Monticelli (1997:152-154) – a perversão do amor

Ao contrário dos animais, que não podem enlouquecer — pelo menos não no sentido em que usamos o termo até agora, o que implica a presença de uma vida espiritual, embora anormal —, o homem não pode viver a qualquer preço.

Diz-se que o homem quer ser “bom”. Concordo: mas, no fim das contas, não é a satisfação do desejo de bem-estar, ou felicidade, que é a condição para aceitar a vida: caso contrário, quase ninguém a aceitaria. Ao invés, é a interpretação desse desejo. Em que consiste estar bem para cada um de nós? De que vive a esperança?

Sejamos claros. Essa interpretação da inquietude fundamental não tem nada a ver com conhecimento conceitual. Ao invés, ela se manifesta na própria conduta de nossas vidas, nas escolhas que fazemos nas inúmeras decisões que enfrentamos. Ela se manifesta no que nos tornamos como resultado de nossas ações, no que fazemos de nós mesmos.

Obviamente, esse processo, que coincide com o amadurecimento do indivíduo, nunca é isento de incerteza e sofrimento. Mas se, mesmo em meio à incerteza e ao sofrimento, uma vida de verdadeira experiência é vivida, ou seja, uma vida que permite o enriquecimento progressivo do conhecimento da realidade e, portanto, também da comunicação — com base em um acordo fundamental com relação à “realidade” — com os outros, então dizemos que a pessoa é “saudável”.

Mas vejamos o caso de alguém que, embora se comprometa com um curso de ação sempre que necessário, nunca está satisfeito com suas próprias decisões. Ele vivencia cada escolha como a perda irrecuperável de uma possibilidade de ser que a escolha oposta poderia ter realizado. Esse indivíduo acha impossível interpretar sua própria inquietude, saber o que quer de si mesmo, que tipo de pessoa gostaria de se tornar. Ele não sabe em que consiste seu próprio ser, seu bem ser, a satisfação de sua vontade mais profunda. Ele não tem ubi consistam. Esse indivíduo não tem senso imediato de sua orientação vital; ele está radicalmente desorientado. Também podemos dizer: ele é totalmente inseguro, nunca está sem cura com relação a si mesmo.

Mas a que se resume essa insegurança fundamental? Basicamente, o sentimento do valor da vida possível que seria dada com a alternativa recusada. Aqueles que vivem com essa insegurança fundamental nunca têm um senso imediato do valor de sua própria vida, tal como ela é. Eles nunca podem aceitá-la, nunca aceitam a si mesmos.

Aceitar a vida, para o homem, não significa simplesmente suportá-la, exercendo com toda a força dos instintos animais as funções nas quais ela consiste. Fazemos isso de qualquer maneira assim que começamos a respirar, e é preciso uma violência terrível para nos forçar a desistir. Aceitar a vida tampouco significa fazer um julgamento de valor positivo sobre a vida, possuir uma ideologia que nos convença de seu valor e manter essa convicção. Aceitar a vida não é algo que acontece no nível biológico ou no nível da consciência conceitual. É uma atitude afetiva que consiste em um sentimento imediato do valor da vida que é nossa. Ou, pelo menos, da vida que “ainda” é possível para nós (a “transcendência” binswangeriana). Portanto, é uma forma, de fato a forma fundamental, de amor, se o amor é o sentimento do valor do ser ao qual aderimos (nesse caso, o nosso, mesmo que seja puramente potencial). Nossa atitude afetiva fundamental em relação à nossa própria vida pode, portanto, ser marcada por um sim ou um não. Qualquer crise existencial que nos leve a uma mudança fundamental em nossas vidas começa com uma consciência desse “não” — uma consciência que exige que nos questionemos radicalmente e, portanto, que soframos profundamente (Santo Agostinho, o primeiro fenomenólogo de uma “conversão”, sabia bem disso). Mas se nos limitarmos a sobreviver, por assim dizer, com esse “não” surdo, então a própria fonte de qualquer sentimento de valor estará mais ou menos seriamente envenenada.

Essa atitude afetiva fundamental, que é marcada por um “não”, mas que obviamente não pode impedir que a vida continue da melhor maneira possível, é o que podemos chamar, com Santo Agostinho, de perversio amoris: uma perversão do amor-próprio, um apego à própria vida que não se dá por meio de um senso íntimo e mudo de seu valor; por meio de uma persuasão vital genuína, indissociável no homem, basicamente, de uma opção de valor estável, embora não expressa, de uma “interpretação” constante, embora muda, de ser “bom”. Essa perversão primária — um conceito não muito distante do conceito binswangeriano de Verstimmung — seria a forma primária da desordem do amor. Como, em que sentido, o distúrbio do amor seria a raiz de todo o mal-estar do espírito e até mesmo de sua verdadeira doença, ou seja, a interrupção de toda a possibilidade de experimentar o mundo real e de se comunicar com os outros, sem dúvida não é fácil de compreender. Mas as análises da psiquiatria fenomenológica nos apontam a direção certa. Isso, então, é o que o inferno agostiniano representa para nós: a perda da salvação do espírito, na forma bastante direta de doença mental.

Mas talvez já possamos ver como a descoberta agostiniana pode lançar luz tanto sobre a excelência quanto sobre a degeneração verdadeiramente insana do homem com temperamento maníaco-depressivo. Podemos pelo menos vislumbrar essa luta entre o “sim” e o “não” — na forma de uma alternância entre o sentimento de eleição e o de condenação — que é basicamente desencadeada por uma espécie de excesso do desejo de ser. “A alma humana é, em certo sentido, todas as coisas”, escreveu Aristóteles. Há um desejo de experimentar todas as vidas possíveis, que é basicamente o dos grandes exploradores da condição humana. A escolha deles, porque finalmente temos de escolher, não é feita sem um conhecimento adquirido das possibilidades e dos limites dessa condição — conhecimento que é válido para todos, mas não diretamente acessível, em primeira pessoa, a todos.

Excertos de

Heidegger – Fenomenologia e Hermenêutica

Responsáveis: João e Murilo Cardoso de Castro

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