(Montavont1999)
Gostaríamos de mostrar que uma filosofia dos atos da consciência não é incompatível com uma fenomenologia da passividade 1, e [10] talvez ainda mais, que uma reflexão sobre a passividade só pode começar em uma filosofia que remete todo objeto constituído a uma consciência constituinte, ou seja, ao ato de uma instância subjetiva. A passividade não é nem uma qualidade do objeto nem uma propriedade do sujeito, mas uma relação de sentido entre o sujeito e o objeto (seja esse objeto exterior ao sujeito ou o próprio sujeito), ou seja, um modo intencional de consciência, uma maneira de estar presente no mundo: só há passividade no ato, seja essa passividade precedendo, acompanhando ou seguindo o ato. Husserl não estende a definição tradicional do ato para incluir a passividade, acabando por pensar em um ato passivo ou em uma intenção passiva na qual o eu ainda participa (o problema sendo definir essa “participação do eu”, essa Ichbeteiligung)? Husserl tentou pensar, através da noção de “intencionalidade passiva” (passive Intentionalität), o que Merleau-Ponty chama de “a passividade de nossa atividade” 2? Ao enraizar a receptividade em uma passividade ainda mais originária — a predoação afetiva 3 — e ao encerrar a atividade em uma passividade englobante 4, ele desloca as fronteiras tradicionais entre sensibilidade e espontaneidade, entre sensível e inteligível. Essa redefinição das fronteiras entre passividade e atividade vai, aliás, além do domínio específico da teoria do conhecimento: o problema da passividade e da atividade atravessa a fenomenologia em geral 5.
- O motivo da passividade ofereceria, assim, a possibilidade de questionar a crítica radical que Merleau-Ponty dirige a Husserl em uma nota de trabalho de O Visível e o Invisível, Paris, Gallimard, 1964 (abreviado como VI), p. 297 e segs.: «Toda a análise husserliana está bloqueada pelo quadro dos atos que a filosofia da consciência lhe impõe. É necessário retomar e desenvolver a intencionalidade fungierende ou latente, que é a intencionalidade interior ao ser. Isso não é compatível com a “fenomenologia”, ou seja, com uma ontologia que submete tudo o que não é nada a se apresentar à consciência através de Abschattungen e como derivado de uma doação originária que é um ato, ou seja, um Erlebnis entre outros. […] É preciso tomar como primordial, não a consciência e seu Ablaufsphänomen com seus fios intencionais distintos, mas o turbilhão que esse Ablaufsphänomen esquematiza, o turbilhão espacializante-temporalizante (que é carne e não consciência diante de um noema).»[
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- M. Merleau-Ponty, op. cit., p. 274 e segs.[
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- Cf. Experiência e Juízo. Investigações sobre a Genealogia da Lógica, redigido e editado por L. Landgrebe, Hamburgo, Glaassen & Goverts, 1948, trad. franc. por D. Souche, Paris, PUF, 1970 (abreviado como EU), p. 70. A reformulação do problema da receptividade e da espontaneidade permite, portanto, a Husserl romper com a definição kantiana da receptividade como mera capacidade de receber impressões sensíveis: ela se torna, ao contrário, o nível mais baixo da espontaneidade do eu.[
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- Cf. Hua I Meditações Cartesianas e Conferências de Paris, ed. por S. Strasser, 1930, trad. franc. por G. Peiffer e E. Lévinas, Paris, Vrin, 1947 (abreviado como CM), p. 67.[
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- J. Derrida destacou a generalidade do problema da passividade e da atividade em Introdução à Origem da Geometria, Paris, PUF, 1974 (2ª ed.), p. 101.[
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