Morujão (1961) – O mundo natural

(Morujão1961)

Capítulo 1 O MUNDO NATURAL E O PROBLEMA DA SUA FUNDAMENTAÇÃO

A questão acerca do mundo parece ser um problema de bem simples solução. O mundo apresenta-se como a própria evidência. Por intuição imediata, tenho experiência dele. Mediante os sentidos externos percebo as coisas corporais, como estando simplesmente aí para mim em qualquer distribuição espacial; e presentes, quer eu lhe conceda ou não uma atenção particular, quer me ocupe ou não delas, pensando-as, sentindo-as ou querendo-as. O mesmo acontece com os seres animados (animalische Wesen) tais como os homens. Estão aí para mim de uma maneira imediata: vejo-os, ouço-os, sinto-os aproximar, toco-os e, «falando com eles, compreendo imediatamente o que imaginam e pensam, que sentimentos possuem, que desejam ou querem». Tal como acontece com as coisas, também os seres animados não precisam de se encontrar directamente no meu campo de percepção; lodos os seres reais estilo aí, sujeitos de determinações mais ou menos conhecidas, «formando unidade com os objectos efectivamente percebidos, sem serem eles mesmos percebidos nem mesmo estarem presentes de maneira intuitiva». “Sei” precisamente que se encontram em determinado lugar do meu contorno, imediatamente com-presentes (mitbewusst) à minha consciência, sem que este saber seja algo de conceituai, «bastando-me lançar a atenção para esses objectos, ainda que de maneira parcial e as mais das vezes imperfeita, para converter esse saber numa intuição clara (klares Anschauen)». O mundo, considerado como a ordem dos seres na sua presença espacial, não se esgota com o somatório desses seres reais com-presentes à intuição, de maneira clara ou obscura, e que cingem o campo actual da percepção. Tudo o que é actualmente percebido e mais ou menos com-presente e determinado pode-se considerar em parte peneirado e em parle envolvido por um horizonte obscuramente consciente de realidade indeterminada. Este horizonte pode ser penetrado por uma incidência da atenção, formarem-se presentificações (Vergegemvärtigungen), primeiro de conteúdo obscuro, que, clarificando-se pouco a pouco, me ajudam a fazer surgir qualquer coisa; assim se forma uma cadeia de coisas determinadas que, dilatando-se continuamente, se articula com o campo actual de percepção. Tomado como ordem de seres na sucessão temporal, o mundo, que me é presente, tem o seu horizonte temporal infinito nos dois sentidos, possui um passado e um futuro, conhecidos e desconhecidos. Pela actividade livre que a experiência põe em jogo e me dá acesso à intuição do que me está presente, posso prosseguir essas relações no seio da realidade que imediatamente me envolve, «posso mudar de ponto de vista no espaço e no tempo, orientar-me para aqui ou para ali, para a frente ou para trás no tempo; posso fazer nascer em mim percepções e presentificações sempre novas e mais ou menos claras e ricas de conteúdo, ou ainda imagens mais ou menos claras pelas quais concedo a riqueza da intuição (Veranschauliche) a tudo o que é possível e pode ser conjecturado nas formas estáveis do mundo espacial e temporal».

O mundo é-nos dado previamente e a todo o momento me encontro perante um só e o mesmo mundo, embora varie o seu conteúdo. O mundo é mundo concreto em que lodo o concreto é determinado ou determinável espácio-temporalmente. Pertence à estrutura geral desse mundo que qualquer coisa real se deve entender ou em si ou para si como “morta”; isto é, devem-se as coisas reais compreender como coisas sem espírito, inanimadas (geistlose Sache), pois no sentido ôntico não contêm predicado algum que seja essencialmente de um sujeito dotado de um eu (Ichsubjekt), nem remetem para tais sujeitos sob o modo de criação intencional (intentionaler Gebilde). Mas, se este mundo não cessa de me estar “presente”, é um facto que também me encontro nele incorporado; é por isso que esse mundo não está simplesmente aí, para mim, como um mundo de coisas mas ainda e imediatamente também como um mundo de valores, como um mundo de bens, como mundo prático. Quer isto significar que as coisas puras e simples se podem considerar núcleo e suporte de predicados mundanos fundamentalmente de nova espécie — os predicados de espiritualidade. As coisas transformam-se em objectos culturais (Kulturobjekte); todavia é possível perderem estas determinações de nível mais elevado, por alterações físicas que venham a dar-se.

O mundo, seja ele o mundo das coisas pura e simplesmente materiais ou o dos objectos de cultura, aparece-nos sempre sob a forma de mundo circundante (Umwelt), isto é, como um mundo em que me encontro e que ao mesmo tempo me circunda. «O homem na multiplicidade dos seus interesses práticos vive num mundo circundante prático, que possui uma unidade, como no seu horizonte prático universal. Nele estão incluídos lodos os horizontes especiais que surgem em relação às correspondentes actividades típicas. O homem encontra-se centrado na unidade vigilante do seu interesse profissional, mas pode também transferir-se de um mundo circundante para outro». É esta possibilidade que permite alargar a noção de mundo, de modo a caberem nela esferas que à primeira vista parecem não lhe pertencer. O feixe de actividades espontâneas da consciência, nas suas múltiplas variações, reporta-se a esse mundo em que me encontro inserido. Quer eu assuma a atitude de observador com a finalidade de investigação científica, quer elabore conceitos, os explicite e corrija, em suma, sempre que me encontre num estádio teórico ou, pelo contrário, pratique actos da esfera afectiva ou volitiva, ou seja afectado por qualquer estado de temor, de alegria ou tristeza, etc., é sempre no mundo que me encontro. E toda essa série de actividades que exercito, contando também com «os actos simples do eu pelos quais tenho consciência do mundo como estando imediatamente aí, quando me oriente espontaneamente para ele a fim de o captar, todos esses actos e estados se encontram englobados na única expressão de Descartes: Cogito»^). «No viver natural directo (im natürlichen Dahinleben), vivo sempre nesta forma básica de toda a vida “actual” quer possa ou não nessa ocasião enunciar o cogito, ou, “reflexivamente” dirigir-me para o eu e para o cogitare. Se tal eu sou, então há um cogito de natureza vivente que por seu lado é não-reflexo e por conseguinte não tem para mim a qualidade de objecto».

Cada cogito, no seio do qual vivo, não tem por cogitatum necessariamente coisas, pessoas, objectos quaisquer, pertencentes ao meu mundo circundante; pode transferir-se para outro. Assim, quando me ocupo dé números e leis de números, não estou directamente ligado ao meu mundo circundante natural. Mas nem por isso a esfera aritmética, o mundo dos números, deixa de estar aí, presente, para mim. Durante tal actividade estarão alguns números ou construções numéricas no centro do meu ponto de visão, rodeados por um horizonte aritmético em parte determinado e em parte indeterminado, mas é evidente que esse estar aí para mim, tal como o que nele é dado, é de outro género: «o mundo aritmético só está ai, para mim, se estudei aritmética e desde o tempo em que a estudei, se me instruí nas ideias aritméticas, as vi e assim me aproprio delas com um horizonte universal, permanentemente. Mas o mundo natural, o mundo no sentido habitual da palavra está e estava permanentemente aí, para mim, durante o tempo em que vivo de modo natural dirigido directamente para ele». Acrescenta Husserl que «em rigor esse mundo das formas aritméticas só está “presente” para mim, enquanto me encontro ocupado aritmeticamente. Só então, na criação aritmética originária, na produção de formas aritméticas, tenho esse mundo perante os olhos, e, considerando os produtos acabados, de certo modo fórmulas, que entendo, e na consciência não clara de recordação de amplas conexões em que ordeno essas fórmulas, tenho uma consciência mediata de um vasto mundo aritmético que me é acessível e no qual agora me estabeleço».

O mundo dos números é preciso entrar nele e só nele me estabeleço, na medida em que exerço uma actividade de matemático. O mundo natural, pelo contrário, encontra-se sempre presente, vivendo Cu imediata e directamente nele. Mas as expressões “mundo dos números”, “mundo aritmético” e outras semelhantes não introduzem platonismo algum. Visam apenas o alargamento da noção de mundo natural, isto é, do mundo que nos está presente, no qual nos encontramos como num mundo de coisas Mas, o mundo real, à diferença dum “mundo dos números”, está-me presente directa e indirectamente por uma experiência real o possível, mesmo antes de alcançar um “mundo ideal”, continuando presente ainda, quando mo encontro inserido completamente, por exemplo, no mundo ideal da aritmética.

Uma primeira análise pareceria revelar que entre esse mundo natural o os mundos ideais, por exemplo o mundo da lógica, da aritmética, etc., em que o cogito se move, não só apresenta relação alguma, se abstrairmos da relação de todos eles ao eu, em virtude da qual posso livremente orientar os meus actos em relação a cada um deles. Mas, reparando melhor, há uma certa ligação entre, por exemplo, o mundo ideal da aritmética e o mundo real: alcançado o primeiro, possui este para mim uma relação temporal, uma relação com temporalidade e com espacialidade em que me encontro como estudioso. O mundo aritmético tem pois para mim uma estrutura sensível, como algo que se encontra escrito, impresso, sob a forma de expressões afirmativas objectivas, e assim localizadas adequadamente no mundo real, como coisas escritas, etc..

O mundo natural abrange também os mundos circundantes (Umwelten) de tipo intersubjectivo; o que vale para mim é também válido para todos os outros homens que encontro no meu mundo ambiente (Umwelt). Pela experiência que deles tenho como homens, considero-os sujeitos pessoais a título idêntico a mim, cada um deles articulado ao seu correspondente Umwelt. E «por isso mesmo é possível conceber o meu mundo circundante e os de cada um dos outros sujeitos, como formando objectivamente um só e o mesmo mundo que simplesmente chega a cada uma das consciências de maneira diferente». Cada um, colocado no seu posto, vê as coisas presentes e, em função dele, tem diferentes aparências de coisas (Dingeerscheinungen). Cada um possui o seu campo de percepção e de recordação bem diferenciado dos outros e, mesmo o que é recebido em comum, a título intersubjectivo, chega à consciência de diferentes maneiras, de acordo com diferentes modos de apreensão (Auffassungsweisen), graus de clareza, etc.. «Com tudo isto entendemo-nos com os nossos vizinhos e possuímos conjuntamente uma realidade espácio-temporal tomada como um mundo circundante (Umwelt) existente para lodos nós, embora nós mesmos lhe pertençamos».

Excertos de

Heidegger – Fenomenologia e Hermenêutica

Responsáveis: João e Murilo Cardoso de Castro

Twenty Twenty-Five

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