(Morujão1961)
Capítulo 1 O MUNDO NATURAL E O PROBLEMA DA SUA FUNDAMENTAÇÃO
As análises levadas a efeito no parágrafo anterior mostram com suficiência o que há de característico no chamado mundo natural: encontra-se sempre presente em face a mim uma única realidade espácio-temporal; eu próprio faço corpo com ela assim como todos os homens que aí se encontram e do mesmo modo estão inseridos nessa realidade. Essa realidade apresenta-se-me numa experiência como existente e aceito-a tal como ela se me dá, a saber, como existente e como evidente, embora em modos de ser diferentes e de acordo com as respectivas fontes e graus de conhecimento. Toda a dúvida respeitante aos dados desse mundo, assim como a recusa em aceitar alguns deles, em nada altera a tese geral da posição natural. O mundo, como realidade, está sempre aí, podendo no caso extremo estar aí ou ali, de maneira diferente do que presumia: poderá ser necessário, por assim dizer, excluir-se dele isto ou aquilo, que se revelou ser “aparência”, “alucinação”, etc. Mas, no sentido da tese geral, o mundo é sempre algo existente.
Objectivo das ciências positivas, isto é, baseadas na atitude natural, é explorar esse mundo, dando-nos dele um conhecimento mais amplo e exaustivo, mais perfeito que os resultados da experiência ingénua. A ciência exprime o que a directa experiência nos proporciona e de acordo com os seus motivos conclui do experimentado directamente para o não experimentado, generaliza, de novo aplica esse conhecimento generalizado a casos particulares ou por intermédio de modos analíticos de pensar, extrai dele novas generalidades. Mas os conhecimentos não se articulam uns aos outros sob a forma de sucessão linear; interpenetram-se em relações lógicas, seguem-se uns nos outros, concordam entre si, confirmam-se reciprocamente, fortalecendo assim a sua força lógica.
Por outro lado, observa Husserl podem as ciências entrar em relações de contradição e antagonismo, não concordarem umas com as outras o assim serão absorvidas e superadas (aufgehoben) por conhecimento mais seguro. Essas contradições podem ter a sua origem na esfera das puras formas predicativas e serem motivadas por equívocos, raciocínios falsos, erros de numeração ou de contagem. Se assim for, retomamos a concordância formal e resolvemos os equívocos. Ou as contradições repousam em experiência, contradizendo os fundamentos experimentais outros fundamentos da experiência. Ponderam-se então os fundamentos das diferentes possibilidades de determinação e esclarecimento; os mais fracos submetem-se aos de maior peso, mas estes só valem na medida em que não originam antagonismos lógicos com os motivos gnoseológicos que a esfera alargada do conhecimento introduziu.
Assim progrida esse conhecimento. «Em cada passo do conhecimento científico natural levantam-se o solucionam-se dificuldades e isto opera-se de maneira puramente lógica ou objectiva (sachlich), com base nos impulsos ou motivos do pensamento que repousam nas coisas o ao mesmo tempo parecem brotar delas como exigências que põem ao conhecimento».
Esta marcha metódica na construção da ciência e a eficácia prática dos seus resultados podem levar a supor que é ela o único modo válido de saber e que através dela se pode alcançar o conhecimento radical do ser. Certo é que foi próprio da filosofia, desde os seus inícios, manter a pretensão de «ser ciência de rigor, propriamente susceptível de satisfazer às supremas necessidades teóricas e de possibilitar uma vida ético-religiosa regulada por normas puramente racionais». E se é certo que «o Ethos dominante da filosofia moderna consiste justamente na sua vontade de se constituir como ciência de rigor, por meio de reflexões críticas», não é menos verdade que «o único fruto maduro destes esforços foi a fundamentação e a autonomia das ciências naturais e morais como ciência de rigor, e de novas disciplinas puramente matemáticas.
Toda ciência que explora o mundo é uma ciência intra-mundana. Se o conhecimento natural começa com a experiência (Erfahrung) e permanece nos limites desta, também na atitude teórica que chamamos natural, o horizonte, que circunscreve toda a espécie de estudo, se caracteriza no seu conjunto por uma palavra — o mundo — e as ciências derivadas desta atitude são todas as ciências do mundo e, «na medida em que esta atitude reina exclusivamente, pode-se pôr a equivalência de três conceitos: “ser verdadeiro”, ser real (wirklichen), isto é, ser “real-natural” e, uma vez que tudo o que é real se resume na unidade do mundo, “ser-no-mundo” Cada ciência tem por campo de estudo um domínio específico de objectos e todos os conhecimentos que integra «têm por base e fundamento de direito certas intuições, onde os objectos do domínio considerado se vêm dar “em pessoa” (zur Gegebenheit kommen) e, ao menos para uma parte deles, sob a forma de dado originário (zur originärer Gegebenheit)». Na esfera “natural” dos conhecimentos, e para todas as ciências que nela enraízam, a intuição doadora é a experiência natural e a experiência doadora originária a percepção. Na percepção externa temos uma experiência originária das coisas físicas; do nós mesmos o dos nossos estados de consciência, na percepção dita interna; temos uma percepção dos outros e das suas vivências na chamada intropatia (Einfühlung). Apercebemos (ansehen) as vivências de outrem fundando-nos na percepção das suas manifestações corporais; «temos consciência do outro e da sua vida psíquica como estando aí em pessoa, mas, diferentemente do corpo, a consciência de outrem não é um dado originário». As ciências mundanas têm pois, como experiência doadora originária, única e exclusivamente a percepção interna e externa, e os objectos de que tratam são algo de real-natural inseridos portanto no único mundo espácio-temporal, concebido como “omnitudo realitatis”. «O mundo é a soma dos objectos que, fundados na experiência actual, podem ser conhecidos nos quadros de um pensamento teórico correcto». Simplesmente, essas ciências, que estão relacionadas com o mundo, enraizadas na atitude natural, formam todas o que em sentido estrito e em sentido lato se denomina ciências da natureza. Compreendem as ciências da natureza material, as dos seres vivos com a sua natureza psicofísica e portanto a fisiologia, a psicologia e similares, devendo-se ainda neste agrupamento incluir todas as chamadas ciências do espírito (Geisteswissenschaften), ou seja, a história, as ciências das civilizações e as disciplinas sociológicas de todo o género. Se examinarmos o proceder destas ciências chamadas naturais, verifica-se que procedem com total “ingenuidade” no respeitante à sua fundamentação: «instalam-se no terreno da experiência do mundo previamente dado e pressuposto como existindo de maneira evidente». Procedendo desta maneira, «todas as ciências fazem nascer problemas relativos aos seus fundamentos e fazem aparecer os seus paradoxos, problemas e paradoxos esses a que se tenta remediar somente depois, com o auxílio de uma teoria do conhecimento aparecida mais tarde, isto é, demasiado tarde. É por esta razão, precisamente, que as ciências positivas são não-filosóficas».
Concluindo: as ciências que exploram o chamado mundo natural são ciências mundanas, isto é, estão enraizadas no mundo e recebem a sua vitalidade da chamada tese da atitude ou posição natural que consiste em admitir o mundo em geral, seus fenómenos, seus factos, seus processos de comportamento como base evidente de experimentação e fundamento objectivo do seu investigar. Instalam-se no mundo, previamente dado e pressuposto, como em algo que existe de modo evidente, consideram a experiência como meio natural, graças ao qual é possível obter um conhecimento “objectivo”, sem procurar as últimas verdades que lhes dão garantia e as legitimam na sua pretensão de ser conhecimento “objectivo”, isto é, sem investigar os seus verdadeiros fundamentos. É por isso que Husserl as apelida de ingénuas e as desvaloriza, como instrumentos capazes de nos explicar a própria evidência do mundo.