Assim, o Livro I da Metafísica narra a história de um desdobramento ininterrupto da visão, desde seus estágios mais primitivos e básicos de percepção sensorial até sua forma suprema e mais elevada, encontrada no theorein pertencente à sophia. Conta a história do que podemos chamar de gênese natural do comportamento teórico, uma gênese que se desdobra por meio de uma teleologia aparentemente não problemática do desejo, de um desejo que supostamente pertence à “natureza” dos entes humanos. O desejo filosófico em si, como o esforço pela sophia, não faria nada além de explicitamente cumprir os estágios prescritos por essa gênese natural. No entanto, essa gênese é ameaçada em seu próprio princípio quando consideramos que o comportamento humano não se desenvolve meramente de acordo com a necessidade do desejo inato ou natural, mas de acordo com o desejo que pode ser modificado por meio do logos, em outras palavras, de acordo com a praxis humana. A contemplação teórica, afinal de contas, é em si mesma uma praxis, um comportamento livremente escolhido por entes humanos que não estão simplesmente sujeitos às leis da necessidade natural.
A complicação da praxis, portanto, ameaça interromper a história de uma gênese puramente natural da vida teórica. Se existe uma hierarquia natural da visão e do conhecimento humanos, então essa hierarquia deve primeiro ser fundamentada com relação ao próprio logos. Mais precisamente, ela deve demonstrar sua legitimidade com vistas à relação entre logos e desejo, ou seja, com vistas à natureza das possibilidades e limites intrínsecos da praxis humana. No curso Sofista, de 1924/25, Heidegger investiga exatamente essa complicação por meio de uma leitura da Ética a Nicômaco de Aristóteles que se concentra nos Livros VI e X. Toda a interpretação se baseia na questão da prioridade relativa da sabedoria prática ou teórica, da phronesis ou da sophia, conforme discutido por Aristóteles no final do Livro VI. De fato, a leitura de Heidegger do Livro I da Metafísica ocorre dentro de uma interpretação da Ética a Nicômaco orientada para a compreensão das respectivas reivindicações de phronesis e sophia como o modo mais elevado de revelação ontológica. (…)
De fato, o Livro I da Metafísica parece aludir à Ética a Nicômaco ao explicar a distinção entre techne, episteme e outras formas de conhecimento (M, 981 b26). O conhecimento prático e sua forma mais excelente, a phronesis ou sabedoria prática, parece diferir, em princípio, do conhecimento teórico ou especulativo, simplesmente porque o conhecimento prático já está sempre envolvido em uma determinada praxis. Não tem tempo para se afastar ou tomar uma distância contemplativa da situação concreta de seu envolvimento imediato. O horizonte da praxis, portanto, parece estar fora do horizonte do theorein. E, portanto, poderíamos esperar que o conhecimento prático fosse diferente, em princípio, daquele “desejo de ver” que marca o ponto de partida ou a arche da investigação de Aristóteles sobre o conhecimento especulativo. Mas será que esse é, de fato, o caso?
Para Aristóteles, a praxis é a possibilidade mais elevada e distinta da existência humana.1. Desdobrando-se em meio ao temporal e ao contingente, essa existência não pode, em nenhum sentido, transcender a finitude intrínseca de sua situação de modo a atingir diretamente uma perspectiva externa sobre si mesma. Essa perspectiva só seria possível se alguém cometesse a arrogância de identificar a condição humana com a divina. O relato de Aristóteles sobre a praxis da vida humana enfatiza o caráter mundano dos envolvimentos humanos e as inevitáveis imprevisibilidades às quais essa existência está exposta. No entanto, é surpreendente que Aristóteles atribua a revelação mais completa da existência humana como tal não ao tipo de visão que permanece atenta e apreende mais plenamente estas contingências — a visão da phronesis ou sabedoria prática — mas à visão “teórica” pertencente à sophia do filósofo. A visão filosófica vê de forma mais transparente o que é a existência humana como tal. E, no entanto, a relação entre o conhecimento teórico e a praxis não é uma simples oposição para Aristóteles. Como um tipo de conhecimento, a theoria pode, de fato, ser contrastada com a phronesis, mas, como veremos mais adiante, esse contraste não é uma oposição. Aristóteles não apenas identifica a atividade do theorein como uma praxis, mas a considera a mais elevada. No entanto, não é como se a theoria fosse meramente uma possibilidade ou forma de praxis humana entre outras; ao contrário, como tentaremos mostrar, a theoria é aquele tipo de visão que primeiro vê e, portanto, sabe o que a própria praxis é mais verdadeiramente. A theoria como uma praxis está tão longe de ser separada da praxis e da phronesis que prova, segundo Aristóteles, ser a auto-revelação mais originária da praxis como tal.
- É claro que há vários usos diferentes do termo praxis em Aristóteles. Pelo menos três podem ser inicialmente discernidos: (1) A praxis é às vezes usada para caracterizar a natureza da vida “biológica” e suas atividades associadas, como encontradas tanto em humanos quanto em animais. (Veja, por exemplo, De partibus animalium, 645 bl 51Τ.; também Historia animalium, 589 a3.) Aqui, a praxis da vida tem o sentido de uma atividade que se mantém como tal, apesar de sua dependência do ambiente e de outros entes em geral. A vida, nesse sentido orgânico, é um fim em si mesma. Assim, Aristóteles também estende o termo praxis para abranger as atividades subordinadas que servem à atividade geral da vida, incluindo geração, alimentação, crescimento, cópula, vigília, sono e locomoção. (2) A praxis também é usada para se referir a ações ou atividades especificamente humanas, embora ainda em um sentido bastante amplo que inclui a criação (poiesis) e a contemplação (theoria), bem como a atividade ética e política. (3) Praxis é usada em um sentido mais restrito para se referir principalmente à vida ética e política, a “atos e palavras” como as atividades verdadeiramente humanas. A liberdade factual das necessidades da vida, incluindo a liberdade da escravidão, é uma condição prévia da praxis humana nesse sentido.[↩]