(…) Phronesis refere-se ao conhecimento pertencente à praxis humana, na medida em que essa atividade constitui um fim em si mesma. Ela é descrita como “uma disposição reveladora que ocorre por meio do logos (hexis alethe meta logon), preocupada com a ação em relação ao que é bom e ruim para os seres humanos” (Ética a Nicômaco, 1140 b7). Como a techne, a phronesis pertence à faculdade deliberativa da alma, uma vez que esta apreende objetos cujos archai são variáveis. No entanto, a phronesis não é o mesmo que a techne, porque “a poiesis visa a um fim que é diferente de si mesma, enquanto que no fazer (praxis) o fim não é outro, o fazer bem (eupraxia) é em si mesmo o fim” (EN, 1140 b4). Na techne, o conhecimento é direcionado para o produto final como o fim ou telos desse conhecimento. Na phronesis, por outro lado, o conhecimento é direcionado para a própria ação como constituinte do ser do phronimos, a pessoa de sabedoria prática. A phronesis é um conhecimento sintonizado com os seres humanos em sua singularidade e em seu ser comum uns com os outros, preocupado com o ser humano como “uma origem de ações (arche ton praxeon)” (EN, 1112 b32).1. Além disso, enquanto a techne é aprendida e aperfeiçoada por um processo de tentativa e erro, esse não é o caso da phronesis: na ação ética, a pessoa não pode, fundamentalmente, experimentar consigo mesma da mesma forma que a techne experimenta com seu objeto, ou seja, de forma a ser capaz de uma indiferença em relação a esse objeto (cf. GA19, 54). Pois a phronesis é uma visão (“conhecimento”) de si mesmo como um si que age, como o si que está agindo em qualquer situação particular, e não uma visão de si mesmo como um objeto cujo próprio ser é diferente do ser de si mesmo. No entanto, o si atuante em questão não é, de forma alguma, um “sujeito” em qualquer sentido moderno — até porque não pode ser representado. A phronesis é uma relação intrínseca com o próprio ser. Para formulá-la em termos paralelos à caracterização de Heidegger do Dasein em Ser e Tempo — um paralelo que investigaremos mais a fundo no capítulo 4 — a phronesis implica uma visão na qual o ser do ser humano que eu mesmo sou está em questão (e, portanto, em algum sentido, aberto, em jogo, ainda a ser decidido). Ela implica um tipo de visão cujo próprio modo de ser não é indiferente a ela; sua atividade é estruturada como um cuidado ôntico-ontológico de si mesmo.2 Na medida em que a arche e o telos da phronesis coincidem, a phronesis parece ser uma forma completa e autocontida de conhecimento, que Aristóteles descreverá como uma “visão de si mesmo (to hautou eidenai)” (EN, 1141 b35). Em nosso fazer e agir, “vemos” a nós mesmos e, portanto, estamos de certa forma presentes para nós mesmos imediatamente, sem qualquer distância contemplativa ou objetivação.
No entanto, nossa relação originária e mundana com nós mesmos como entes atuantes não apenas pressupõe a ocultação; essa relação e sua ocultação podem se tornar ocultas e encobertas em e por meio de nossas interpretações orientadoras de nós mesmos e do mundo. A phronesis é reveladora — é um aletheuein — precisamente porque a ocultação é intrínseca ao ser do eu como ser atuante. Como diz Heidegger: “Na medida em que o próprio ser humano é o objeto do aletheuein da phronesis, o ser humano deve estar em uma situação de ser encoberto de si mesmo, de não se ver, de modo que um a-letheuein explícito é necessário para se tornar transparente (durchsichtig) para si mesmo” (GA19, 51). A revelação de si mesmo, a obtenção da transparência, é relativa à situação prática; é radicalmente finita e, como tal, uma tarefa infinita, que deve ser realizada sempre de novo. (GA19, 56) Além disso, a ocultação de si mesmo não é apenas um resultado possível de uma determinada autointerpretação. Como Aristóteles indica com referência ao prazer e à dor, um estado de espírito ou sintonia pode ocultar o ser humano de si mesmo, de modo que a arche “não se mostra (em phainetai) como tal.” (GA19,51-52; EN, 1140b17) E, por essa razão, a phronesis deve ser repetidamente recuperada (soizei) por uma certa compostura (sophrosyne) (EN, 1140 b10f.).
Assim, Heidegger resume inicialmente a phronesis da seguinte forma:
A phronesis não é, portanto, nada evidente, mas é uma tarefa que deve ser assumida em uma prohairesis…. A phronesis é uma hexis de aletheuein, “um tipo de disposição do Dasein humano no qual disponho sobre a transparência do mim mesmo.”3 (GA19, 52)
Mas o fato de a phronesis continuar sendo uma tarefa, e não uma realização perfeita, aponta para outra coisa importante, a saber, o fato de que esse tipo de conhecimento não é uma hexis independente ou um modo de revelação:
A phronesis é, portanto, ela mesma, de fato, uma aletheuein, mas não independente, ao contrário, é uma aletheuein a serviço da praxis; é uma aletheuein que torna uma ação transparente em si mesma. Na medida em que a transparência de uma praxis é constitutiva da mesma, a phronesis é co-constitutiva da realização adequada da própria ação. A phronesis é uma aletheuein, mas, como observado, não é independente; ao contrário, ela guia uma ação. (GA19, 53)
Em outras palavras, a revelação que ocorre deliberadamente na phronesis, por meio do logos, é ela mesma dependente e direcionada, ou seja, subserviente a uma revelação mais originária. A phronesis, como veremos, de fato orienta uma ação, mas em sua capacidade deliberativa não revela primeiro a situação prática da ação, nem de fato revela o fim primário para o qual uma ação é dirigida antecipadamente.
Esta é apenas uma situação preliminar da phronesis em relação às outras virtudes intelectuais, e será necessária uma análise mais cuidadosa da praxis e, em particular, de sua visão específica. Antes de prosseguir com a análise da phronesis em maiores detalhes, Aristóteles considera brevemente as duas maneiras restantes pelas quais a alma alcança a verdade por meio do logos, a saber, sophia e noûs.
- Cf. EN, 1139 b6. O fato de que as ações e, consequentemente, o tipo de conhecimento em questão não são aqueles de um “sujeito” isolado, mas já incorporados em um ser comunitário com outros, é indicado por Aristóteles quando ele observa que as ações feitas por meio de nossa agência, ou por nós como indivíduos, também podem incluir aquelas feitas por nossos amigos, “uma vez que a origem de sua ação está em nós” (EN, 1112 b27). Assim, a revelação ontológica do objeto da phronesis, a revelação do ser do eu como um agir, é preservada nessa relação direta e imediata. A phronesis revela o ser do phronimos em sua “verdade” ontológica; revela a verdade do meu próprio ser como um agir aqui e agora. Diferentemente da revelação ontológica do ser verdadeiro na episteme, essa revelação está vinculada à temporalidade finita do momento; não é uma verdade geral já acessível em princípio a um observador independente ou supostamente neutro.
Aristóteles observa que a phronesis também é comumente associada a um tipo de theorein preocupado com o que é bom para si mesmo e para os seres humanos em geral (EN, 1140 b10). No entanto, uma vez que o objeto da phronesis não é outro senão o próprio indivíduo, Aristóteles ressalta que esse tipo de conhecimento não constitui um corpo independente de conhecimento no qual podemos vir a nos destacar. Nesse aspecto, a phronesis não é como a techne; não é um conhecimento independente que possa ser aplicado a diferentes casos. Portanto, não podemos falar de excelência na phronesis, como podemos no caso da techne; ao contrário, a própria phronesis é uma excelência ou virtude (arete) (EN, 1140 b22f.). Não se pode estar em erro no sentido de que o “ver” de alguém não revelaria, de alguma forma, seu próprio ser mais profundo — mesmo que apenas de maneira implícita e não transparente para si mesmo. Isso também implica que a phronesis, ao contrário da techne, não pode ser simplesmente aprendida com os outros; ela requer experiência própria [[Sobre esse ponto, consulte Hans-Georg Gadamer, GW 1, 322 e seguintes[
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- Cf. nossas observações em “Care for the Self: Originary Ethics in Heidegger and Foucault,” Philosophy Today 42, no. 1/4 (Spring 1998): 53-64.[
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- A citação é a paráfrase de Heidegger de EN, 1140 b20f., onde Aristóteles descreve a phronesis como uma hexis meta logon alethe.[
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