Morujão (1961) – Mundo e Intencionalidade – Introdução

(Morujão1961)

O presente estudo integra-se numa série de trabalhos que o autor vem há anos elaborando, para determinar, com a possível clareza, o método, os temas principais e a articulação sistemática da reflexão filosófica de Edmund Husserl, de modo a obter um fio condutor que lhe permita uma análise e compreensão seguras dos problemas da filosofia, tal como é vivida e se expressa em nossos dias. A obra de Husserl está na origem — e em certo sentido é a própria origem — de múltiplas correntes de importância capital do pensamento filosófico de hoje. E não basta, para justificar esta afirmação, mencionar a influência decisiva na chamada escola fenomenológica, de que foi o criador e o mestre incontestável e incontestado; para além desse circulo restrito dos seus mais próximos colaboradores e discípulos, a influência husserliana estende-se, encontrando as suas ideias acolhimento não só entre aqueles que se apresentam como seus continuadores, mas ainda em meios onde, à primeira vista, parecia não se poder surpreender qualquer ressonância da sua doutrina. Como tão bem sublinha Van Breda, «quem se tenha familiarizado com o seu pensamento encontrará por toda a parte vestígios dele. Terá constantemente a impressão de que Husserl passou por lá, mesmo que o autor afirme o contrário ou não pareça ter consciência desse facto». É assim perfeitamente legítimo que a investigação geral a levar a efeito se alicerce numa discussão, o mais possível vasta, dos temas e métodos do criador da fenomenologia.

Mundo e Intencionalidade — Ensaio sobre o conceito de mundo na fenomenologia de Husserl se intitula a dissertação. O velho tema do mundo, que na Cosmologia era estudado como totalidade das coisas, e durante a segunda metade do século passado e princípios do actual não apresentava significado algum para a filosofia, de novo recobra sentido, mas com nova determinação essencial. Ao ligarmos os conceitos de “mundo” e de “intencionalidade”, quisemos significar que a doutrina da intentio necessariamente conduz a uma peculiar ideia de “mundo”. Revelar a estrutura e o sentido desse “mundo”, parece-nos ser o verdadeiro tema da meditação husserliana. Afirma Merleau-Ponty, ao iniciar a sua Phénoménologie de la Perception, ser a fenomenologia «uma filosofia transcendental que põe em suspenso, para as compreender, as afirmações do mundo natural, mas também uma filosofia para a qual o mundo está sempre e “já aí” com antecedência à reflexão, como presença inalienável, e cujo esforço é o de recobrar esse contacto ingénuo com o mundo para lhe conceder finalmente um estatuto filosófico». Estas palavras traduzem rigorosamente o programa do Mestre de Friburgo de Brisgóvia.

As páginas que se seguem não poderão reduzir-se a isolar e explicitar um conceito, por mais central que seja, na doutrina husserliana; antes, se a filosofia é sistema, significam uma aproximação ao seu pensamento total; a posição de um conceito fundamental da filosofia, como é o conceito de “mundo”, necessariamente remete para o de intencionalidade, e através deste, articula-se com todo o universo filosófico do autor. Explicar o tema do mundo em Husserl equivale — ao menos em princípio — à estruturação sistemática de todos os seus filosofemas.

Tarefa delicada no caso presente. O pensamento de Husserl foi dominado por duas exigências antagónicas: uma, a de reunir em unidade sistemática a riqueza da sua meditação filosófica; outra, a de evolução constante das suas intuições, de sorte a superar as exposições de conjunto da sua doutrina. Esta permanente superação dos seus pontos de vista, que leva Husserl a desejar que todo o pensador autónomo possa mudar de nome de dez em dez anos, pois de facto se transforma em outro, mantém-se até aos últimos anos da vida; dai o carácter de introdução que possuem todos ou quase todos os trabalhos que deu à estampa, e a condição de principiante que para si reclamava. Depois das Investigações Lógicas, em que, ao lado de decisiva crítica ao psicologismo, se expõem elementos capitais, embora dispersos, para a compreensão da fenomenologia, por três vezes tentou Husserl apresentar uma visão sistemática da sua doutrina filosófica; em 1913 com as suas Ideias para uma Fenomenologia pura e Filosofia fenomenológica, cujo primeiro volume, único saído em vida do autor, apresenta o humilde subtítulo de Introdução geral à Fenomenologia pura; em 1928, depois das lições da Sorbonne e de Strasbourg, de novo tenta outra síntese de que sâo fruto as Meditações Cartesianas, aparecidas em tradução francesa no ano de 1931, outra introdução à fenomenologia, conforme reza o subtítulo e que o autor não publicou na língua original, por considerar, de certo modo, aquele ponto de vista ultrapassado ou já insuficiente; finalmente, como expressão da problemática ligada às Conferências de Viena, publicou na revista Philosophia de Belgrado, em 1936, as primeira e segunda partes de A Crise das Ciências europeias e a Fenomenologia transcendental. Uma Introdução à Filosofia fenomenológica. Estas três obras fundamentais, que ostentam o indicativo de Introdução, de forma alguma pretendem a facilidade de comunicar, em diluído resumo, as teses principais da esfera de ideias husserliana. São trabalhos em que o ritmo de pensamento é difícil e encontram-se sobrecarregados de problemas. Mais se devem considerar, com Fink, prolegómenos à maneira kantiana; não escritos propedêuticos, mas sim pontos de partida, inícios (Ansätze) de uma filosofia penosamente a conquistar.

É na mole de inéditos — cerca de quarenta e cinco mil páginas de autógrafos, estenografados no velho sistema Gabelsberger, tão espalhado pelos países de língua alemã, e já em boa parte transcritos e parcialmente editados — que poderíamos encontrar explicitada essa doutrina de que as obras publicadas em vida do filósofo suo meros Ansätze. Nestes inéditos, onde ao lado de obras quase prontas para a imprensa e de notas de cursos universitários, se recolhe a expressão gráfica dos solilóquios filosóficos de Husserl — nos chamados manuscritos de investigação — realiza-se a fórmula, tão cara ao Mestre de Friburgo, de trocar as “grandes notas” da filosofia sistemática no “dinheiro miúdo”, de resolver as grandes sínteses nas pequenas e pacientes análises que as suportam. Mas em todos eles se mantém o mesmo esforço de superar os resultados já obtidos, o aprofundamento dos problemas, o impulso para o mais originário, para o Ur. “Pouco preciso”, “não satisfaz”, “mal definido” são expressões que a todo o momento se surpreendem has margens dos manuscritos. É bem de ver que o leitor por vezes se perde nos meandros de um pensamento que se repete, se desvia do assunto, para retomar finalmente o fio do pensamento anterior a partir de outro ponto de vista. Em nenhum manuscrito ou série de manuscritos é a filosofia de Husserl globalmente apresentada. Todavia, encontram-se indicações preciosas sobre determinados problemas, por vezes incidentalmente, outras vezes em lugares onde a natureza do assunto tratado não fazia prever que fossem mencionados. Em todos os casos estamos em presença de ensaios, tentativas por vezes contraditórias que, se representam a expressão de uma genialidade filosófica indiscutível, não é menos verdade que levantam sérios problemas de interpretação.

O problema do mundo encontra-se abordado ao longo das obras de Husserl, embora fragmentariamente, mesmo quando expressamente tematizado. Questão central da fenomenologia, não foi porém, logo desde o início do período verdadeiramente criador deste filósofo, iniciado com o aparecimento das Investigações Lógicas, tema explícito de investigação. Solicitado pela polémica anti-psicologista, pela ideia de uma gramática pura, pela crítica das doutrinas clássicas da abstracção, em especial as de Locke e Hume, só pouco a pouco levou a efeito investigações parciais que conduziram ao domínio da problemática do mundo, estudando certas estruturas deste, relacionadas especialmente com o esclarecimento do fenómeno da percepção. Esta, com as modificações da recordação e restantes actualizações, só é possível se algo se der com-percebido; por outras palavras, a percepção de uma coisa não se dá isoladamente; há um fundo objectivo de algo mentado conjuntamente e que de modo íntimo está ligado ao âmbito em que a coisa aparece. Uma casa, por exemplo, não se percepciona, a não ser como casa de uma determinada rua, de certo bairro, de certa cidade, etc. Em resumo, a coisa tem o seu horizonte que é conjuntamente percepcionado. É esta a primeira determinação do mundo: horizonte global da percepção.

Nas Ideias para uma Fenomenologia pura e Filosofia fenomenológica, com o aperfeiçoamento da problemática da redução, novas determinações da noção de mundo fazem o seu aparecimento. Na atitude natural, cremos na existência dos objectos, das coisas e do mundo, como omnitudo realitatis; crença de ordem dogmática, inteiramente polarizada no objecto, sustentando o acto de crença esse objecto sobre o “plano de fundo” do mundo. Este exerce uma influência de motivação sobre qualquer conteúdo particular, pois cada objecto surge sempre no modo de uma estrutura que a reflexão sobre o acto perceptivo esclareceu Como horizonte. Como totalidade, não tendo nunca sido tematizado num acto individual, é na presença de um objecto particular que o mundo chega à consciência, revelando-se como o terreno de toda a posição de crença, uma vez que não pode ser objecto de uma percepção evidente. No primeiro volume das Ideias o problema vai ainda pór-se relativamente à constituição desse mundo; esse terreno de crença (Glaubensboden) de toda a percepção vai ser interpretado como expressão da actividade constitutiva da subjectividade transcendental e as análises do segundo volume dessa obra, bem como das Meditações Cartesianas, outra finalidade não expressam que não seja essa explicitação do mundo (Auslegung der Welt), partindo do inundo das coisas, que é o fundamental, até ao mundo humano circundante (Umwelt) com toda a sua variedade e complexidade, etc.

Na Lógica formal e transcendental aponta novo ponto de vista: o mundo como “a priori sintético material”. Esta nova determinação surge motivada por problemas relativos à estrutura da ciência; concretamente, sobre se a doutrina analítica formal da ciência não teria necessidade de ser completada por uma doutrina material; se a analítica, transformando as matérias de conhecimento em modos de alguma-coisa-em-geral, não necessita que se faça desaparecer essa generalidade vazia, fazendo de novo afluir o que a preencheu. Assim, ao lado de um a priori analítico, surge a ideia de um a priori material sintético, universal, «que liga e reúne numa totalidade todos os domínios particulares materiais»; todo o existente pensado como determinado e determinável materialmente, de maneira concreta, é, por essência, um existente num universo de existência, num mundo, o a priori sintético material. Ainda nesta mesma obra a propósito da análise do juízo, apresenta Husserl o mundo como substrato último e fundamento da verdade do juízo, com a característica de mundo da experiência (Erfahrungswelt), interpretado semelhantemente ao que vai ser a análise do Lebenswelt da época derradeira. O mundo científico pressupõe o mundo da experiência e não se pode desenvolver sem a doação prévia deste último. Simplesmente, ao invés do que vai aparecer na última fase do pensamento husserliano, a análise do mundo da experiência realiza-se, não para regressar da ciência ao Lebenswelt que a fundamenta e deste modo descobrir nela o que há de oculta insuficiência, mas com a finalidade de preparar o terreno, através da análise do mundo da experiência, «para os mais altos problemas da constituição da realidade científica no saber científico».

Finalmente, o Lebenswelt apresenta-se em Experiência e Juízo e A Crise das Ciências europeias e a Fenomenologia transcendental. Na primeira destas obras surge como base para a classificação da genealogia do juízo predicativo; a evidência judicativa remete para a evidência do objecto e esta última para a experiência como evidência de objectos individuais. O primeiro elo da teoria genética do juízo consistirá em uma teoria da experiência do objecto individual, que, por sua vez, pressupõe o mundo como terreno universal de crença e horizonte de todos os possíveis substratos de juízos.

Em última análise, a evidência predicativa fundamenta-se na evidência da experiência e cada experiência individual remete para o mundo da experiência que é o Lebenswelt, «isto é, o mundo em que nós continuamente vivemos e terreno de base para lodos os actos cognoscitivos e todas as determinações científicas» É deste Lebenswelt que se retrocede à actividade subjectiva a partir da qual aquele mundo se constitui.

A estrutura do Lebenswelt é objecto de estudo em A Crise das Ciências europeias e a Fenomenologia transcendental. Desde a questão de uma ciência do Lebenswelt até ao problema de uma ontologia do Lebenswelt, são os temas relativos a este assunto tratados também de maneira fragmentaria, reduzindo-se quase a simples ponto de partida ou começo de um estudo, uma vez que a Husserl, nessa obra, interessa menos uma tematização do mundo da vida que obter, a partir dela, um caminho para a filosofia transcendental. Os elementos estruturais do mundo teriam por finalidade serem fios condutores (Leitfaden) para o desvelamento de actos e complexos de actos intencionais em que o Lebenswelt se constitui para a consciência; esses actos seriam por sua vez constituídos como unidades de duração do fluxo temporal originário do eu. Uma análise progressiva, partindo da vida actual do eu, mostraria como se constituiriam os correlatos objectivos, ou fenómenos, de diferentes graus, até ao mundo das coisas, bem como os mundos dos objectos de grau superior que o Lebenswelt comporta em sua estrutura.

É pois a um estudo sobre o tema do mundo em Husserl que estas palavras servem de introdução. Mas não é escopo do autor apresentar unicamente uma tipologia dos diferentes pontos de vista a partir dos quais é encarado este tema. Antes tem em conta qual venha a ser o verdadeiro estatuto filosófico do mundo, o que em seu entender só pode elucidar-se, se forem devidamente esclarecidas as relações entre constituição e intencionalidade.

É evidente que, embora tendo presentes os resultados dos principais estudos sobre a fenomenologia — alguns de altíssimo valor hermenêutico —, é com base nos textos de Husserl que se desenvolve o presente trabalho. Textos impressos, em primeiro lugar, quer os aparecidos em vida do filósofo de Friburgo, quer os editados pelos Arquivos Husserl de Lovaina, sob a direcção do R.P. H.L. van Breda OFM, e incluídos na série das obras completas de Husserl em vias de publicação. Secundariamente, alguns manuscritos inéditos, na medida em que poderiam esclarecer certos pontos obscuros. As referências a qualquer dessas fontes fazem-se em notas, por indicação de obra e página, transcrevendo-se o texto sempre que, pela sua importância, julgarmos dever ser posto em contacto com a interpretação que apresentamos. Exceptuam-se os excertos de manuscritos que, além de referência de cota do arquivo, se reproduzem sempre em transcrição.

 

Excertos de

Heidegger – Fenomenologia e Hermenêutica

Responsáveis: João e Murilo Cardoso de Castro

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