Morujão (1961) – A consciência intencional

(Morujão1961)

Capítulo II A ESTRUTURA DA SUBJECTIVIDADE TRANSCENDENTAL

Analisando a minha situação no mundo natural, verifica-se que, como homem existente, estou incluído entre os demais objectos mundanos. Certo é que executo “cogitationes”, “actos de consciência”, em sentido estrito e lato, mas por serem factos realizados por um sujeito humano são eventos que se situam nessa mesma realidade natural. Mesmo na actividade científica, todos esses factos descobertos pela reflexão psicológica se interpretam como acontecimentos naturais; concretamente: como vivências de seres animados. Se nos fixarmos no plano da consciência, podemos estudar o que nela está contido a título imanente. Interessa-nos de modo particular saber como a realidade “natural” tem acesso à consciência. A epoché será a operação necessária que nos dará acesso a essa região da consciência pura e ulteriormente a toda a região fenomenológica.

No seio da atitude natural, portanto sem recorrer a qualquer espécie do epoché, podemos levar a efeito uma reflexão (psicológica) sobre o eu e vivências respectivas, a fim de esclarecer a essência da “consciência de qualquer coisa”. Pode-se tomar como ponto de partida o cogito cartesiano, o je pense, que engloba todas as vivências do sujeito. Suponhamos que temos em frente um papel branco; vejo-o e apalpo-o e esta percepção visual e táctil do papel, que constitui a vivência concreta do papel dado, é uma cogitatio, uma vivência da consciência; o papel é o cogitatum correspondente, não uma vivência de percepção, mas um percebido, algo material que por princípio não é uma vivência, mas um ente de um tipo totalmente diferente. Mais ainda, quando me apercebo do papel, quando para ele estou orientado, capto-o como sendo aqui e agora, extraindo-o de um plano de fundo da experiência formado por tudo aquilo que o rodeia: livros, cigarros, tinteiro, etc. que também são de certa maneira percebidos, pois estão colocados no campo de intuição. Simplesmente, enquanto me encontro orientado para a folha de papel, não me posso voltar para eles. Toda a percepção de coisas possui assim uma área de intuições formando um plano de fundo que também é uma vivência da consciência. A vivência primitiva pode sofrer certas modificações caracterizadas por uma livre conversão da visada, não apenas física mas principalmente mental, que a leva a destacar-se do papel percepcionado para se orientar para objectos que apareciam já no plano de fundo, dos quais portanto já havia uma consciência “implícita” mas que agora ascendem à consciência explícita, onde são percebidos “atentamente” ou “notados acessoriamente”. O que se passa na consciência percepcionante é válido para a consciência das coisas nas recordações, nas presentificações semelhantes à recordação e nas imagens livres. Todas se produzem na forma de “intuição clara” ou à maneira de representações “obscuras”, aparecendo-nos neste último caso como reais, possíveis, fictícias, etc.. Mais ainda: as vivências, por essência, estão sujeitas a uma modificação que se traduz pela passagem da consciência que visa o objecto de maneira actual para o modo de inactualidade e reciprocamente. Por outras palavras, a consciência explícita de algo e a consciência potencial são reversíveis.

A análise acabada de se executar é válida, mutatis mutandis, para todas as vivências do pensamento, do sentimento ou da vontade, tendo apenas em conta que, fora do exemplo acima citado, extraído da representação possível, o “estar orientado para”, “o virar-se para”, que indicam a actualidade, não coincidem com a atenção que extrai do seu plane de fundo os objectos de consciência a que se dirige. Todavia, para essas vivências continua a ser válido que as actuais estão circundadas por um halo de vivências inactuais. O fluxo de vivências nunca pode ser constituído por actualidades plenas.

Reservando a expressão cartesiana de cogito e cogitationes para a consciência actual de algo, poderemos definir como eu vigilante, o eu «que realiza continuamente a consciência no interior do seu fluxo de vivências sob a forma específica do cogito». Mas isto obriga, por essência a «que a cadeia ininterrupta das cogitationes seja a todo o momento circundada por uma zona de inactualidade sempre pronta a converter-se no modo de actualidade, como reciprocamente a actualidade em inactualidade». Apesar da diferença entre as vivências da consciência actual e as vivências inactuais, permanece contudo algo de essencialmente comum: tanto a cogitatio actual como a inactual são consciência de algo, mais rigorosamente são ambas consciência e da mesma coisa. Por isso, todas estas vivências se podem designar por vivências intencionais. A consciência é pois toda a vivência como intencional.

O conceito de intencionalidade, de raízes escolásticas, recebeu-o Husserl de seu mestre Brentano. Este último servia-se do referido conceito para estabelecer a distinção entre fenómenos psíquicos e físicos, com o fim de resolver o «problema de uma psicologia da introversão pura, a qual constituía um problema já desde Locke». Contudo a intencionalidade era neste autor tratada «meramente na reflexão ingénua, quer dizer, como um acontecimento no mundo, como um facto mundano». Apesar disso, vê Husserl nesse conceito «um grande descobrimento, mediante o qual, e só mediante o qual, foi possível a fenomenologia».

É arriscado e por vezes erróneo dizer que os objectos percebidos, fantasiados, julgados, desejados, etc, na forma perceptiva, representativa, ou em outra qualquer, entram na consciência; e, inversamente, que a consciência entra em relação com eles de qualquer modo e os recebe. O mesmo se diga a respeito da afirmação: «toda a vivência intencional contém em si algo como objecto». Não se trata «de tuna relação entre qualquer sucesso psicológico que se denominaria vivência e um outro existente real da natureza com o nome de objecto, ou de uma ligação psicológica que se produziria entre um e outro na realidade objectiva». Importa antes fazer incidir a atenção sobre «as vivências consideradas puramente em função da sua essência, como essências puras, assim como o que na essência está incluído “a priori” segundo uma relação de necessidade incondicionada».

Ao dizer-se que uma vivência é a consciência de algo, não significa que se considere a vivência como um facto bruto situado no mundo, imbricado de maneira especial num contexto psicológico de facto, mas é por necessidade essencial que a sua estrutura se revela como consciência de. Mais ainda, a essência da vivência implica: 1.° que a vivência seja uma consciência; 2.° aquilo de que é consciência; 3.° em que sentido determinado ou indeterminado o é. A intencionalidade não é uma ligação externa entre um facto psíquico e um facto físico, mas a implicação de um objecto por uma consciência. Por isso, na consciência inactual de algo se encontra essencialmente prescrito qual o tipo de cogitationes actuais, em que pode ser transposta, quando sofrer a modificação correspondente à orientação da visada da atenção para o que não fora anteriormente observado. Ou, de outra maneira, «a palavra intencionalidade não significa outra coisa que não seja esta particularidade fundamental e geral da consciência de ser consciência de algo, de trazer em si, como cogito, o seu cogitatum».

Claro está que toda a vivência, no sentido mais lato do termo, compreende tudo o que o fluxo de vivências engloba; quer dizer, ao lado das vivências intencionais, isto é, das cogitationes actuais e potenciais tomadas ha sua plenitude concreta, temos de considerar os momentos reais (reellen), susceptíveis de serem descobertos nesse fluxo ou nas partes concretas deste. Esses momentos reais (reellen), embora incluídos na unidade concreta da vivência intencional, não são intencionais, não são consciência de algo. A estes pertencem os chamados dados de sensação (Empfindungsdaten), de grande importância na intuição perceptiva das coisas.

Examinando mais detidamente uma vivência intencional actual, isto é, executada segundo o modo do cogito, verifica-se que nela o sujeito se dirige para o objecto intencional; à própria estrutura do cogito pertence, por essência, uma visada dirigida ao objecto que lhe é imanente, visada que parte necessariamente de um eu e que difere conforme o tipo de acto; assim, num acto de percepção, o eu percebe; na ficção, finge; no prazer, encontra prazer; no querer, quer, etc.. O próprio cogito pode transformar-se também em objecto intencional. Certo é que, enquanto vivemos no cogito, é isso impossível, mas há a possibilidade, de princípio, de a visada se voltar reflexivamente para o cogito; assim se engendra uma nova cogitatio que se dirige para si mesma. Por outras palavras, «toda a cogitatio pode tornar-se objecto do que se chama uma “percepção interna” e ulteriormente de uma valoração reflexiva, de uma aprovação ou desaprovação, etc.». Isto é verdade para os actos reais tanto como para os actos de que tomamos consciência “na” imaginação, “na” recordação, intropatia, etc. Podemos reflectir “na” imaginação, recordação, intropatia e transformar estes actos, dos quais tomamos consciência, em objectos que se captam e em objectos de “actos de tomada de posição” fundados nestes últimos, tendo em conta as diferentes modificações possíveis.

Finalmente, cumpre distinguir entre actos transcendentes (incluindo entre eles as percepções) e actos imanentes. Estes últimos, que também podem receber a designação de actos dirigidos de maneira imanente ou ainda vivências intencionais relacionadas de maneira imanente aos seus objectos, são «vivências cuja essência comporta que os seus objectos intencionais, se existem, pertençam ao mesmo fluxo de vivências a que elas pertencem. É o que acontece sempre que um acto se relacione com outro acto (por exemplo, uma cogitatio com outra cogitatio) pertencente ao mesmo eu. Neste caso, a consciência e o objecto correspondente formam uma unidade individual unicamente constituída por vivências. Na percepção imanente, o acto mais simples, a percepção e o percebido formam uma unidade sem mediação, a unidade de uma cogitatio concreta única; o mesmo se diga para as vivências que se apoiam sobre ela, como sejam as vivências de recordação.

Os actos dirigidos de maneira transcendente, as vivências intencionais estão dirigidas para essências, ou para vivências intencionais de outros eus, estão ligadas a outros fluxos de vivências; e, em geral, pertencem a esta classe de actos transcendentes todos os actos dirigidos sobre as coisas, sobre as realidades em geral.

Precisamente pela análise da vivência de coisas é que podemos caracterizar melhor a distinção entre vivências imanentes e transcendentes. É o que vamos realizar no parágrafo seguinte, analisando os actos transcendentes mais simples, isto é, as vivências de percepção. Perguntaremos portanto pelos elementos que formam a composição concreta da percepção em si mesma, tomada no sentido de cogito.

Excertos de

Heidegger – Fenomenologia e Hermenêutica

Responsáveis: João e Murilo Cardoso de Castro

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