(Morujão1961)
As análises levadas a efeito nos parágrafos anteriores vão permitir a Husserl atingir o limiar da esfera transcendental. É uma verdade, confirmada pela própria evolução das ideias, que a experiência humana segue de facto um curso que obriga a nossa razão a ultrapassar o plano das coisas dadas intuitivamente, situando sobre esse plano e baseado nele, uma verdade física. Ora esse curso da experiência humana podia também ser outro. Não significa esta afirmação que o desenvolvimento humano não ultrapassasse, de facto, o estádio pré-científico nem o devesse ultrapassar, de tal modo que o mundo físico continuaria a ter a sua verdade embora nada soubéssemos acerca dela. Husserl, levando ao extremo a noção de contingência das coisas exteriores, acima estabelecida, vai supor que as coisas, embora se apresentassem como de facto se apresentam, apenas se manteriam continuamente no seio da diversidade da experiência como unidades intencionais. Podemos ainda ir mais longe e levar a efeito em pensamento, a “destruição” da objectividade das coisas consideradas como correlatos da consciência empírica, ou, o que é o mesmo, correlatos da experiência; «as coisas são o que são na medida em que são coisas da experiência; só esta lhes prescreve o sentido». Este sentido é a unidade intencional de um decurso de aparências, a ordem deste diverso, que é contingente e destrutível em pensamento, uma vez que a consideração empírica implica a possibilidade de uma pluralidade de encadeamentos, e mesmo a sua destruição no caso das experiências se mostrarem contraditórias. A ordem que de nós dispomos não é necessariamente única ou permanente. É apenas uma das ordens possíveis.
Se as coisas são o que são na medida em que são coisas da experiência, também o mundo, como “omnitudo realitatis”, se apresenta como mundo da experiência. Portanto, se do ponto de vista lógico é possível supor uma realidade fora deste mundo, pois nisso não se manifesta contradição formal alguma, não é menos verdadeiro que essa realidade deve necessariamente entrar na experiência, pois deve aparecer como unidade legitimável do encadeamento da experiência que lhe diz respeito; «a possibilidade lógico-formal de existirem realidades fora do Único mundo espácio-temporal lixado pela nossa experiência actual é um absurdo de facto. Se de qualquer modo há mundo, coisas reais, as motivações das experiências que as constituem devem poder integrar-se na minha experiência». Contudo nenhuma evidência exige que as experiências actuais se desenrolem precisamente segundo determinadas formas de encadeamento. Da essência da percepção ou de qualquer intuição empírica em geral nada disso se conclui; «pelo contrário, é perfeitamente possível que a experiência se dissipe em simulacros, devido a conflitos internos e não somente no pormenor; que cada simulacro, considerado no seu lugar, não seja justamente aquele que exige um novo alargamento da rede encadeada de experiências para salvaguardar a concordância do conjunto; é possível que na experiência pululem conflitos irredutíveis, não só para nós, mas em si; que a experiência se revolte, por uma vez, contra a pretensão de manter constantemente a concordância entre as posições de coisas; que do seu encadeamento desapareça toda a ordem coerente entre os esboços, as apreensões, as aparências; em resumo, que não haja mundo». Apesar disto, embora necessariamente se modificassem o ser da consciência e de todo o fluxo de vivência em geral, no caso da anulação do mundo, uma coisa é certa: é que não seriam atingidos na sua existencia. Essa eliminação do mundo significa para a consciência que esta permaneceria intencional, visando embora, não um objecto manifestado através de encadeamentos convergentes no seio da experiência, mas o caos. Logo, nenhum ser real, transcendente é necessário ao ser da consciência. Quer dizer, para empregar a designação de Husserl, a consciência revela-se como o resíduo fenomenológico, que permanece depois de se colocar “fora de circuito” o mundo natural com todos os entes intra-mundanos, incluindo nós mesmos.
Em rigor não se perdeu o mundo; ganhou-se a totalidade do ser absoluto que, entendido concretamente, engloba em si todas as transcendências mundanas, constituindo-as na sua esfera. O mundo transforma-se num ser puramente intencional; vale para mim, nesta nova atitude, como fenómeno.
Fixemo-nos agora no que seja o campo fundamental da fenomenologia. Para isso, regressando à atitude natural, executemos todos os actos pelos quais o mundo “está aí” para nós. Desta maneira vivemos na esfera do perceber e do experimentar, ou seja, no âmbito dos actos téticos, de posição, em que nos aparecem unidades de coisa e nos são dadas com a marca de “presentes” e “reais”. Nisto consiste o viver directo no mundo. Tomando como base essas transcendências determinadas pela experiência directa, podemos realizar actos científicos de acordo com as regras da lógica e metodologia experimental, concluindo por estabelecer novas transcendências. A atitude fenomenológica não consiste em seguir essa orientação; pelo contrário, a fim de superarmos esse nível, há que interceptar de raiz a execução de todas essas teses cogitativas, ou seja, pormo-las “entre parêntesis” e não nos associarmos mais a elas. Em lugar de viver nelas, de as executar, levamos a efeito actos de reflexão a elas dirigidos. É nestes actos, que podemos chamar de segundo grau, e se reportam à esfera infinita de vivências absolutas, que repousa o campo fundamental da fenomenologia. Referimo-nos à consciência pura como resíduo fenomenologia; esta expressão do próprio Husserl é insuficiente para esclarecer o que seja o nível de consideração próprio da fenomenologia. É possível interpretar a consciência como “resíduo”, desde que a suponhamos como um fragmento da natureza que a epoché não pode alcançar; nada mais erróneo, uma vez que «a natureza não é possível a não ser a título de unidade intencional motivada na consciência por intermédio de conexões imanentes». Nem tão-pouco para o estudo transcendental da consciência se requer o estudo da natureza, a título de premissa, uma vez que esta é, na atitude transcendental, por princípio, colocada entre parêntesis. A redução fenomenológica não consiste unicamente na limitação do juízo a um fragmento destacado da totalidade do ser real de que depende, à semelhança do processo melódico usado nas ciências particulares, que por abstracção fazem incidir o interesse teórico sobre uma determinada zona da realidade total, alheando-se do restante, embora todo o cientista saiba que, de facto, não há sectores isolados. O conjunto do mundo forma uma única «natureza» e todas as ciências naturais se articulam originando uma única ciência da natureza. Na esfera das vivências, por necessidade essencial, tudo se passa diversamente: «este domínio está solidamente fechado sobre si mesmo, sem contudo possuir fronteiras que possam separá-la de outras regiões, pois o que a delimitaria deveria ainda participar com ela numa comunidade de essência».
Se, por um lado, a consciência deve ser o absoluto, no seio do qual se vem constituir todo o ser transcendente e, portanto, também o ser psicofísico na sua totalidade, por outro lado, a consciência é também algo de real (reales) e, assim, intra-mundano; quer dizer, a consciência pode perder o seu carácter de imanência pura e revestir as formas de fenómeno transcendente.
Isto é possível por participar a consciência na transcendência em sentido material; por outras palavras, é pela relação empírica ao corpo, que a consciência se torna uma consciência humana e animal de ordem real, situando-se no espaço e no tempo naturais (2). Mas a consciência não perde nada da sua própria essência neste entrelaçamento com a realidade material, nesta relação psicofísica. E é por isso que é possível aqui adoptar uma dupla atitude: ou a visada da atenção se reporta ao objecto percebido através da apreensão que instituirá a transcendência, ou remete, reflexivamente, para a consciência pura que a apreende. Por um lado, temos a atitude psicológica em que se visa, dentro da orientação natural, esta ou aquela vivência como estado de consciência de um homem, ou de um ser animado; por outro, estamos em presença da atitude fenomenológica, implicada essencialmente na precedente; por reflexão e por exclusão das posições transcendentes, a visada volta-se para a consciência pura e absoluta e descobre então a apercepção própria aos estados de consciência aplicada agora a uma vivência absoluta.