(Morujão1961)
O problema da percepção está ligado ao problema de saber como o transcendente se comporta relativamente à consciência que o conhece e de que maneira se deve entender essa relação mútua.
Tomemos como exemplo o do livro que se encontra sobre a minha mesa de trabalho; posso vê-lo de vários ângulos, mudando a minha posição relativa, tendo contudo sempre consciência da existência corporal de um só e mesmo livro; o livro permanece o mesmo, embora variem os pontos de vista em que me encontro para o percepcionar. A percepção vai mudando c, no fundo, consiste numa série contínua de percepções variáveis. Tomo consciência da identidade do livro na consciência sintética que articula a nova percepção à recordação das anteriores. «O agora da percepção não cessa de se converter numa nova consciência que se encadeia à anterior, à consciência do acaba-precisamente-de-passar; ao mesmo tempo surge um novo agora. Não somente a coisa percepcionada em geral, mas toda a parte, toda a fase, todo o momento que pertence à coisa, são, por razões sempre idênticas, necessariamente transcendentes à percepção, quer se trate de qualidade primária ou secundária». Por exemplo, a cor do livro não pode ser, por princípio, um momento real (reell) da consciência de cor, isto é, algo que pertença à sua estrutura, algo que seja seu ingrediente; a cor aparece, mas necessariamente como algo que muda sem cessar ao longo da experiência que a legitima. A cor aparece, ou dá-se, numa diversidade ininterrupta de esboços perspectivísticos (Abschatlungen) de cor. Isto é válido para qualquer outra qualidade sensível ou forma espacial. Necessariamente uma só e mesma forma, que se dá corporalmente como idêntica, aparece sem interrupção de maneiras sempre diversas em perspectivas de formas sempre diferentes.
O que acabámos de afirmar a propósito da percepção de um objecto que aparece inalterável no acto perceptivo, possui um alcance mais geral: pode-se estender ao caso de coisas que se alteram no tempo; «é por necessidade eidética que uma consciência empírica da mesma coisa, percepcionada sob todas as fases, e que continuamente só está confirmando, do modo a formar uma única percepção, comporta um sistema complexo formado por uma diversidade ininterrupta de aparências e de esboços; nestas diversidades vêm esboçar-se através de uma continuidade determinada, todos os momentos do objecto que se oferecem na percepção com o carácter de se darem eles mesmos corporalmente».
A coisa é a unidade intencional, o termo idêntico e único que a consciência atinge através do fluxo ordenado do diverso da percepção. Mas cada fase desta comporta essencialmente um conjunto de esboços perspectivísticos de formas (dados de sensação) que na unidade concreta da percepção são animadas por apreensões (Auffassungen) que por sua vez se fundam numa unidade concreta; as diferentes unidades concretas, por seu turno, agrupam-se em sínteses de identificação. Os dados sensíveis, que representam o papel de esboço perspectivista, são por essência absolutamente diferentes das qualidades correspondentes; assim, por exemplo, os esboços de cor são diferentes da cor tomada em absoluto; o esboço não é do mesmo género do que é esboçado. O esboço é uma vivência; logo, não é possível como espacial. Daqui se estabelece a transcendência da coisa em relação à percepção e, portanto, em relação a toda a consciência em geral que lhe corresponde: «uma coisa não pode ser dada como realmente imanente em nenhuma percepção possível, e em geral em nenhuma consciência possível. Vemos pois aparecer uma distinção fundamental: a do ser como vivência e a do ser como coisa». A vivência pode ser percebida numa percepção imanente; a essência de uma coisa espacial não pode percepcionar-se de modo semelhante. Além da percepção há outras variedades de vivências intencionais que, por princípio, excluem que os seus objectos intencionais sejam imanentes, quaisquer que esses objectos sejam; é o caso de todas as espécies de presentificações, de recordação, de captação por intropatia da consciência de outrem, etc.. Um resultado se impõe definitivamente das análises precedentes: «a coisa como tal e. toda a realidade em sentido autêntico da palavra, embora esse sentido fique por fixar e elucidar, implicam por essência e completamente “por princípio” que delas não possa haver uma percepção imanente e de maneira geral não se possam encontrar no encadeamento da vivência. É neste sentido que se chama transcendente a coisa tomada em si mesma e absolutamente falando. Simultaneamente se declara, de princípio, a distinção mais radical que possa haver entre os modos de ser, a distinção entre consciência e realidade natural (Realität)». Esta distinção, ou mesmo oposição, entre imanente e transcendente traduz-se também por uma distinção de principio nos respectivos modos de doação; não se distinguem imanente e transcendente pelo facto de o objecto intencional, no primeiro caso, estar realmente (reell) imanente à própria percepção e, no segundo caso, não estar. O essencial diz respeito às maneiras diferentes como o objecto è dado. A coisa é objecto da percepção, na medida em que se apresenta em “esboços”, em “facetas perspectivísticas”, coisa que não acontece com uma vivência. E não se objecte que essa apresentação perspectivística da coisa é puramente fortuita, ou então dependente da estrutura da psique humana, que determina a nossa percepção a fazer-se por intermédio de esboços. É da essência da coisa espacial não ser, em principio, dada no plano da evidência senão da citada maneira, assim como por essência a cogitatio e a vivência em geral excluem a maneira perspectivística de serem dadas. «Desde que o ser não seja de ordem espacial, não tem sentido dizer que se vê de diferentes pontos de vista, mudando de. orientação, considerando as diferentes fases que se oferecem por ocasião desses movimentos, e tendo em conta as diferentes perspectivas, aparências e esboços». Voltando ao anterior exemplo do livro, poderemos dizer que ele, como coisa material que é, está simultaneamente para além de todas as visadas possíveis e imanente a cada uma; a percepção, embora apresente a coisa em si mesma, não esgota por natureza o seu objecto. Pelo contrário, a tristeza que sinto por não entender a língua em que esse livro está escrito, por exemplo, embora seja difícil de exprimir, esgota-se no momento da sua aparição; tudo o que possa dizer a seu respeito funda-se nesse único momento onde se revela o que é; se noutra ocasião essa tristeza se modifica, é diferente, será outra tristeza, ao passo que o livro que percepciono, visto sob outro ângulo, com outra iluminação, ou aberto noutra página, é sempre o mesmo livro. Só pode “aparecer” com a condição de se dar dentro de certa “orientação”, envolvendo esta, necessariamente, novas orientações, cuja possibilidade está, sistemática e previamente, figurada na precedente; a cada uma dessas orientações corresponde uma certa maneira de a coisa aparecer. «Se tomarmos a expressão “maneira de aparecer” no sentido de modo de vivência, (…) isto significará: certos tipos da vivência, que apresentam uma estrutura particular, ou mais exactamente, certas percepções concretas, que apresentam uma estrutura particular, implicam por essência que o objecto intencional que envolvem tem acesso à consciência a título de coisa espacial; por essência comportam a possibilidade ideal de se explicitarem numa pluralidade ininterrupta de percepções, submetidas a uma ordem determinada e susceptível de se prosseguir indefinidamente sem nunca, por consequência, apresentarem uma conclusão». Daqui surge a unidade de uma consciência que dá o seu objecto de maneira concordante; a consciência é consciência de uma única coisa percepcionada que aparece dotada de uma perfeição sempre crescente pois apresenta, de cada vez, facetas novas e determinações sempre mais ricas. A coisa espacial reduz-se à unidade intencional que, por princípio, só pode ser dada como unidade sintética dessas maneiras de aparecer múltiplas e cada vez mais pormenorizadas. São estes critérios intrínsecos ao modo de aparição do “objecto” e ao modo da sua visada, que permitem fundar a distinção entre objecto imanente e objecto transcendente.
Por conseguinte, é erróneo supor que todo o existente, em principio, comporta a possibilidade de ser captado tal como é numa intuição simples e, mais concretamente, numa percepção adequada que tornaria patente a igualdade corporal, sem passar pelo intermédio destas “aparências”. Se para o intelecto humano era isso impossível, «Deus, sujeito do conhecimento absolutamente perfeito, e, por conseguinte, também sujeito de toda a percepção adequada possível, possuiria naturalmente a coisa em si que nos é recusada a nós, seres finitos». Esta maneira de ver implicaria que, entre o transcendente e o imanente, não houvesse uma diferença de essência e que, portanto, a coisa espacial fosse uma componente real (reelles) incluída na intuição atribuída à divindade. No sujeito cognoscente finito, e portanto imperfeito, a transcendência da coisa exprimir-se-ia por uma representação, uma ideia, uma imagem, ou ainda por um sinal. A solução husserliana vai pôr fim a uma dificuldade insolúvel nesta perspectiva clássica que, «depois de ter confundido tudo sob o nome de representação, procura em seguida separar certas representações de outras, usando unicamente diferenças extrínsecas ou graduais, como são a clareza, a força, a exigência da representação». Para Husserl, a coisa externa ou espacial, que vemos, é percebida em toda a sua transcendência, é dada à consciência na sua corporeidade; logo, não pode a percepção ser interpretada como uma consciência representativa, pois entre elas existe uma diferença, por essência impossível de eliminar. Apreender uma coisa A como imagem de uma coisa B, outra coisa não significa que visar a coisa B através da coisa A, ou seja, ter simultaneamente consciência de A e de B. Quer isto dizer que a apercepção da coisa A como imagem da coisa B supõe, como condição de possibilidade, a consciência da coisa B. «A teoria das ideias-imagens supõe tacitamente como dado o que está precisamente em questão, a saber, a possibilidade de ter uma consciência da coisa fora de mim — sem o qual nunca poderia apreender a ideia em mim como uma imagem de uma coisa fora de mim». A percepção de uma coisa, de acordo com os dados descritivos, não presentifica o que não está presente, como se a percepção fosse uma recordação ou uma imagem. Antes capta a coisa em si mesma, na sua presença corporal e isto pelo próprio sentido da percepção. Coisa em si mesma que se dá perspectivisticamente. Analisando mais detidamente a percepção da coisa, vemos que esta, por necessidade de essência, implica uma certa inadequação, pois, por princípio, só pode ser dada sob determinado ângulo; daqui ser dada incompletamente, inadequadamente, no sentido de aparecer por meio de “esboços”, de “perspectivas”. Nesses “esboços” ou “aspectos”, “simples modos de aparecer”, encontra-se um núcleo, constituindo o que realmente se apresenta, circundado por um horizonte de dados conjuntos (Mitgegebenheiten), que não são rigorosamente dados, e uma zona mais ou menos vaga de indeterminação.
O significado dessa indeterminação é o de indicar previamente uma diversidade possível de percepções, cujas fases, passando constantemente de umas para outras, se fundam na unidade de uma percepção. É nessa unidade que a coisa que dura constantemente se apresenta numa série sempre renovada de “esboços”, revelando novas “faces”, ou repetindo as já apresentadas. Há momentos da coisa que, pouco a pouco, recebem uma determinação mais rigorosa e outros deixam de ser dados claramente para passar à obscuridade. Deste modo se pode dizer que, entre as coisas e a percepção da coisa, há uma imperfeição indefinida essencial. «Se o sentido da coisa tira as suas determinações dos dados extraídos da percepção da coisa (…) — afirma Husserl —, esse sentido implica uma imperfeição deste género, que nos remete a um encadeamento de percepções possíveis, tendentes continuamente para a unidade; estas percepções desenvolvem-se a partir de uma direcção escolhida entre as direcções em número infinito segundo uma ordem sistemática e imperiosa; desenvolvimento esse que pode prosseguir-se indefinidamente em cada direcção, e a que não deixa de presidir uma unidade de sentido. Por princípio, subsiste sempre um horizonte de indeterminações susceptíveis de ser determinado, por mais que avancemos no curso da experiência e por mais importantes que sejam já as séries contínuas de percepções actuais a que submetemos a mesma coisa». Nada disto pode ser alterado.
Passando da coisa material, para o ser transcendente, seja qual for, desde que, por esta designação, se entenda todo o ser para um eu, evidentemente que se apresentará de um modo análogo ao da coisa, isto é, por intermédio de “perfis” ou “perspectivas”. De outra forma, teríamos que considerar esse ser como imanente; por essência, o mesmo ser não pode dar-se, ora segundo o modelo da coisa material, ora segundo os moldes de uma percepção imanente.
Estas considerações permitem apresentar ainda sob outro aspecto o contraste que existe entre coisa e vivência. Se esta última não se dá em perspectivas, em esboços, indefinidamente, quer dizer que a percepção da vivência é a visão simples de qualquer coisa que se dá na percepção como “absoluto”.
Assim podemos considerar como certo o seguinte princípio: «a essência de tudo o que se dá por meio de “aparências” implica que nenhuma destas apresente a coisa como um “absoluto”; cada uma delas dá-a numa figuração unilateral; em contrapartida, a essência dos dados imanentes implica que estes se deem como absoluto que não se pode de forma alguma figurar e esboçar por facetas sucessivas». Os conteúdos de sensação, que esboçam a coisa, pertencem realmente (reell) à vivência perspectivística da coisa, e não são por sua vez dados perspectivisticamente.
Apesar do que foi dito atrás, a respeito da percepção da vivência, como simples visão de algo que se dá como absoluto, não se quer com isto significar que a vivência possa ser completamente percebida. Pelo contrário, nunca se deixa captar adequadamente na sua unidade plena; é, por essência, um fluxo.
É certo que a reflexão pode incidir sobre uma vivência, a partir do instante presente; as porções de fluxo vivencial deixadas para trás estão perdidas para a percepção; sob a forma de retenção ou de recordação podemos ter consciência cio que acaba de se escoar, embora o fluxo total da minha vivência constitua uma unidade impossível de captar, por princípio, mediante a percepção, uma vez que fluímos conjuntamente. Mas, se a percepção da vivência comporta uma imperfeição motivada por se dar incompletamente, é contudo uma imperfeição diferente da que acontece na percepção “transcendente”, dada numa figuração por meio de esboços.
Caracterizadas assim brevemente a percepção de coisa e a percepção de vivência, uma análise mais aprofundada mostrar-nos-á a diferença essencial do ponto de vista da perceptibilidade que ar. separa.
No respeitante à vivência, «o que na reflexão é captado de maneira perceptiva caracteriza-se, por princípio, como algo que não fomente está aí e dura no interior da visada perceptiva, mas já al estava, antes que essa visada se orientasse na sua direcção». Isto é, dizer que todas as vivências são conscientes, equivale a considerar as vivências intencionais não só vivências de algo, presentes se forem objecto de uma consciência reflexiva, mas ainda que elas já se encontram num estado não reflexo, sob a forma de plano de fundo, prontas, por princípio, a serem percebidas, embora ainda não o tenham sido, por não se lhes ter ainda prestado atenção.
Algo diferente se passa com a coisa material; a coisa, tal como o tipo de ser da vivência, será perceptível sob o modo da reflexão? Certo que a coisa é igualmente perceptível por princípio e é captada na percepção como coisa do meu mundo circundante; também se encontra, tal como a vivência, no campo da inatenção, mas afirmar que a coisa está aí significa que «se pode, a partir das percepções actuais, tomadas com o plano de fundo que efectivamente aparece, formar séries de percepção possíveis e, na verdade, motivadas de maneira continuamente convergente, com campos sempre novos de coisas que lhe servem de plano de fundo nilo observado; estas séries de percepções possíveis conduzem a esse encadeamento de percepções, na qual precisamente a coisa considerada viria a aparecer e a ser captada». Resumindo: toda a vivência está pronta para a reflexão que a descobre, tal como era já de maneira irreflectida. O ser perceptível, ou coisa, ou o ser transcendente em geral encontra-se também num campo do inatenção, num «por uma parte sobre uma linha possível de experiência que prolonga um curso de esboços ainda inacabados, Assim a coisa escapa à reflexão de uma maneira específica quo agrava a sua inadequação».
De tudo isto se conclui que a percepção imanente garante necessariamente a existência de seu objecto, ou seja, é absurdo supor que uma vivência dada não exista: «o fluxo da vivência, que é o meu fluxo, o do sujeito pensante, pode ser, tanto quanto se queira, não apreendido, desconhecido quanto às partes que já se escoaram e quanto às restantes ainda por vir; mas basta que eu incida a visada sobre a vida que se escoa na sua presença real e que nesse acto me apreenda a mim mesmo como o sujeito puro dessa vida, (…) para que possa dizer sem restrições e necessariamente: sou, esta vida é, vivo; cogito».
Toda a vivência em princípio pode atingir esta evidência; cada uma traz consigo a garantia da sua existência absoluta. Toda a minha vivência pode ser uma ficção, mas o acto, a consciência dela não é fictícia; por essência, implica a possibilidade de uma reflexão que percebe e capta a existência absoluta. Se as consciências estranhas de que tenho experiência, por intropatia, não existirem, a minha intropatia e a minha consciência em geral sito dadas de maneira originária e absoluta. Na esfera das coisas, pelo contrário, sabemos que nenhuma percepção, por mais perfeita que seja, manifesta um absoluto; por essência é possível que possa subsistir um dado que não exista, embora haja uma consciência persistente da sua presença “em pessoa”. A existência da coisa é, de certa maneira, sempre contingente: «é sempre possível que o curso ulterior da experiência obrigue a abandonar o quo anteriormente foi posto com base na autoridade da experiência». Há uma possibilidade permanente, na esfera dos dados, de se produzir uma alteração, uma mudança de uma aparência numa nova que não se pode unir à anterior de modo convergente; assim a experiência posterior reage sobre a anterior de tal modo que os objectos intencionais que pertencem a esta última sejam remodelados por reacção. É pois a concordância dos “esboços” da coisa que é contingente. Tal possibilidade encontra-se excluída da esfera das vivências que, portanto, se pode considerar como esfera de posição absoluta. Tudo o que há no mundo das coisas não é por princípio senão uma realidade presumida; mas eu mesmo, a actualidade da minha vivência é algo absoluto. Não há prova alguma, extraída de consideração empírica do mundo, que ateste com certeza absoluta a existência do mundo. Podemos concluir : «A “tese” do mundo, que é uma tese “contingente” opõe-se à tese do meu eu puro e da vida do eu absolutamente indubitável. Toda a coisa dada corporalmente pode igualmente não ser; vivência alguma dada corporalmente tem a possibilidade de também não ser».