(Morujão1961)
Capítulo 1 O MUNDO NATURAL E O PROBLEMA DA SUA FUNDAMENTAÇÃO
Embora as ciências naturais não possam, pela sua própria estrutura, atingir um conhecimento sem pressupostos, nem por isso «resulta do descobrimento da Natureza como unidade do Ser no tempo e no espaço, seguindo leis exactas naturais», o chamado naturalismo ou filosofia naturalística, que «se propala na medida da realização progressiva desta ideia [isto é, da unidade do Ser no tempo e no espaço] em ciências naturais, que constantemente se multiplicam, fundamentando uma superabundância de conhecimentos rigorosos». É com base nestes conhecimentos que o naturalismo interpreta erroneamente o sentido da existência da própria natureza, julgando atingir nesta, tal como a ciência física a revela, o ser absoluto; e em seguida reduz a ela (natureza) a totalidade do ser concebido à imagem da coisa material. Esta última anuncia-se através dos fenómenos subjectivos da experiência, dando-se neles como realidade absoluta, Oslo naturalismo permanece lauto nos quadres idealistas como realistas. A totalidade do ser é considerada de natureza psico-física e esta concepção não seria em coisa alguma modificada, se a natureza física fosse dissolvida de maneira sensualista em complexos de sensações, em cores, sons, pressões, etc., e, igualmente, o chamado psíquico resolvido em complexos complementares dos primeiros ou complementares de outras sensações. Em um e outro caso, o ser é sempre concebido como a matéria inerte. E é também nesta identificação ontológica da consciência à matéria que se deve procurar a raiz profunda da materialização, da naturalização, da coisificação da consciência. Esta coisificação será inevitável, por mais ensaios que se façam por conceber a essência da consciência de modo diferente do da essência da coisa material; tanto na tentativa de colocar a consciência ao lado do mundo físico como na de resolver este último em conteúdos daquela, se revelam consciência e mundo físico como pertencentes à natureza, como maneiras idênticas de se manifestar e de existir; o vício reside em se generalizar o conceito de existência subjacente à concepção naturalista.
Numa concepção naturalista, reduz-se a filosofia a uma simples indagação do processo do conhecimento, identificando-se com a psicologia considerada como ciência da natureza. A lógica reduzir-se-á a uma arte fundada na psicologia que estuda as leis do pensamento e, no problema gnoseológico, vai o psicologismo colocar sujeito e objecto do conhecimento no mesmo mundo — ou seja, na natureza, procurando investigar as causas que produzem o fenómeno cognoscente, isto é, a excitação dos órgãos dos sentidos pelo objecto exterior, os reflexos, as reacções, etc.. «Quando o naturalismo é idealista — o que em nada altera a sua essência — trata-se de saber como se produz a corrente de consciência, quais as causas que no interior dessa corrente devem entrar em jogo, etc, para que em certos momentos penetre na corrente a evidência que, no psicologismo, não passa de um sentimento e está despida de qualquer valor objectivo». Não sendo toda a vida consciente mais do que uma corrente de estados inertes de átomos psíquicos, a evidência é um átomo entre outros átomos. A verdade reduz-se a esse sentimento de evidência.
Mas não é só o naturalismo, nas suas formas típicas ou mitigadas, que por Husserl é desvalorizado na sua pretensão de se arvorar em filosofia, isto é, em teoria explicativa do mundo: também todas as filosofias tradicionais, por mais respeitáveis, são postas de lado, sob a acusação de falta de rigor. Não será a filosofia, em vez de um saber universalmente válido, simplesmente a confissão do filósofo, a expressão da sua personalidade, mesmo da sua vitalidade, em suma, mera ideologia ou mundividência (Weltanschaung)!. Não há dúvida de que a qualquer filosofia deste tipo está reservada uma missão teleológica na evolução da humanidade, a saber: a da intensificação suprema da experiência da vida, da cultura, da sabedoria do seu tempo. Ao lado de uma filosofia como expressão de uma personalidade singular, mas que no fundo pertence à comunidade cultural e à época, temos uma outra forma que parece à primeira vista diferenciar-se desta. Queremos referir-nos à concepção intelectual da sabedoria, expressão da actividade filosófica dos grandes pensadores. Esta torna possível uma utilização lógica e leva mesmo à aplicação do método lógico, formado nas ciências de rigor. «Assim nasce uma mundividência filosófica que nos grandes sistemas responde com a máxima perfeição relativa aos problemas da Vida e do Mundo, levando do melhor modo possível à solução e ao esclarecimento satisfatório das discrepâncias teóricas, axiológicas, práticas da Vida que a experiência e a sabedoria, as meras opiniões sobre o Mundo e a Vida só muito imperfeitamente podem vencer». Mas qualquer mundividência filosófica pressupõe sempre algo que lhe serve de alicerce. Remete invariavelmente para os diversos grupos de valores (valores da ciência, artísticos, religiosos, etc.) que se supõem a priori como supra-subjectivos e obrigatórios. Ora, além de este tipo de filosofia ser centrado, as mais das vezes, numa intuição de determinado ente, violentando toda e qualquer outra região do ser a esposar as estruturas que essa intuição considera como absolutas (erro comum ao naturalismo), ou pelo menos a subordinar-se a elas, tem como terreno o mundo da atitude natural e por conseguinte é também uma forma dessa mesma atitude.
Resta ainda um outro tipo de filosofar, este não saído de círculos afectos aos investigadores das ciências da natureza, mas ligado ao movimento criador das ciências do espírito em geral e, particularmente, das ciências históricas. São os pensadores desta orientação que insistem na multiplicidade e oposição dos sistemas filosóficos que se foram sucedendo desde a antiguidade grega, pretendendo que a história e a mentalidade histórica desfazem para sempre a confiança que podemos depositar no valor absoluto e universal da filosofia e substituindo essa confiança por uma convicção da relatividade de todos os sistemas. «A teoria da evolução… relaciona-se forçosamente com a inteligência da relatividade da forma histórica da Vida. O valor absoluto de qualquer forma singular da constituição vital, da Religião e da Filosofia, desvanece-se perante o olhar que abrange a terra e todos os passados. Assim, a informação da consciência histórica, ainda mais radicalmente que o panorama do litígio dos sistemas, destrói a fé no valor geral de qualquer das filosofias que empreenderam exprimir, de modo concludente, a continuidade do Universo numa continuidade de conceitos».
Há uma verdade de facto nestas afirmações; a questão é de saber se, em princípio, seria justo atribuir-lhe generalidade. Será a história capaz de instituir por si mesma, de direito, a conclusão teórica que extrai acerca da impossibilidade de uma filosofia absoluta, universalmente válida? Se a filosofia mundividencial e a sua parente próxima, a concepção intelectual da sabedoria, expressa pelos grandes sistemas filosóficos, são realizações culturais, portanto motivadas pelas circunstâncias históricas existentes, não se poderá e deverá afirmar, levando até ao extremo limite as exigências do espírito histórico, a relatividade das próprias ciências, uma vez que há igualmente uma evolução contínua nos sistemas científicos, e declarar-se a impossibilidade de um conhecimento válido de modo universal?. «O historicismo consequente acaba no extremo subjectivismo céptico. Então, as ideias de Verdade, Teoria, Ciência, como todas as ideias, perderiam o seu valor absoluto. (…) Não haveria um valor que meramente ou “em si” o fosse, que o fosse, ainda que ninguém o realizasse e que nenhuma Humanidade histórica chegasse a realizá-lo. E portanto também não o haveria para o teorema da contradição, nem para a lógica, aliás já em pleno desenvolvimento actualmente. Talvez que os princípios lógicos da coerência acabem por transformar-se nos seus contrários». Vem pois esta corrente de pensamento tomar posição na esfera dos factos da vida mental, empírica, toma-a em absoluto e, embora por caminhos alheios ao naturalismo, conclui num relativismo muito afim ao psicologista e de análogas conclusões cépticas.
Se as filosofias pretéritas e com elas o pensamento de cariz naturalista ou historicista falham por falta de rigor e por os seus pontos de partida admitirem implicitamente pressupostos que urge tematizar uma filosofia autenticamente rigorosa e qual o tema a que o seu investigar se encontra necessariamente dirigido.
«Uma filosofia — explica Husserl — não pode começar simplesmente, de maneira ingénua, como fazem as ciências positivas que se estabelecem no terreno previamente dado da experiência do mundo, como sobre um pressuposto cuja existência é evidente». E é por isso — acrescenta — que as ciências positivas são não-filosóficas: não são as ciências últimas e absolutas, que se justifiquem a partir de fundamentos últimos do conhecimento. Não quer isto significar ser o mundo algo duvidoso e que seja urgente, ou demonstrar a sua indubitabilidade ou, pelo contrário, eliminá-lo como vã aparência. É perfeitamente indubitável que o mundo existe, mas outra coisa é esclarecer e justificar essa indubitabilidade. Por outras palavras, à filosofia, tal como a concebe Husserl, ou à fenomenologia — tal é a designação husserliana do seu próprio pensamento filosófico — compete o estudo do mundo que é pressuposto pelas ciências mundanas ou positivas. Se a filosofia pretérita, a metafísica dogmática, portanto, era movimentada pela questão fundamental da origem do ente (Seiendes), a fenomenologia, por seu termo, pergunta pela origem do mundo.
Este perguntar implica que a filosofia se encontra numa nova dimensão e a esta corresponda um método radicalmente novo, oposto aos métodos “naturais”. Mas não quer dizer que a fenomenologia, pela sua pretensão a um conhecimento absoluto do mundo, se vá enquadrar nos sistemas especulativos da filosofia tradicional, que falharam na justificação das suas teses especulativas; nem tão-pouco caia numa cientificação da metafísica especulativa, num tratamento dos problemas com métodos “científicos”. A filosofia que Husserl vai instaurar é saber no sentido mais genuíno, saber rigoroso: «para mim filosofia, precisa o pensador de Friburgo, segundo a sua ideia, é idêntica a ciência “rigorosa” no sentido mais universal e radical, ou, o que é equivalente, justificação última para si-mesma, na qual, portanto, qualquer “evidência”, seja ela predicativa ou ante-predicativa, não pode figurar como base de conhecimento admitida sem exame».
Se é certo que todo o autêntico filósofo se deve necessariamente considerar como principiante e tornar-se para si mesmo filósofo «uma filosofia, que se começa a realizar, não tem nada de uma ciência relativamente imperfeita que se vai aperfeiçoando por uma espécie de progresso natural. O seu sentido de filosofia inclui um radicalismo do acto fundador, uma redução a um estado absolutamente despido de todo o pressuposto, um método ele base pelo qual o filósofo que começa se assegura de um terreno absoluto como de pressuposto a elucidar de maneira absoluta, pressuposto esse que está na base de todos os pressupostos “evidentes” no sentido comum da palavra».
Em relação ao problema central, pretende por conseguinte a fenomenologia realizar uma compreensão filosófica do mundo, superadora de todas as formas mundanas de explicação, intelecção, fundamentação, etc, esforçando-se por captar conceptualmente o mundo a partir do fundamento último do seu ser, em todas as suas determinações reais e ideais. A fenomenologia é assim a filosofia primeira, a cabeceira de todas as origens, sem o estudo da qual qualquer ciência deve necessariamente permanecer ingénua. Mas, simultaneamente, pretende ser “ciência”. Sendo assim, há-de possuir o sentido formal de visar uma conexão teorética unitária do seu “saber”, e no mesmo tempo significa ainda uma transformação da ideia de ciência. A ciência, no sentido da fenomenologia, é um saber concebido como conhecimento do mundo a partir da sua origem e que, transcendendo em principio todas as formas de conhecimento mundano, realiza um novo conceito de ciência. Enquanto o conceito tradicional desta, tomado com a máxima generalidade, está fundamentalmente ligado ao conhecimento imanente ao mundo, a fenomenologia transcende essa noção, ao realizar um saber “transcendente ao mundo”. Neste saber, o “fundamento” de tudo aquilo que é conhecido na ciência imanente ao mundo pela experiência (ciências positivas), ou especulação, torna-se campo temático de uma experiência legitimadora e explicitadora. As ciências positivas (ou mundanas) adquirem deste modo uma fundamentação radical através de uma ciência do mundo dado previamente a partir de uma pura experiência. Esta ciência é a fenomenologia, ciência fundamentante de todo o conhecimento mundano em geral, pois exprime um método de conhecimento que conduz à origem do próprio mundo e o transforma em objecto temático de um saber possível. «Este método, este caminho de conhecimento, que determina no mais profundo (zutiefst) o carácter próprio da fenomenologia, é a “redução fenomenológica” ou, mais precisamente, a “redução transcendental”. Não consiste essa investigação num método de valorizar o mundo ou de lhe escamotear o seu autêntico sentido natural, mas numa via de poder chegar a ele, de tal modo, que se descubra o primitivo sentido do mundo da vida natural e das ciências positivas que nele se estabelecem. Esse método, que possibilita esta reflexão última, é assim o proto-método de todos os métodos filosóficos e «a primeira ciência que surge a partir desse terreno absoluto, a filosofia primeira num sentido claro e determinado, é a fenomenologia».
Como norma de todo o proceder fenomenológico, adopta Husserl o chamado princípio dos princípios que nenhuma teoria imaginável poderá pôr em causa e que delimita o campo onde, de direito, se pode haurir qualquer conhecimento válido, a saber: que toda a intuição doadora originária, isto é, tudo o que intuitivamente se dá de maneira originária, “em pessoa”, dentro dos limites em que se dá, deve ser considerado como fonte de conhecimento. Este apelo à intuição directa é o que dá sentido ao lema “zu den Sachen selbst”; há que pôr de lado significações vagas, mal definidas, inadequadas ou nulas; voltemos às próprias coisas. É esta visão imediata, que não é apenas visão sensível, empírica, mas «visão em geral, como consciência doadora originária em todas as suas formas, que é a fonte última de direito para toda a afirmação racional». Partir do que é dado, tal como é dado, ou, o que é o mesmo, ir às próprias coisas, pressupõe saber o que são essas coisas de que se tem necessariamente de partir. Em primeiro lugar obriga ao abandono das palavras que apenas significam o real ausente; toda a visada unicamente significativa move-se numa atmosfera de abstracção que implica pressupostos; mesmo o pensamento intuitivo, desde que esteja exclusivamente voltado para o objecto, não se liberta da abstracção e da parcialidade na referência objectiva. O verdadeiro regresso às coisas implica o regresso aos actos onde a presença intuitiva da coisa se revela ou seja, implica o abandono de uma evidência directa, vivida ingenuamente, como é próprio do mundo natural, para alcançar uma evidência de ordem reflexa a fazer surgir uma nova dimensão da racionalidade que reintegra as noções na perspectiva em que aparecem ao sujeito. A fenomenologia vai situar-se a um nível superador do plano explicativo das ciências, que considera o objecto simplesmente dado, fazendo abstracção do movimento intencional que nos remete para as coisas, pondo de lado o esforço que as faz ou deixa aparecer. E o apelo a uma intuição desta ordem, em que as coisas se dão na sua plenitude, por conseguinte com evidência, é uma ideia que Husserl não abandona ao longo de toda a sua obra, chegando mesmo a afirmar que todo o ensaio de atingir uma evidência plena conduz à fenomenologia.
Para tornar inteligível esse dado evidente, torna-se uma da tarefas primordiais do fenomenólogo descrever o que se dá, tal como se dá. Para alcançar essa finalidade, não utiliza Husserl um método dialéctico, nem ainda menos um método de dedução. A explicação fenomenológica realiza-se por uma análise determinada (análise intencional) que desimplica as significações escondidas ou esquecidas, que o dado pode conter. A fenomenologia — afirma o Mestre de Friburgo — compara, diferencia, relaciona, separa em partes ou divide em momentos, realizando tudo isto na esfera da intuição pura, pondo de lado qualquer processo teorético ou matematizante. Mas, ainda quando o fenomenólogo utiliza técnicas racionais de carácter dedutivo, ou, à maneira kantiana, procura condições de possibilidade, é sempre dentro de uma atitude reflexiva e num registo descritivo que procede. A análise fenomenológica é, ou visa a ser, um processo de evidenciação.