Nancy (BSP:1-3) – sentido

Tradução

Costuma-se dizer hoje que perdemos o sentido, que ele nos falta e, como resultado, estamos precisando e esperando por ele. Quem fala assim esquece que a própria propagação deste discurso é plena de sentido. Lamentar a ausência de sentido em si tem sentido. Mas este lamentação não tem sentido apenas neste modo negativo; negar a presença do sentido afirma que se sabe o que seria o sentido, se aí estivesse, e mantém o domínio e a verdade do sentido em posição (que é a pretensão dos discursos humanistas que se propõem a “redescobrir” o sentido). Dele ou não ciente, o discurso contemporâneo sobre o sentido vai muito mais longe e em uma direção completamente diferente: traz à luz o fato de que “sentido”, usado desta forma absoluta, tornou-se o nome desnudado (dénudé) de nosso ser-com-um-outro. Não “temos” mais sentido, porque nós mesmos somos sentido – inteiramente, sem reservas, infinitamente, sem nenhum sentido além de “nós”.

Isso não significa que somos o conteúdo do sentido, nem o seu preenchimento ou o seu resultado, como se quisesse dizer que o ser humano fosse o sentido (fim, substância ou valor) do Ser, da natureza ou da história. O sentido deste sentido – isto é, o significado ao qual um estado de coisas corresponde e se compara – é precisamente o que dizemos que perdemos. Mas somos sentido enquanto somos o elemento no qual significações podem ser produzidas e circular. A menor significação tanto quanto a mais elevada (o sentido de “prego”, bem como o sentido de “Deus”) não tem sentido em si mesma e, como resultado, é o que é e faz o que faz apenas na medida em que é comunicada, mesmo quando essa comunicação ocorre apenas entre “eu” e “mim mesmo”. O sentido é sua própria comunicação ou sua própria circulação. O “sentido do Ser” não é uma propriedade que irá qualificar, preencher ou finalizar a dação bruta do “Ser” puro e simples. Em vez disso, é o fato de que não há “dação bruta” do Ser, de que não há pobreza desesperadora quando se diz que “há um prego prendendo …” Mas a dação do Ser, a dação inerente ao próprio fato de que entendemos algo quando dizemos “ser” (seja o que for e confuso que seja), junto com a (mesma) dação que é dada com esse fato – co-substancial com a dação do Ser e a compreensão do Ser, de que nos entendemos (embora confusamente) quando o dizemos, é um dom que pode ser resumido da seguinte forma: Ser, ele mesmo, nos é dado como sentido. Ser não tem sentido. Ser, ele mesmo, o fenômeno do Ser, é sentido que, por sua vez, é sua própria circulação – e nós somos esta circulação.

Não há sentido se o sentido não é compartilhado, e não porque haveria um significado último ou primeiro que todos os entes têm em comum, mas porque o sentido é ele mesmo o compartilhamento do Ser. O sentido começa onde a presença não é pura presença, mas onde a presença se separa (se disjunta) para ser ela mesma como tal. Este “como” pressupõe o distanciamento, espaçamento e divisão da presença. Apenas o conceito de “presença” contém a necessidade dessa divisão. Pura presença não compartilhada – presença para nada, de nada, para nada – não está nem presente nem ausente. É a simples implosão de um ente que nunca poderia ter existido – uma implosão sem deixar vestígios.

É por isso que o que é chamado de “a criação do mundo” não é a produção de um algo puro a partir do nada – que não iria, ao mesmo tempo, implodir no nada do qual nunca poderia ter surgido – mas é a explosão de presença na original multiplicidade de sua divisão. É a explosão do nada, na verdade, é o espaçamento de sentido, espaçamento como sentido e circulação. O nihil da criação é a verdade do sentido, mas o sentido é o compartilhamento originário desta verdade. Poderia ser expresso da seguinte forma: O ser não pode ser nada exceto ser-com-o-outro, circulando no com e como o com dessa convivência singularmente plural.

Se se pode dizer assim, não há outro sentido senão o sentido de circulação. Mas esta circulação vai em todas as direções ao mesmo tempo, em todas as direções de todos os espaços-tempos (les espace-temps) abertos pela presença à presença: todas as coisas, todos os entes, todas as entidades, tudo passado e futuro, vivo, morto, inanimados, pedras, plantas, pregos, deuses – e “humanos”, isto é, aqueles que expõem o compartilhamento e a circulação como tal, dizendo “nós”, dizendo nós para si mesmos em todos os sensos possíveis dessa expressão e dizendo nós para a totalidade de todo ser.

Richardson & O’Byrne

Excertos de

Heidegger – Fenomenologia e Hermenêutica

Responsáveis: João e Murilo Cardoso de Castro

Twenty Twenty-Five

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