Vamos ler primeiro uma passagem extraída de um dos primeiros documentos do distanciamento de Heidegger em relação a Husserl: a carta de outubro de 1927, denunciando as dificuldades que Heidegger teria encontrado ao colaborar com o antigo mestre por ocasião da redação do artigo Fenomenologia para a Enciclopédia Britânica.
<poesie>Concordamos com o seguinte ponto: o ente, no sentido do que você chama de “mundo”, não pode ser iluminado em sua (169) constituição transcendental pelo retorno a um ente do mesmo modo de ser.Mas isso não significa que o que constitui o locus do transcendental não seja absolutamente nada de ente — pelo contrário, o problema que surge imediatamente é saber qual é o modo de ser do ente no qual o “mundo” é constituído. Este é o problema central de Sein und Zeit — uma ontologia fundamental do Dasein. É uma questão de mostrar que o modo de ser do Dasein humano é totalmente diferente daquele de todos os outros entes e que é precisamente por causa deste modo determinado de ser que ele encobre em si a possibilidade de constituição transcendental 1.
Esta passagem já contém a leitura que Heidegger, e quase todos os que o seguiram, dariam à fenomenologia husserliana: uma espécie de cartesianismo retardado, uma “filosofia da consciência”, à qual se opõe (com a “primeira maneira” heideggeriana) uma filosofia da existência em situação, no mundo, sempre já presa na rede de relações práticas e afetivas com coisas e outros, de existência “factual”, “geworfene”, e assim por diante. No entanto, é um texto surpreendente em muitos aspectos.
E, antes de mais nada: “o modo de ser do ente no qual o ‘mundo’ é constituído” não é o mesmo que o do “mundo” que é constituído nele, ou das “coisas” neste mundo. Neste ponto, ao que parece, os dois filósofos concordam. Sem dúvida, já é estranho apresentar como um ponto de concordância entre os dois o que é, de fato, a conquista conceitual fundamental de Husserl, a saber, a diferença entre o modo de ser das coisas e bens que, em nossa atitude natural ou pré-filosófica, encontramos no mundo, incluindo nossa própria pessoa empírica, entre outras, e o modo de ser do “lugar do transcendental”. Esse lugar é essa vida real, que é nossa para cada um de nós, por meio da qual toda esta realidade acessa (é constituída para) a consciência e a linguagem (Heidegger, depois de tê-la chamado corretamente de “vida” 2, optará por “Dasein”). Mas vamos em frente: observando, no entanto, que essa diferença adquire um conteúdo perfeitamente claro somente se nos for dito como devemos acessá-la: em outras palavras, se ela for apresentada de uma forma propriamente fenomenológica, como Husserl não parou de fazer. Ou seja, como uma diferença entre os modos de ser originalmente dados, (170) respectivamente das experiências nas quais a realidade é visada e da realidade que é visada nessas experiências. Por exemplo: normalmente não preciso olhar para mim mesmo para saber se estou sentado ou andando, ao passo que preciso fazê-lo no caso de outras pessoas: no primeiro caso, andar é uma experiência sinestésica que entra na constituição da realidade espacial que me cerca, orientando os objetos em relação à minha direção de andar, revelando seus aspectos ocultos etc. No outro caso, é uma experiência sinestésica que entra na constituição da realidade espacial que me cerca, orientando os objetos em relação à minha direção de andar, revelando seus aspectos ocultos etc. No outro caso, é o caminhar que é originalmente um fato, e o modo de sua constituição é uma experiência visual. É nesse ponto que vemos o papel da redução fenomenológica: em outras palavras, a modificação da atitude natural, que consiste precisamente em colocar em parênteses minha adesão comum às motivações que me atestam, em ambos os casos, a realidade do caminhar. Aprendo, então, que as próprias experiências constitutivas são geralmente objetivadas, e de uma forma perfeitamente legítima na atitude natural: porque é um fato muito real, não é, que eu ando, assim como é um fato muito real que eu tenha tal e tal percepção visual. Se preferirmos um exemplo mais heideggeriano, acrescentemos ao caminhar sua qualificação afetiva — ando muito rápido porque estou atrasado ou percebo ansiedade no movimento frenético dos outros. Esse é um exemplo de Stimmung e, portanto, de um estado de espírito ou humor, que pressupõe sua base constitutiva na Befindlichkeit fundamental de nosso Dasein, ou seja, a preocupação ou pré-ocupação (Sorge) como um modo “ontológico” de abertura para o mundo, com sua própria temporalidade. Nesse meio tempo, introduzimos as correspondências terminológicas que facilitam a comparação: É claro que Heidegger, em Sein und Zeit, chama de “ôntico” e “ontológico” o que é em Husserl, respectivamente, o “encontrado no mundo” da atitude natural e o “campo da experiência transcendental”; que o Dasein corresponde à vida afetiva, perceptiva e apetitiva “reduzida”, assim apreendida como o locus da constituição original do mundo e não como a dimensão psíquica da realidade constituída, e que o nível da análise do Dasein corresponde ao da análise constitutiva como Husserl a desenvolve a partir do Livro II das Ideias.
- HEIDEGGER M., Lettre à Husserl, trans. in Heidegger, Cahier de l’Herne, Paris 1983, pp. 67-68[↩]
- Devo essa indicação relativa aos escritos anteriores a Sein und Zeit, coletados em Heidegger, Gesammte Ausgabe 56-57, a Claudio La Rocca, Universidade de Pisa[↩]