurar-se dele na con-scientia. Esta é a reunião representadora daquilo que é objectivo com o homem representador, no círculo do estar-representado guardado por ele. Tudo o que-está-presente recebe a partir deste estar-representado o sentido e o tipo do seu estar-em-presença, nomeadamente o da presença [Praesenz] na repraesentatio. A con-scientia do ego, enquanto subjectum da coagitatio, determina o ser do ente enquanto subjectividade do subjectum assim destacado. [tr. Borges-Duarte et alii; GA5: O tempo da imagem no mundo]
O primeiro parágrafo designa a coisa da filosofia. “Ela contempla o-que-está-presente enquanto o-que-está-presente e assim (contempla) aquilo que neste (no que-está-presente) predomina já a partir de si mesmo”, [citação em grego] (Aristoteles, Met. G, 1,1003a 21). O predominar diz respeito ao vir ao de cima no NÃO-ESTAR-ENCOBERTO. A filosofia contempla o-que-está-presente no seu estar-presente. O contemplar observa o-que-está-presente. Trata-o de tal modo que o vê apenas enquanto tal. A filosofia vê o-que-está-presente no que diz respeito ao seu aspecto. Na visão deste contemplar não há a efervescência de nenhum sentido profundo. A ‘theoria é o tornar sóbrio de todo o conhecer. Diz Hegel, na linguagem do seu pensar, que a filosofia é “o conhecer efectivo do que em verdade é”. Entretanto, o deveras ente revelou-se como o efectivo, cuja efectividade é o espírito. Mas a essência do espírito assenta na autoconsciência. [tr. Borges-Duarte et alii; GA5: O conceito de experiência em Hegel]
O nome ser-consciente designa um ser. Mas este “ser-” não deve ressoar em nós como uma palavra vazia. Quer dizer: o estar-presente no modo da reunião do visto. O uso da palavra “ser-” significa todavia, em conformidade com o uso de há muito habitual da palavra, simultaneamente o próprio ente, que é de tal modo. A outra designação para este ente, que é no modo do saber, reza “sujeito”: o por todo o lado já subjacente, o que-está-presente e, por isso, acompanhando toda a consciência: o próprio re-presentante no seu representar, que remete para a si o seu re-presentado e assim o repõe. O representar presentifica no modo da representificação. O ser deste que se antecipa a tudo o que é representado, o ser do sujeito enquanto referência sujeito-objecto reflectida em si, chama-se subjectidade. Ela é a presença no modo da representificação. Estar-presente no estado do estar-representado quer dizer presentificar-se como saber no saber, aparecer no sentido imediato de mostrar-se num NÃO-ESTAR-ENCOBERTO, estar-presente, existir [Dasein]. A consciência é, enquanto tal, em si, o que aparece. O existir imediato da consciência ou do saber é o aparecer, mas de modo a que o local do aparecer enquanto seu palco seja constituído no aparecer e por este mesmo. Talvez agora se tenha tornado mais nítido o que significa o título “Apresentação do saber que aparece”. Não significa a apresentação de algo que só começa a surgir, no mero aparentar. Significa unicamente: representar no seu aparecer o saber que, imediatamente, não é outra coisa que o que aparece no seu aparecer. Com o saber que aparece, a apresentação representa a consciência que é enquanto é, quer dizer, enquanto saber efectivo, real. [tr. Borges-Duarte et alii; GA5: O conceito de experiência em Hegel]
Diferentemente do uso linguístico de Hegel, utilizamos o termo “ser” tanto para aquilo que Hegel, juntamente com Kant, designa por objectualidade [Gegenständlichkeit] e objectividade [Objektivität] bem como para aquilo que ele representa como o deveras efectivo e designa como a efectividade do espírito. O einai o ser dos gregos, interpretamo-lo não como Hegel, não a partir da sua visão, como objectualidade do representar imediato de uma subjectividade que ainda não se alcançou a si, quer dizer, não a partir desta, mas sim a partir da aletheia grega, como o estar-presente a partir do e para o NÃO-ESTAR-ENCOBERTO. Mas a presença que acontece apropriadamente na representificação da skepsis da consciência é um modo do estar-em-presença que, tal como a ousia dos gregos, se essencia a partir da essência ainda impensada de um tempo encoberto. A entidade do ente que, desde o início do pensamento grego até à doutrina nietzscheana do eterno retorno do idêntico, aconteceu apropriadamente como a verdade do ente, é para nós apenas uma maneira, ainda que decisiva, do ser que, de modo algum, aparece necessariamente apenas como o estar-em-presença do que vem-à-presença. A maneira do uso que Hegel faz da palava ser, em rigor, ele não devia continuar a designar aquilo que, para ele, é a verdadeira efectividade do efectivo, o espírito, com um termo que contivesse ainda a palava “ser”. Isto sucede, porém, por todo o lado, na medida em que o ser-autoconsciente permanece a essência do espírito. É evidente que este uso linguístico não é consequência de uma terminologia imprecisa ou inconsequente, funda-se, sim, no modo encoberto em que o próprio ser se desvela e encobre. [tr. Borges-Duarte et alii; GA5: O conceito de experiência em Hegel]
Por detrás deste título, encobre-se-nos a história do ser. Ontológico significa realizar a reunião do ente com a sua entidade. Ontológica é aquela essência que, em conformidade com a sua natureza, se encontra nesta história, na medida em que a suporta sempre em conformidade com o NÃO-ESTAR-ENCOBERTO do ente. Podemos dizer, por conseguinte, que a consciência, no seu representar imediato do ente, é consciência ôntica. Para ela, o ente é o objecto. Mas, o representar do objecto representa, embora por-pensar, o objecto enquanto objecto. Ela [consciência] já reuniu o objecto na sua objectualidade e é, por isso, consciência ontológica. Porém, porque não pensa a objectualidade enquanto tal, embora já a represente, a consciência natural é e não é ontológica. Dizemos que a consciência ôntica é pré-ontológica. Enquanto tal, a consciência natural, ôntico-pré-ontológica, é de modo latente a diferenciação entre o verdadeiro ôntico e a verdade ontológica. É porque ser-consciente [Bewußtsein] significa ser esta diferenciação, que a consciência é, a partir da sua natureza, a aferição entre o representado onticamente e o representado ontologicamente. Enquanto aferição, é no pôr-à-prova. Em si mesma, o seu representar é um submeter-se-à-prova natural. [tr. Borges-Duarte et alii; GA5: O conceito de experiência em Hegel]
Outra questão bem diferente seria saber se e em que medida a subjectidade é um destino essencial próprio do ser, no qual não a verdade do ente mas o NÃO-ESTAR-ENCOBERTO do ser se esquiva [entzieht], e, assim, determina uma época própria. Dentro da subjectidade, todo o ente enquanto tal se torna objecto. Todo o ente é ente como resultado de uma operação de “fazer consistir em” [Beständigung]. Quando dentro da era da subjectidade, na qual se funda a essência da técnica, à consciência é contraposta a natureza enquanto ser, então esta natureza é apenas o ente enquanto objecto da objectualização técnica moderna, a qual agride indistintamente a consistência [Bestand] das coisas e dos homens. [tr. Borges-Duarte et alii; GA5: O conceito de experiência em Hegel]
O “residindo em nós” é inerente à absolutidade do absoluto. Sem este “residindo em nós” o absoluto seria o solitário que não poderia aparecer a si no que aparece. Não poderia irromper no seu NÃO-ESTAR-ENCOBERTO. Sem este irromper (physis) não teria vida (zoe). A experiência é o movimento do diálogo entre o saber natural e o saber absoluto. Ela é ambos a partir da unidade unificante, na qualidade da qual os reúne. Ela é a natureza da consciência natural, que é histórica, no acaso das suas formas que aparecem. Ela é o conceber-se destas formas na organização do seu aparecer. A obra termina, por isso, com a frase: “ambos conjuntamente, a história concebida, formam a recordação [Erinnerung] e o [local do] calvário do espírito absoluto, a efectividade, verdade e certeza do seu trono, sem o qual ele seria o solitário sem vida”. Na sua absolutidade, o absoluto precisa do trono enquanto o elevado [Hohen], para se nele se instalar sem se humilhar. [tr. Borges-Duarte et alii; GA5: O conceito de experiência em Hegel]
A manutenção do grau de poder da vontade alcançado em cada caso consiste em a vontade se rodear de um círculo daquilo a que pode sempre e confiadamente recorrer, para a partir daí alimentar a sua segurança. Este círculo delimita o fundo consistente [Bestand] do que está presente, imediatamente disponível para a vontade (ousia, segundo o significado quotidiano desta palavra para os gregos). Este consistente [Beständiges], no entanto, só se torna num constante [Ständiges], isto é, em algo que está constantemente à disposição, ao ser trazido a um estado através de um colocar. Este colocar tem o modo do elaborar re-presentando [vor-steilendes Herstellen]. Aquilo que deste modo é consistente é o permanente [Bleibendes]. Fiel à essência do ser que vigora na história da metafísica (ser = estar-em-presença duradouro), Nietzsche chama a este consistente “o ente”. Fiel ainda ao modo de falar do pensar metafísico, chama frequentemente àquilo que é consistente “o ser”. Desde o começo do pensar ocidental, o ente tem o valor de verdadeiro e de verdade, sendo que aqui o sentido de “ente” e “verdadeiro” se altera de múltiplas maneiras. Nietzsche permanece, apesar de todas as inversões e transmutações da metafísica, no caminho ininterrupto das suas ; tradições, quando chama simplesmente ser ou ente ou verdade ao que é fixado na vontade de poder para a sua manutenção. De acordo com isso, a verdade é uma condição posta na essência da vontade de poder, a condição da manutenção do poder. A verdade é, enquanto esta condição, um valor. Mas porque a vontade só pode querer a partir de um dispor de algo constante, a verdade é o valor necessário para a vontade de poder, a partir da essência desta. A designação verdade não significa agora nem o NÃO-ESTAR-ENCOBERTO [Unverborgenheit] do ente, nem a adequação [Übereinstimmung] de um conhecimento ao objecto, nem a certeza [Gewißheit] enquanto um reter e assegurar-se intelectivo do representado. A verdade é agora – e isso numa proveniência histórica essencial a partir dos mencionados modos da sua essência – a constante garantia de consistência do círculo a partir do qual a vontade de poder se quer a si mesma. [tr. Borges-Duarte et alii; GA5: A palavra de Nietzsche “Deus morreu”]
O tempo é indigente porque lhe falta o NÃO-ESTAR-ENCOBERTO da essência da dor, da morte e do amor. A própria indigência é indigente porque se esconde o domínio essencial no qual a dor, a morte e o amor pertencem uns aos outros. Há o estar-encoberto na medida em que o domínio da sua mútua pertença é o abismo do ser. Mas mantém-se ainda o canto que nomeia a terra. O que é o canto ele mesmo? Como é que um mortal é dele capaz? De onde canta o canto? Quão profundamente mergulha ele no abismo? [tr. Borges-Duarte et alii; GA5: Para quê poetas?]
Para avaliar se e quanto Rilke é um poeta num tempo indigente, e para assim saber para que servem os poetas, procuremos marcar o atalho para o abismo com alguns postes de orientação. Por tais postes tomemos algumas palavras-chave da poesia autêntica de Rilke. Elas apenas se deixam compreender no contexto a partir do qual são ditas. Este contexto é a verdade do ente, tal como ela se desenvolveu desde a consumação da metafísica ocidental por Nietzsche. A sua maneira poética, Rilke experienciou e suportou o NÃO-ESTAR-ENCOBERTO do ente saído desta consumação. Vemos agora como, para Rilke, o ente se apresenta como tal na sua totalidade. Para trazer à vista este domínio, tomemos em atenção um poema que surge na órbita da mais conseguida poesia de Rilke e, em termos cronológicos, depois dela. [tr. Borges-Duarte et alii; GA5: Para quê poetas?]
O que Rilke quer dizer com esta palavra não será, de modo algum, definido através da abertura no sentido do NÃO-ESTAR-ENCOBERTO do ente, a qual deixa o ente estar presente enquanto tal. Se se procurar esclarecer o que Rilke quer dizer com “aberto” no sentido de NÃO-ESTAR-ENCOBERTO e daquilo que não está encoberto, então deveria dizer-se: o que Rilke experiencia como o aberto é antes o fechado, o obscuro, o que prossegue no ilimitado de modo que nem algo desconhecido, nem mesmo qualquer coisa poderão ir ao seu encontro. Quando se en-contra algo, surge logo aí uma barreira. Onde existe restrição, aquilo que é restringido é empurrado para si mesmo e curvado sobre si próprio. A restrição torce, tranca a relação com o aberto e transforma esta mesma relação em algo de torcido. A restrição no interior do ilimitado é estabelecida pela representação humana. O oposto defronte não permite que o homem esteja imediatamente no aberto. Em certo sentido, ele exclui o homem do mundo e coloca-o perante o mundo, significando aqui mundo o ente na totalidade. Ao invés, o mundano [Weltische] é o próprio aberto, a totalidade do que não se opõe. Contudo, também o nome aberto se apresenta, enquanto nome metafísico e tal como o termo risco, num sentido ambíguo. Ele tanto significa a totalidade dos nexos ilimitados da conexão pura, como a abertura no sentido da ilimitação que em tudo vigora. [tr. Borges-Duarte et alii; GA5: Para quê poetas?]
Ora, enquanto pensadores, temos em consideração que, já de início, o ser do ente é pensado com vista à sua circunscrição. Pensamos, porém, este carácter esférico do ser demasiado desleixadamente e sempre apenas à superfície, se ainda não tivermos perguntado e experimentado como inicialmente se essencia o ser do ente. O eon, o sendo, dos eonta, do ente na sua totalidade, chama-se o hen, o Uno que une. Mas que será este unir circunscrevente como traço fundamental do ser? Que significa ser? eon, sendo, significa: presente, nomeadamente, presente no que não está encoberto. No entanto, no estar-presente encobre-se: a-presentar o NÃO-ESTAR-ENCOBERTO que faz essenciar-se algo que está presente enquanto tal. Na verdade, porém, presente está apenas o próprio estar-presente, que está em todo o lugar como sendo o Mesmo no seu próprio centro, e sendo como tal a esfera. O carácter esférico não consiste num dar a volta que acabe por abranger, mas antes num centro que desencobre, que, clareando, alberga o que está presente. O esférico do uno e este mesmo uno têm o carácter do clarear que desencobre, dentro do qual o que está presente é capaz de estar presente. É por isso que Parmênides (frgm.VIII, 42) denomina o eon, o estar-presente daquilo que está-presente, como eukyklos sphaire. Esta esfera bem arredondada deve ser pensada como o ser do ente no sentido do Uno que, simultaneamente, desencobre e clareia. Isto, que une em toda a parte, segundo a forma acima exposta, leva-nos a denominá-lo de órbita que clareia, e que, precisamente na sua qualidade de desencobrir, não abrange de modo algum, mas antes pelo contrário, possibilita ele mesmo, de um modo que clareia, o surgimento de algo no estar-presente. Jamais deveremos representar esta esfera do ser e o seu esférico como objectos. E como não-objectos? Também não. Isso constituiria mero subterfugio de uma forma de falar. O esférico deve ser pensado a partir da essência do ser inicial, no sentido do estar-presente que desencobre. [tr. Borges-Duarte et alii; GA5: Para quê poetas?]
Pensamos o que é grego, o Cristianismo, a modernidade, a esfera planetária e, no sentido indicado, a terra do poente, a partir de um traço fundamental do ser que, como aletheia na lethe, encobre mais do que desvela. Porém, este encobrir do seu estar-a-ser e da sua origem essencial é o traço em que o ser clareia inicialmente, de tal modo que, precisamente, o pensar não o segue. O ente ele próprio não entra nesta luz do ser. O NÃO-ESTAR-ENCOBERTO [Unverborgenheit] do ente, a claridade que lhe é concedida, esconde a luz do ser. [tr. Borges-Duarte et alii; GA5: O dito de Anaximandro]
O ser subtrai-se na medida em que se desencobre no ente. De modo que o ser se detém em si próprio com a sua verdade. Este deter-se em si próprio é a forma inicial do seu desencobrir-se. O sinal inicial do deter-se em si próprio é a aletheia. Na medida em que esta traz o NÃO-ESTAR-ENCOBERTO do ente, só ela funda o estar-encoberto do ser. Mas o encobrimento mantém o traço do recusar-se que se mantém em si próprio. [tr. Borges-Duarte et alii; GA5: O dito de Anaximandro]
A phthora significa: o ir-se e o perecer em direcção ao encoberto, o que chega ao domínio do encoberto vindo do domínio do não-encoberto. O surgir em direcção a… e o ir-se em direcção a… são dentro do NÃO-ESTAR-ENCOBERTO, entre o coberto e o não-encoberto. Dizem respeito ao chegar e ao partir daquilo que chega. [tr. Borges-Duarte et alii; GA5: O dito de Anaximandro]
A primeira coisa que retiramos da palavra poética é que tá eonta se distingue de tá essomena e de pró eonta. De acordo com isto, tá eonta designa o ente no sentido de “o-que-é-actual” [das Gegenwärtige]. Quando nós, os pósteros, dizemos “actual”, então temos em vista ou o que pertence a um “agora”, e representamos isso como algo de intra-temporal, sendo o “agora” tido como uma fase no decurso do tempo; ou pomos o “actual” em relação com o que está perante como objecto [das Gegenständige]. Isto, sendo aquilo que é objecto, é posto em relação com um sujeito que representa. Se, todavia, usamos “actual” para a sobre-determinação de eonta, ficamos obrigados a compreender o actual a partir da essência de eonta e não ao contrário. Porém, eonta é também o que passou e o que virá. Ambos são um modo de o-que-está-presente [das Anwesende], a saber, do que está não-actualmente presente [das ungegenwärtig Anwesende]. Ao que está actualmente presente [das gegenwärtig Anwesende] chamam também os gregos, precisando, tá pareonta; pará significa “junto de”, a saber, o que chega junto do NÃO-ESTAR-ENCOBERTO. O gegen [“contra”, “perante”] em gegenwärtig [“actual”, “presente”] não tem em vista o que está presente no sujeito, mas sim a região-de-encontro aberta [die offene Gegend] em que tem lugar o NÃO-ESTAR-ENCOBERTO – no qual se demora aquilo que aí chegou, entrando e permanecendo no seu interior. Em conformidade com isto, “actual”, enquanto determinação dos eonta, significa o mesmo que: chegado a uma demora [Weile] no interior da região-de-encontro do NÃO-ESTAR-ENCOBERTO. O eonta, que é dito em primeiro lugar, que, por isso, é acentuado e que, com isso, propriamente se diferencia de proeonta e essomena, designa, para os gregos, o-que-está-presente [das Anwesende] na medida em que isso chega, no sentido exposto, a uma demora interior à região-de-encontro do NÃO-ESTAR-ENCOBERTO. Uma tal vinda é a autêntica chegada, é o estar-presente [das Anwesen] do que está autenticamente presente. Também o que passou e o que virá é algo-que-está-presente, nomeadamente dentro fora da região-de-encontro do NÃO-ESTAR-ENCOBERTO. O que está não-actualmente presente é o-que-está-ausente [das Ab-wesende]. Enquanto tal, permanece referido de forma essencial ao que está actualmente presente, na medida em que ou chega à região-de-encontro do NÃO-ESTAR-ENCOBERTO ou se vai dele. Também o-que-está-ausente é algo-que-está-presente e, enquanto algo-que-está-ausente do NÃO-ESTAR-ENCOBERTO, está presente nele. Também o que passou e o que virá são eonta. Assim, eon significa: “estando presente no NÃO-ESTAR-ENCOBERTO”. [tr. Borges-Duarte et alii; GA5: O dito de Anaximandro]
Resulta deste esclarecimento de eonta que, também na experiência grega, o-que-está-presente permanece ambíguo e, na verdade, necessariamente ambíguo. Por um lado, tá eonta significa o que está actualmente presente, mas, por outro, também tudo que está presente: o que está actualmente e o que está não-actualmente a ser [das gegenwärtig und das ungegenwärtig Wesende]. Porém, o-que-está-presente, em sentido mais lato, é algo que não podemos nunca representar, segundo o hábito do nosso visar-conceptual, como conceito geral de “o-que-está-presente” enquanto coisa diferente de algo particular que está presente: o que está actualmente presente; pois, de acordo com as próprias coisas, é justamente o que está actualmente presente e o NÃO-ESTAR-ENCOBERTO que nisso campeia que perpassam, campeando, o estar-a-ser do que está ausente – sendo isto o não-actualmente presente. [tr. Borges-Duarte et alii; GA5: O dito de Anaximandro]
O vidente está perante o-que-está-presente, perante o seu NÃO-ESTAR-ENCOBERTO, que, ao mesmo tempo, clareou o encobrimento do que está ausente enquanto tal. O vidente vê, na medida em que viu tudo enquanto algo-que-está-presente; kai, e só por isso, [citação em grego], pôde guiar os barcos dos Aqueus até Tróia. Ele é capaz disto através da mantosyne concedida pelo deus. O vidente, o mantis, é o mainomenos, o que delira. Porém, em que consiste a essência [Wesen] do delírio? O que delira está fora de si. Está fora. Perguntamos: “fora” para onde? e “fora” de quê? “Fora” da simples afluência do que está na ordem do dia [das Vorliegende], daquilo que apenas actualmente está presente, e “fora” em direcção ao que está ausente, e com isso, ao mesmo tempo, “fora” em direcção ao que está actualmente presente, na medida em que isto não é mais do que algo que, ao chegar, constantemente parte. O vidente está fora de si – fora de si na extensão unida do estar presente daquilo que, de cada modo, está presente. Por isso, ele pode, a partir do “estar fora” nesta extensão, ao mesmo tempo ir e voltar ao presente imediato – que é aquilo que a peste furiosa é. O frenesim do “estar fora” – que é um “estar fora” que vê – não consiste no facto de aquele que está nesse frenesim se enfurecer, revirar os olhos e torcer os membros. O frenesim do vidente não é incompatível com a discreta calma do recolhimento do corpo. [tr. Borges-Duarte et alii; GA5: O dito de Anaximandro]
Para o vidente, tudo o que está presente e tudo que está ausente se reúnem em um estar-presente , e aí se preserva a descoberto [gewahrt]. A nossa antiga palavra war [“era”, “foi”] significa “protecção”. Conhecemo-la, ainda, em wahrnehmen [“perceber”, “percepcionar”], isto é, acolher no domínio do que se preserva a descoberto [in die Wahr nehmen], em gewahren [“descobrir”, “notar”] e verwahren [“guardar, preservar”]. Há que pensar o “preservar a descoberto” [das Wahren] como o pôr-a-salvo que faz clarear e reúne [das lichtend-versammelnde Bergen]. O estar-presente preserva a descoberto [wahrt], no NÃO-ESTAR-ENCOBERTO, aquilo que está presente – tanto o que está actualmente presente quanto o que está presente, mas não actualmente. O vidente fala a partir do preservar-se a descoberto do que está presente. Ele é aquele que diz o domínio do que se preserva a descoberto [die Wahr]. [tr. Borges-Duarte et alii; GA5: O dito de Anaximandro]
Para onde foi que nos tra-duziu a palavra de Homero? Para os eonta. Os Gregos experimentam o ente como o actualmente e não-actualmente presente – como estando presente no NÃO-ESTAR-ENCOBERTO. A nossa palavra que traduz ón por “ente/sendo/que é” já não tem, agora, um carácter embotado; “ser”, como tradução de einai, e esta palavra grega ela própria já não são pseudônimos superficialmente usados para quaisquer vagas representações de algo indeterminadamente geral. [tr. Borges-Duarte et alii; GA5: O dito de Anaximandro]
Ao mesmo tempo, revela-se que o ser como estar-presente do que está presente, em si mesmo, é já a verdade, contanto que pensemos o estar-a-ser da verdade como reunião que faz clarear e põe a salvo [lichtend-bergende Versammlung] ; contanto que nos mantenhamos livres do posterior – e hoje óbvio – pressuposto da Metafísica segundo o qual a verdade é uma propriedade do ente ou do ser. O ser (diz-se esta palavra tal como foi pensada) é o einai como estar-presente, é, de um modo oculto, uma propriedade da verdade – não, obviamente, da verdade como uma característica do conhecimento, seja ele divino ou humano, e não, obviamente, uma propriedade no sentido de uma qualidade. Além disso, ficou claro: tá eonta designa, de um modo ambíguo, tanto o que está actualmente presente quanto também o não-actualmente presente, o qual, compreendido a partir daquele, é o que está ausente. Mas o actualmente presente não se acha entre [as duas partes de] o que está ausente como um pedaço cortado. Se o que está presente se encontra, de antemão, no domínio da visão, tudo está a ser em conjunto [west… zusammen], um traz o outro consigo, este deixa escapar aquele. O actualmente presente no NÃO-ESTAR-ENCOBERTO demora-se nele como na região-de-encontro aberta [offene Gegend]. O que se demora actualmente nesta região-de-encontro (o-que-se-demora [Weilige]) surge nela a partir do encobrimento e chega ao NÃO-ESTAR-ENCOBERTO. Mas o que está presente é demorando-se como o que chega [weilend ankunftig], na medida em que também já se vai para fora do NÃO-ESTAR-ENCOBERTO e em direcção ao encobrimento. O que está actualmente presente demora-se por uma vez [jeweils]. É algo que se está a demorar na chegada [a partir da origem] e na ida [que o faz partir]. O demorar-se é a passagem da chegada à partida. O-que-está-presente é o-que-se-demora-por-uma-vez [das Je-weilige]. Demorando-se passageiramente, está ainda a demorar-se na chegada [a partir da origem] e a demorar-se já na ida [que o faz partir]. O que está presente demorando-se por uma vez, o presente actual, está a ser [west] a partir do estar-ausente. Isto é precisamente o que há a dizer do que está autenticamente presente – o qual a nossa representação habitual gostaria de separar de todo o estar-ausente. [tr. Borges-Duarte et alii; GA5: O dito de Anaximandro]
tá eonta designa a multiplicidade unida daquilo que se demora por urna vez. Qualquer coisa que está de tal forma presente no NÃO-ESTAR-ENCOBERTO está a ser [west] por uma vez em relação a qualquer outra coisa e segundo o seu modo [de estar a ser]. [tr. Borges-Duarte et alii; GA5: O dito de Anaximandro]
Finalmente, retiramos da passagem de Homero ainda isto: tá eonta, o (assim chamado) ente, não designa, de todo, as coisas da natureza. Com eonta, o poeta designa, no caso presente, a situação dos Aqueus diante de Tróia, a cólera do deus, a furia da peste, o fogo dos mortos, o desnorte dos príncipes e outras coisas mais. tá eonta, na linguagem de Homero, não é nenhum termo filosófico, mas sim uma palavra dita de forma pensada e pensante. Não designa nem apenas as coisas da natureza nem de todo os objectos que apenas estão perante um representar humano. O homem também pertence aos eonta; ele é aquele presente que, percebendo, fazendo clarear e, assim, reunindo, faz que o-que-está-presente como tal esteja a ser [wesen] no NÃO-ESTAR-ENCOBERTO. Se, na caracterização poética de Calcas, o-que-está-presente é pensado em relação ao ver do vidente, então isso significa, pensado de um modo grego, que o vidente como aquele que viu é alguém presente, alguém que pertence ao todo do que está presente num sentido extraordinário. Mas não significa que o-que-está-presente seja e seja apenas como o objectivo na dependência da subjectividade do vidente. [tr. Borges-Duarte et alii; GA5: O dito de Anaximandro]
O estin de Parmênides, porém, não visa o “é” como cópula da proposição. Designa o eon, o presente do que está presente. O estin corresponde à pura pretensão [Anspruch] do ser, antes da distinção em ousia primeira e ousia segunda, em existentia e essentia. Mas, assim, o eon é pensado a partir da plenitude do NÃO-ESTAR-ENCOBERTO dos eonta – uma plenitude que está encoberta e não está posta em relevo, mas que era familiar para o mundo grego arcaico, sem que ele fosse capaz e tivesse necessidade de experimentar a essência [Wesen] dessa plenitude ela própria de todos os pontos-de-vista. [tr. Borges-Duarte et alii; GA5: O dito de Anaximandro]
O auta refere-se ao que foi designado na proposição precedente. Só isto pode ser visado: tá onta, o que está presente no todo, o que está actualmente e não-actualmente presente no NÃO-ESTAR-ENCOBERTO. Se se designa isto expressamente com a palavra eonta ou não, pode permanecer em aberto, de acordo com a incerteza a respeito do texto. O auta designa tudo o que está presente, que é no modo do “por-uma-vez”: deuses e homens, templos e cidades, mar e terra, águia e cobra, árvore e arbusto, vento e luz, pedra e areia, dia e noite. O que está presente pertence à unidade do estar-presente, na medida em que cada ente fica presente a outro ente na sua demora, demorando-se com ele. Esta multiplicidade (polla) não é a adição em série de objectos separados, por detrás dos quais se encontrasse algo que os abrangesse em conjunto. No e