Mitchell (2015:27-28) – maquinação

Os entes são abandonados ao mundo, e isso significa que eles são abandonados à maquinação. Ao ente abandonado, “o ente aparece assim, ele se mostra como objeto e presente, como se não tivesse essência” (GA65: 115/91, tm). A maquinação nomeia a constelação de forças que lutam pela objetivação e presença do mundo, realizando o trabalho contínuo de abandono. Assim, os entes aparecem como objetos presentes e a maquinação estabelece todo um sistema de apoio para garantir que eles sejam tratados como tal (“Maquinação e presença constante (beständige Anwesenheit)”; GA65: 107/85). A maquinação nomeia “uma interpretação dos entes em que sua capacidade de fabricação vem à tona, de tal forma que a constância e a presença (Beständigkeit und Anwesenheit) tornam-se as determinações específicas do ente” (GA65: 126/100).2

Apesar das aparências (“. . . como se o seer (Seyn) não fosse essência”), a maquinação nomeia “um tipo de essenciação do seer” (GA65: 115/91; 126/99, tm). O que aparece sob a égide da maquinação se apresenta como objetivo, mas nunca pode alcançá-lo totalmente. Os entes simulam a presença objetiva em uma negação de sua condição, como se o abandono não tivesse ocorrido, como se não houvesse retirada, nem essências, ou, em outras palavras, nenhum mundo. O “como se” que Heidegger inclui aqui aponta para o fato inelutável da essenciação, de que até mesmo a objetividade continua sendo um modo de ser, uma exibição de entes, uma exposição em contato com o além e, portanto, uma abertura e uma troca irrevogável com o mundo. Na época do abandono, os entes fazem uma performance da objetividade como se todo o mundo fosse um palco, algo devidamente observado por Heidegger: “Palco (Bühne) — a formação do real (des Wirklichen) como a tarefa dos desenhistas de palco!” (GA65: 347/275, tm). O mundo construído pelos cenógrafos é um mundo de presença completa, real e objetiva. É um mundo de objetos preparados para a investigação científica, e Heidegger não deixa de rastrear o papel da “teoria” na ciência moderna até sua origem grega em thea, “o olhar, a aparência externa”, enfatizando a própria encenação da presença que nos interessa: “Thea (cf. teatro)” (GA7: 46/QCT 163, tm).

Mas o “como se” na afirmação de Heidegger (“. . . como se o seer não fosse essência”) implica que a maquinação e a objetividade, no entanto, continuam sendo formas pelas quais o seer essencia. A objetivação poderia ser vista como a maneira pela qual a essenciação do ser é mal interpretada, uma maneira pela qual o caráter abandonado dos entes é negligenciado, mas também uma maneira pela qual esse abandono essencial é deixado intacto. De fato, nessa peça teatral em que os entes são exibidos como objetos, a maquinação pode até ser vista como uma preservação dessa essência do ser. De acordo com a linguagem teatral da discussão, a objetivação da maquinação pode ser vista como uma “máscara” que deixa intocado o rosto que está por baixo dela. Heidegger se pergunta: “a negatividade dos entes e o abandono do ser podem ser preservados melhor e mais seguramente na máscara da ‘verdadeira atualidade’ do que por meio da maquinação e da experiência vivida?” (GA65: 131/103). Mesmo na década de 1930, Heidegger percebeu que a maquinação não era a aniquilação do ser, mas, em um sentido chocante, sua preservação. A maquinação não elimina a essência do ser, apenas a disfarça. Ela permanece por trás da máscara (representacional) para ser redescoberta.

Na época de Contribuições (GA65), a maquinação é, portanto, um termo para as forças na sociedade que trabalham para a objetivação dos entes e nossa experiência deles (Erlebnis). No entanto, não se trata apenas de um evento social, mas de um evento ontológico, a objetificação dos entes como resíduo do abandono do ser. Heidegger vê o processo impulsionado pela base determinante da própria modernidade, a representação. Já encontramos uma maneira pela qual a maquinação é uma interpretação dos entes (maquinação como “uma interpretação dos entes na qual sua capacidade de criação vem à tona, de tal forma que a constância e a presença (Beständigkeit und Anwesenheit) se tornam as determinações específicas do ser”, GA65: 126/100). Agora devemos considerar uma segunda “maquinação, aquela interpretação dos entes como representáveis e representados (Vor-stellbaren und Vor-Gestellten)” (GA65: 108-9/86). As duas “interpretações” não são mutuamente exclusivas, mas sim compatíveis, se não, em última análise, a mesma: a objetividade da maquinação é realizada por meio de uma agenda de representação. O foco das Contribuições à Filosofia está em traçar os sistemas coordenados de objetivação que cumulativamente dão origem a esse domínio da maquinação. A visão de mundo maquinacional desmente o fato de que os entes não são entidades sólidas e encapsuladas, mas estão abertos além de si mesmos contextualmente. Ao serem tão abertos, eles são capazes de nos alcançar e nos tocar, de nos preocupar. Para o Heidegger dos anos 30, a maior aflição (Not) da era moderna se encontra em nossa própria aflição (Notlosigkeit) diante dessas mudanças, e os vários sistemas maquínicos conspiram para impedir que essa aflição chegue ao nosso conhecimento por meio da objetivação dos entes que, de outra forma, nos abordariam. A maquinação é, portanto, um fenômeno moderno, o trabalho de uma era determinada pela representação, conforme detalhado em outro ensaio desse período, “The Age of the World Picture” (1938), que elabora ainda mais o que Contribuições identifica como “ciência moderna e sua essência maquinalmente enraizada” (GA65: 141/111).