Marques Cabral (2014:39-41) – a fé é um modo de existência do ser-aí humano

(…) ainda na primeira fase do seu pensamento, no escrito “Fenomenologia e teologia” (GA9), de 1927, Heidegger relaciona-se positivamente com a teologia cristã, mesmo que ainda preserve as características metodológicas ateias anteriormente citadas. O que importa é sobretudo caracterizar o modo de articulação da relação positiva entre teologia e fenomenologia. Assumindo primeiramente um viés desconstrutivo, em consonância com seu projeto destrutivo já firmado e tematizado em Ser e tempo, [ SZ §7 (ET7) ] Heidegger reformula a definição tradicional de teologia, que a considera “ciência de Deus” [GA9:70]. Destarte, a teologia não possui Deus como objeto de especulação. Antes disso, “Teologia é a ciência da fé” [GA9:65]. Não se trata, porém, de posicionar a fé (Glaube) como objeto de tematização da teologia. A teologia é a ciência da fé, porque “é a ciência daquilo que é desvelado na fé, isto é, daquilo em que se crê” (Ibidem). Nesse sentido, a teologia remete-se à fé porque esta, não sendo um simples consentimento a um conjunto de proposições impossíveis de serem verificadas pela razão, é a condição de possibilidade do dizer teológico. Isso deflagra um gesto heideggeriano presente em sua primeira fase. Trata-se da tentativa de fundamentar as ciências a partir de bases fenomenológico-existenciais. A medida que a fé não é um simples consentimento ou anuência a “um emaranhado de sentenças sobre estados de fato e ocorrências” [GA9:66], ela revela-se como um comportamento existencial do ser-aí. Sendo assim, a fé é responsável por um determinado campo de aparição dos entes. Por isso, diz Heidegger: “a fé é um modo de existência do ser-aí humano” [GA9:63], ou seja, ela responde por um modo específico de abertura de mundo.

Delimitando o campo de tematização da preleção à teologia cristã, Heidegger fundamenta a ciência teológica na fé. No entanto, o que ele tem em vista com o termo ciência nada mais é do que um comportamento específico do ser-aí que depende de uma forma específica de compreensão que, de modo temático, descerra “um certo âmbito de abrangência” que, por sua vez, possibilita “uma objetivação e questionamento teorético” [GA9:60] de um determinado ente. Este âmbito descerrado é o “positum” para o comportamento científico. O descerramento referido é um tipo de compreensão de ser (Seinsverständnis). No caso da teologia, ela é uma ciência positiva, que depende da fé enquanto tipo de compreensão de ser responsável pela sua positividade. Não sendo a fé um consentimento irracional a determinados estados de fato, ela é o lugar em que Cristo se mostra para o ser-aí como seu correlato intencional. Talvez influenciado pela teologia paulina e luterana, o Cristo que se dá para a fé é o Cristo crucificado. Não sendo meramente um dado historiográfico, a cruz revelada à fé só aparece para a fé por causa da fé. Justamente aí está o cerne da revelação. Na fé, a revelação não é o anúncio de um dado escriturístico, mas o tomar parte (participar) no “acontecimento da crucifixão” [GA9:63]. Participando do acontecimento da cruz, o ser-aí vem a ser cristão. Esta “metamorfose existencial” é definida por Heidegger como um renascimento. Por isso, a equação: “fé = renascimento” [GA9:64]. Desta experiência existencial emerge o campo de discursividade da teologia. Seu critério de validade, portanto, não pode ser fornecido por outras ciências, mas sempre pela fé, que é a condição (existencial) transcendental da própria teologia. Somente a partir da fé, a teologia tem seu sentido salvaguardado. Este não é outro senão fornecer “a clarividência do acontecer cristão, relevada na credulidade e com seus limites traçados pela própria credulidade” [GA9:66].

A reabilitação da teologia pela experiência existencial da fé não consuma o sentido derradeiro do escrito “Fenomenologia e teologia”. Na esteira de Ser e tempo, Heidegger preocupa-se em mostrar as raízes pré-cristãs — portanto, a condição de possibilidade da própria fé — como fundamento ontológico-existencial da própria teologia. A fé seria tão somente um modo de ser existenciário (existenziell) e não a estrutura mesma existencial (existenzial) do ser-aí. A teologia, enquanto saber ôntico, está assentada em uma verdade mais originária que a fé. Esta última congrega em si “o ser-aí pré-cristão” que nela está “co-implicado de maneira ontológico-existencial” [GA9:73]. Se isso é verdade, então todos os conceitos teológicos possuem em si “um conteúdo pré-cristão” [GA9:74]. Consequentemente, os existenciais 1 que caracterizam ontologicamente o ser-aí fundamentam a própria teologia. Sabendo que a filosofia, enquanto fenomenologia-hermenêutica, é o conhecimento que descreve as estruturas do ser-aí, então a própria filosofia torna-se essencial para a teologia. Ela lhe serve como saber corretivo. Os conceitos teológicos podem ganhar clareza com a sua remissão aos componentes existenciais do ser-aí. O caráter corretivo da filosofia em relação à teologia não a reduz a ser serva desta ciência. A filosofia não é ancilla theologiae. Antes disso, ela sobrevive em sua tarefa, mesmo sem qualquer referência à teologia. Com isso, Heidegger não funcionaliza a filosofia, mas lhe garante autonomia e maior originariedade que a ciência teológica.

  1. :Existenzialen[↩]
Excertos de

Heidegger – Fenomenologia e Hermenêutica

Responsáveis: João e Murilo Cardoso de Castro

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