Mitchell (2015:40-41) – objeto perceptual da fenomenologia e Bestand

(…) a Bestand também mostra um contraste marcante com o objeto perceptual da fenomenologia. Parte da concepção husserliana do objeto — de fato, um princípio básico da própria fenomenologia — é que o objeto não é dado de uma só vez, mas sim em perfis e perspectivas. Husserl é sempre muito claro ao dizer que “a percepção de um todo não implica a percepção de suas partes e determinações”.1 É verdade que o “resto” do objeto é pretendido nesses perfis, seja como retido na memória ou obtido na expectativa, mas em cada caso o que é dado diretamente é apenas um perfil. Nas palestras Thing and Space (Coisa e Espaço) de 1907, Husserl faz uma distinção meticulosa entre esses modos de aparição “próprios” (eigentliche) e “impróprios” (uneigentliche): “A apreensão total e a aparência total da percepção se dividem em aparência própria, cujo correlato é o lado do objeto que é percebido no sentido próprio e que de fato é apresentado, e a aparência imprópria, o apêndice da aparência própria, que tem seu correlato no resto do objeto.”2 O que Husserl deixa claro nas palestras Coisa, no entanto, é que sem a impropriedade das percepções anexas, não haveria sequer uma percepção própria. O próprio depende desse horizonte. De fato, quando falamos em perceber apenas um lado de algo, isso só é possível graças a essas aparências impróprias de não apresentação: “As determinações objetivas de aparência imprópria são co-apreendidas, mas não são ‘sensibilizadas’, não são apresentadas por meio do que é sensível, ou seja, por meio do material da sensação. É evidente que são co-apreendidas, pois, de outra forma, não teríamos nenhum objeto diante de nossos olhos, nem mesmo um lado, uma vez que esse lado só pode ser de fato um lado por meio do objeto.”3 O perfil que vemos é apenas um perfil em sua conexão com um todo não presente da coisa. Em outras palavras, a coisa nos é dada precisamente por não nos ser dada de uma forma “adequada”.

Mas com a Bestand não há mais nenhuma impropriedade de aparecer. A obscenidade da Bestand acaba com isso em uma disponibilidade absoluta. Não há perfil nem parte, oculto ou não. Assim interpretada, a Bestand em sua disponibilidade exigiria que refletíssemos mais sobre algumas das pressuposições mais básicas da fenomenologia, em particular, aquelas que envolvem a natureza dos objetos, do todo, do dado e até mesmo da própria propriedade. Quando “aquilo que é” está em reserva, a própria fenomenologia sofre uma perda de seu controle sobre o mundo.

O desafio que a requisição representa para a coisificação da coisa é, portanto, peculiar. Não visa nada que possa se mostrar. A coisa não é ameaçada com a contenção dentro de si mesma (objetificação), mas com a total disponibilidade externalizada de si mesma (mercantilização). Em ambos os casos (sufocamento ou evisceração), a coisa deixa de ser coisa. Mas onde o objeto era discreto, a Bestand é tudo menos isso. Sua disponibilidade acaba por levá-lo a cadeias de substituibilidade e destruição, como veremos. A requisição vira a coisa do avesso a fim de torná-la disponível para entrega imediata.

  1. Husserl, Ding, 49–50/Thing, 42.[]
  2. Husserl, Ding, 50/Thing, 43, em.[]
  3. Husserl, Ding, 55/Thing, 46, em.[]