Morujão (1961) – As reduções fenomenológicas

(Morujão1961)

É agora ocasião, depois do que ficou escrito nos parágrafos anteriores, de esclarecer e de sistematizar a chamada epoché ou redução fenomenológica, uma vez que é por intermédio desta operação que se alcança o nível transcendental, único que, segundo Husserl, permite dar razão do mundo e das ciências dogmáticas ou ingénuas, ou sejam, ciências que se alicerçam no terreno do mundo da experiencia natural.

Os termos epoché e redução aparecem indiferentemente em quase todos os passos da obra de Husserl para designar o mesmo fenómeno; embora na prática se possam confundir, é necessário estabelecer entre eles uma diferença como entre dois momentos de uma mesma operação: a primeira, consistindo em “suspender” a crença na realidade, “suspender” o valor existencial do mundo, “suspender” o viver dirigido directamente a algo (Dahinleben); a segunda é consequência da primeira: porque operei a epoché, é que posso reduzir o mundo, no seu valor de ser ingénuo, ao fenómeno transcendental e revelar este último como correlato imediato da consciência.

Uma vez apresentada em esboço a possibilidade da redução fenomenológica, põe-se a questão de investigar quais os graus deste redução, isto é, quais os tipos de saber que a fenomenologia pode invocar a título de prolegómenos e quais aqueles que lhe são interditos e, por consequência, obrigatoriamente se devem “colocar entre parêntesis”. É a este título que é legítimo falar em reduções fenomenológicas.

Imediatamente se nota que, pondo fora de circuito o mundo natural, físico e psicofísico, se excluem com ele todas as objectividades individuais que se constituem mediante funções axiológicas e práticas da consciência: os produtos da civilização, obras técnicas e realizações artísticas, ciências de toda a espécie consideradas como factos culturais, etc. Quer dizer, não só todas as ciências da natureza como também os objectos culturais, no seu sentido cultural, sejam eles pessoas, comunidades humanas, formas de comunicação, como as línguas, o estado, o direito, a religião, caem sob a alçada de epoché, na medida em que requerem a atitude natural.

Executada a redução de todas as coisas ao fluxo da consciência, abandonado pois o nível do mundo natural, verifiquemos o que acontece a uma transcendência sui generis, Referimo-nos à transcendência de Deus. Certamente que se deve dar na imanência da consciência e, nesse caso, dar-se-ia segundo a forma de “perspectivas” convergentes, tal como a coisa material, protótipo da transcendência. Claro que Deus é transcendente num sentido diverso. O mundo natural revela-se coerente; a título de correlato intencional apresenta uma ordem que se pode pôr em relevo mediante as ciências classificadoras e descritivas; ao nível do pensamento teórico, as ciências matemáticas da natureza apresentam-no como “aparência” de uma natureza física submetida a leis naturais exactas. Em tudo isto, afirma Husserl, se manifesta uma admirável teleologia. Essa mesma teleologia se revela no mundo empírico, quando consideramos o desenvolvimento da série de organismos desde os mais rudimentares até ao homem e, neste, as obras culturais. Razões da consciência religiosa levar-nos-iam a conclusões idênticas. Não faltam pois, ao nível da atitude natural, motivos racionais que militem em favor da existência de um ser divino exterior ao mundo. Esse ser caracterizar-se-ia pela sua transcendência e ainda por ser absoluto. Além disso, pelas próprias considerações teleológicas apontadas, revelar-se-ia mediatamente. Este absoluto, este transcendente cai sob a alçada da redução fenomenológica; o mundo real e o próprio Deus, que apenas é uma transcendência polar-real desse mundo — portanto válida dentro dos limites intramundanos — ficam assim excluídas, a um tempo, do novo campo do estudo fenomenológico.

O mundo natural não se limita ao mundo da percepção; estende-se a todas as regiões a que preside a atitude natural, o Dahinleben; a esfera das matemáticas ficará assim também sujeita a exclusão e com elas a esfera da lógica formal bem como a de qualquer outra ciência de tipo eidético material, na medida em que não foram ainda susceptíveis de uma fundamentação adequada e, por conseguinte, se mantêm no plano “natural”.

Desta forma, todas estas realidades ficam reduzidas a “fenómenos” da minha subjectividade, do meu eu. Mas essas conexões de vivências dão-se como algo de facto individuai; os fenómenos estão individualizados de acordo com o que lhe corresponderia na atitude natural. Superar essa facticidade e pôr em relevo as essências e as leis essenciais próprias dos tipos correspondentes de vivências é tarefa dá chamada redução eidética. Usando a chamada técnica das variações, partir-se-á de uma vivência, que se variará de maneira totalmente arbitrária. «Verifica-se que a liberdade não poderia ser absoluta: há condições sem as quais as “variantes” não seriam variantes do modelo donde se partiu, dos “exemplos” da mesma espécie. Este invariante (…) define precisamente a essência dos objectos dessa espécie, sem o que seriam inimagináveis, no sentido de impensáveis». Deste modo se realiza a percepção das essências das vivências, tornando-se possível alcançar um campo fenomenológico de ordem essencial.

Com isto a epoché não atingiu ainda a sua realização plena; unicamente se operou uma primeira clivagem no âmbito das zonas susceptíveis de redução. É certo que o mundo material, Deus e as esferas ideais da matemática e da lógica, considerada como “mathesis universalis”, já se encontram fora de circuito. Mas quem sou eu que operei essas reduções? Embora as vivências fossem reduzidas, permaneceu mundana a consciência; mantém-se como o indubitável, depois de ter sido excluído o dubitável transcendente; mas sobre ela não se praticou redução alguma. A este nível denominaremos psicológica a epoché ou redução.

De novo se impõe um confronto com Descartes. Ao cabo do processo da epoché psicológica a situação, embora radicalizada, não difere essencialmente da cartesiana. A consciência permanece “mundana”. É, portanto, uma parcela do mundo. Este aparece reduzido, mas as vivências, mesmo reduzidas, e as essências nelas implícitas, na medida em que não conteúdos de actos, possuem ainda uma vinculação mundana. Para Descartes, também o cogito, ponto de conclusão da dúvida, é mundano; é uma partícula indubitável do mundo e toda a marcha do pensamento do filósofo francês consistiu em reconquistar, a partir do cogito, mediante uma cadeia de deduções, o mundo anteriormente desvalorizado.

Sendo o mundano o transcendente típico, nova redução se deve operar sobre a consciência psicologicamente reduzida, de molde a purificá-la e a todos os seus actos.

O homem é, pois, como pertencente ao mundo natural, tal como acontece com as diferentes formas de comunidade e sociedade, atingido pela redução. Mas esta não vai fazer do eu da redução psicológica um nada transcendental. Praticada a redução de todas as coisas do fluxo de consciência, percorrendo este fluxo das múltiplas vivências não encontramos, na trama destas, o eu puro como vivência entre as demais, nem mesmo como um fragmento original de uma vivência, que surgiria com esta e de novo desapareceria com ela. «O eu parece constantemente estar aí, mesmo necessariamente, e esta permanência não é, manifestamente, a de uma vivência que permanece como entorpecida, a permanência de uma “ideia fixa”. Antes pertence a toda a vivência que aparece e se escoa; o seu “olhar” dirige-se para o objecto “através” de todo o cogito actual. Esse raio visual (Blickstrahl) varia com cada cogito, de novo surge com um novo cogito e desvanece-se com ele. O eu, contudo, permanece idêntico». Toda a cogitatio pode mudar, mesmo se supusermos que essa caducidade é necessária e não apenas, como acontece, uma caducidade de facto. O eu, esse, parece ser um elemento necessário, mantendo, através de todas as alterações reais e possíveis das vivências, uma identidade absoluta que nos não permite considerá-lo, de certo modo, como uma parte ou momento real (realles) das próprias vivências. O eu puro revela-se como uma transcendência original, como uma transcendência no seio da imanência.

Temos assim terminado o processo redutivo; a posição entre parêntesis da tese natural que ainda afectava a consciência, permite-nos abandonar completamente a posição “ingénua” do mundo e ascender ao campo imenso da consciência transcendental.

Resumindo: redução psicológica, redução eidética, redução transcendental, três momentos distintos de um processo redutivo que em Husserl aparece designado, umas vezes genericamente como fenomenológico, outras vezes mais rigorosamente como transcendental.

Naturalmente que se apresenta aqui uma dificuldade; se pomos fora de circuito o conjunto do mundo natural e todas as esferas transcendentes de ordem eidética, também não é menos verdade que esse eu fenomenologizante, para a redução atingir o nível transcendental, também terá por sua vez de praticar sobre si mesmo a epoché. «Poderemos nós, fenomenólogos, colocar-nos fora de circuito, sendo também membros do mundo natural?». É preciso submetermo-nos às exigências da redução fenomenológica e portanto devemos eliminar qualquer proposição que contenha explícita ou implicitamente posições naturais relativas à nossa existência empírica. Em Ideen I admite que o fenomenologista, aliás como qualquer outro investigador, referindo-se à sua própria existência, faz a distinção entre o sujeito que elabora a fenomenologia e o estatuto eidético das proposições fenomenológicas em si. Esta primeira determinação do estatuto do fenomenólogo é insuficiente. Certo é que este está na vida quotidiana interessado em vários afazeres, como sejam, cidadão de um Estado, pai de família, cientista, professor, etc. Cada um destes afazeres tem o seu tempo próprio e assim também o homem, como fenomenólogo, teria o tempo próprio em que realizaria a respectiva atitude fenomenológica, como se fosse qualquer epoché profissional (Berufsepoché). Para Husserl, o decisivo é que a diferença entre a epoché, a que o interesse profissional do sapateiro obriga, é tão diferente da do fenomenólogo como a de este é diferente da epoché do cientista. A epoché fenomenológica transcende o plano das outras; essas dão-se dentro da atitude natural e a primeira, possibilitando o nível de consideração transcendental, traz consigo uma nova vida e, antes de mais, uma nova vida teorética. É chamada a realizar uma completa alteração pessoal e com tal radicalidade, que Husserl não hesita em compará-la a uma conversão ética e mesmo religiosa, atribuindo-lhe o significado de trazer consigo a maior alteração existencial que é posta à humanidade como humanidade.

Excertos de

Heidegger – Fenomenologia e Hermenêutica

Responsáveis: João e Murilo Cardoso de Castro

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