Morujão (1969) – Significado e Estrutura da Redução Fenomenológica (1)

(Morujão1969)

Nos seus traços fundamentais a fenomenologia de Husserl pode caracterizar-se como uma filosofia transcendental, ou seja, uma filosofia que regressa à subjetividade, considerada base última de todas as formações objetivas de sentido e de todos os valores de ser. A subjetividade deve, por isso, ser captada como um plano absolutamente racional, que permite clarificar correta e diretamente todos os problemas de validade. Explicitável ao infinito, essa infinidade abrange tudo o que pode ser válido. A via de acesso a esse domínio é a redução fenomenológica. É esta que, conduzindo à subjetividade, possibilita alcançar um ponto de partida absolutamente seguro e um proceder rigoroso, elevando a filosofia, dentro da sua esfera própria, a uma ciência de rigor.

Para melhor compreender a intenção da fenomenologia husserliana convém reportarmo-nos à tese de habilitação à docência, de 1878, “Sobre o conceito de número. Análises psicológicas”, tentativa de basear as investigações sobre o conceito de número em certas ideias lógicas e psicológicas da época. Os comentadores e críticos de Husserl veem, com razão, já preludiados neste primeiro trabalho alguns dos temas e processos de investigação fenomenológica. Nele há referência contínua à reflexão e ao método de revelação das essências das coisas, regressando-se, para isso, à origem do significado delas na consciência e descrevendo essa origem, o que pode ser considerado como primeira expressão de ideias, posteriormente desenvolvidas, acerca da constituição, redução, análise intencional e intuição eidética. Por outro lado, contudo, tanto Sobre o conceito de número como Filosofia da Aritmética que o re-elabora e desenvolve, permanecem fechados no horizonte do psicologismo, pois tentam derivar de certos atos psíquicos os conceitos fundamentais da aritmética e ainda da geometria euclideana. As críticas a esse psicologismo, vindas de Stumpf, Natorp e Frege, conduziriam Husserl a uma reflexão sobre as relações entre psicologia e lógica, acabando por considerar o psicologismo insustentável. A fazer essa demonstração dedicou o primeiro volume — Prolegômenos a uma lógica pura — das suas Investigações lógicas. Husserl defende aí a independência do domínio matemático e lógico no sentido de uma espécie de platonismo. Explica que os princípios lógicos são verdadeiros, independentemente de serem ou não pensados por alguém. Devem possuir uma «existência» independente do funcionamento do fato de consciência. A validade do pensado no pensamento não se encontra vinculada a qualquer atividade psíquica do sujeito. Daí, pensamento lógico e pensamento matemático serem verdadeiros, independentemente da sua formulação pela função pensante. De onde se conclui que matemática e lógica são puras, se independentes de um pensamento factual. A validade do pensado no pensamento não se encontra vinculada a qualquer atividade psíquica do sujeito.

O erro básico do psicologismo reside em ter naturalizado as nossas ideias e também em ter naturalizado a consciência. Por isso se impõe uma discriminação rigorosa entre o mundo da consciência e o mundo dos aconteceres factuais. É no segundo volume das investigações lógicas que essa discriminação é estabelecida. À primeira vista parece tratar-se mais de psicologia do que lógica pura, onde se explicita a correlação típica entre os objetos ideais, pertencente à esfera lógica, possuidores de uma existência em si próprios, e as nossas existências vividas, psíquicas, subjetivas, como atividades em que se dão esses objetos. Husserl designa-a por fenomenologia, considerando esta uma psicologia descritiva, embora não psicologista, que procura ver os diferentes objetos lógicos nos correspondentes atos da consciência. Na introdução a este segundo volume, sobre a função de uma teoria do conhecimento, afirma Husserl: «esforça-se por elevar à clareza e distinção as formas e leis puras do conhecimento pelo regresso à intuição adequadamente doadora. Este esclarecimento exige uma fenomenologia que vise simples análises descritivas das vivências segundo a sua componente real». Assim, segundo a primeira edição das Investigações lógicas, apenas são fenomenologicamente dados os momentos «reais», efetivos, aqueles que, como veremos oportunamente, são designados no primeiro volume das Ideias para uma fenomenologia pura e uma filosofia fenomenológica por momentos hiléticos e noéticos e não os momentos realmente «transcendentes» e, neste sentido, os momentos «intencionais». Surge-nos deste modo uma esfera fenomenológica limitada, domínio estrito de doações em que a fenomenologia se deve apoiar para fundamentação de uma teoria do conhecimento baseada ho princípio da ausência de pressupostos. Como Husserl afirma no §7 da introdução do segundo volume das Investigações lógicas: «Uma investigação gnoseológica, que tenha aspiração séria a científica, deve necessariamente, como muitas vezes já se tem sublinhado, satisfazer ao principio da ausência de pressupostos. Porém, em nosso entender, o princípio não pode querer dizer mais do que a exclusão de todas as hipóteses que não podem ser, fenomenologicamente, completamente realizadas. Toda a investigação gnoseológica deve realizar-se com base puramente fenomenológica». Originariamente, a ideia de redução fenomenológica é a de uma limitação de uma esfera fundamental de pesquisa, no sentido de uma restrição exigida pelo princípio da ausência de pressupostos das investigações gnoseológicas É neste domínio de análises e descrições que tem lugar o que é adequadamente percepcionado, ou seja, de acordo com as investigações Lógicas, as vivências nas suas componentes ou momentos reais. Tudo se passa num plano em que a fenomenologia é considerada uma psicologia descritiva, embora não psicologista, que procura ver os diferentes objetos lógicos nos correspondentes atos de consciência. O que se apresenta de novo neste método é ser «uma tentativa de regressar radical e consequentemente das categorias respectivas das objetividades aos modos de consciência que lhes pertencem, aos atos subjetivos, estruturas de atos, fundamentos de vivência, em que essas objetividades são conscientes e chegam a alcançar uma doação evidente».

Excertos de

Heidegger – Fenomenologia e Hermenêutica

Responsáveis: João e Murilo Cardoso de Castro

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