Nancy (1996:21-23) – o ser-com de tudo o que é

A circulação vai em todas as direções: tal é o pensamento nietzschiano do “eterno retorno”, a afirmação do sentido como a repetição do instante, apenas essa repetição e, consequentemente, nada (já que se trata da repetição daquilo que essencialmente não retorna), mas essa repetição já compreendida na afirmação do instante, nessa afirmação-petição (re-petitio) apreendida no despojamento do instante, afirmando a passagem da presença e passando ela mesma com ela, afirmação abandonada em seu próprio movimento — pensamento impossível, pensamento que não se detém na circulação que pensa, pensamento do sentido no próprio sentido, de sua eternidade como a verdade de sua passagem. (Como, no instante em que escrevo, um gato branco e ruivo atravessa o jardim, levando meu pensamento com o seu, num deslize zombeteiro.)

É assim que o pensamento do eterno retorno é o pensamento inaugural da nossa história contemporânea, e que precisamos repeti-lo (mesmo que, se necessário, nomeá-lo de outra forma): precisamos nos reapropriar daquilo que já nos fez “nós”, hoje, agora, aqui, o nós de um mundo que pressente não ter mais sentido, mas ser esse próprio sentido. Nós como começo e fim do mundo em toda parte, inesgotáveis na circunscrição que nada circunscreve — que circunscreve “o” nada. Nós fazemos sentido: não ao conferir preço, valor, mas ao expor o valor absoluto que o mundo é por si mesmo. “Mundo” não significa nada mais, nada além desse “nada” que ninguém pode “querer dizer”, mas que todo dizer diz: o próprio ser como valor absoluto em si de tudo o que é: mas esse valor absoluto como o ser-com de tudo o que é, ele mesmo nu e inavaliável. Nem querer-dizer, nem dizer-valor, mas o valor enquanto tal, ou seja, “o sentido” que só é o do ser porque é o próprio ser: sua existência, sua verdade. Ora, a existência é com: ou então nada existe.

A circulação — ou a eternidade — vai em todas as direções, mas só vai na medida em que vai de um ponto a outro: o espaçamento é sua condição absoluta. De lugar em lugar e de instante em instante, sem progressão, sem traço linear, caso a caso e momento a momento, acidental por essência, ela é singular e plural em seu próprio princípio. Assim como não tem um preenchimento final, também não tem um ponto de origem. Ela é a pluralidade originária das origens e a criação do mundo em cada singularidade: criação continuada na descontinuidade de suas ocorrências discretas. Nós somos doravante — nós outros 1, encarregados dessa verdade, mais do que nunca nossa, a verdade dessa paradoxal “primeira pessoa do plural” que faz o sentido do mundo como o espaçamento e o entrelaçamento de tantos mundos — terras, céus, histórias — quantos são os lugares de sentido, ou as passagens da presença. “Nós” diz — e nós dizemos — o único evento cuja unicidade e unidade consistem na multiplicidade.

(NESP)

  1. « Entre o “nós todos” do universalismo abstrato e o “eu, eu” do individualismo miserável, há o “nós outros” de Nietzsche, um pensamento do caso singular que desfaz a oposição entre o particular e o universal. » François Warin, Nietzsche et Bataille. La parodie à l’infini, Paris, PUF, 1994, p. 256.[↩]
Excertos de

Heidegger – Fenomenologia e Hermenêutica

Responsáveis: João e Murilo Cardoso de Castro

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