Marques Cabral (2014:15-17) – niilismo

A assunção do niilismo como um dos temas centrais das discussões filosóficas no âmbito acadêmico tornou-se talvez hoje lugar-comum. Diversos são os lugares de tematização dessa questão. Colóquios, congressos, livros, revistas especializadas, etc. são dedicados à questão do niilismo e a seus impasses no mundo contemporâneo. No entanto, pelo que tudo indica, o eixo hermenêutico norteador das diversas abordagens do niilismo pode ser denominado de apocalíptico, caso levemos em consideração a abordagem tradicional medieval-cristã da literatura apocalíptica bíblica, centrada sobretudo na ideia de catástrofe como clímax da história da salvação. Entretanto, diferentemente do apocalipsismo cristão, que transforma a catástrofe histórica em terra fértil para a bonança eterna (cf. Ap. 21), a abordagem apocalíptica do niilismo centra-se na negatividade oriunda deste fenômeno e daí aure sua força argumentativa. Destarte, o acento recai na dissolução ou corrosão dos antigos eixos axiológicos, paradigmas morais e políticos, símbolos religiosos, estilos artísticos, etc. como centro de análise e meditação filosóficas. A razão deste tipo de abordagem não é difícil de ser compreendida. Basta assinalar o modo como o niilismo é aí compreendido. Como o definiu Badiou: “entendemos por niilismo a ruptura da figura tradicional do vínculo, o desligamento como forma de ser de tudo que faz semblante de vínculo.”1 O centro dessa definição está na “figura tradicional do vínculo”. O peso recai portanto na solidez da tradição, como se ela contivesse a totalidade dos princípios estruturadores dos múltiplos matizes da experiência humana. Uma vez que a medida tradicional vinculativa não mais possui força de estruturação, os entes aparecem como que desligados de qualquer princípio de unidade. Nesta dissolução ou corrosão da unidade do mundo, surge o niilismo enquanto “o desligamento como forma de ser de tudo que faz semblante de vínculo”. Mas, como essa definição de niilismo pode relacionar-se com o que foi chamado de abordagem apocalíptica do niilismo? Um famoso fragmento póstumo de Nietzsche, de novembro de 1887 a março de 1888, nos fornece a resposta: (15)

O que narro é a história dos dois próximos séculos. Descrevo o que vem, o que não pode deixar de vir: a irrupção do niilismo. Essa história já pode ser contada; pois aqui a própria necessidade está em obra. Esse futuro anuncia-se por cem sinais, esse destino anuncia-se por toda parte; para essa música do futuro, todos os ouvidos estão afinados. Toda nossa cultura europeia move-se já, desde há muito, com a tortura de uma tensão, que cresce de década em década, como se estivesse em direção a uma catástrofe: inquieta, violenta, precipitada: como uma correnteza que anseia por chegar ao fim, que não se volta sobre si mesma, que tem medo de se voltar sobre si.2

O estilo profético do texto acima deixa vir a lume a gravidade do que é anunciado. “Toda nossa cultura europeia move-se já, desde há muito, com a tortura de uma tensão, que cresce de década em década, como se estivesse em direção a uma catástrofe O advento do niilismo, portanto, é a catástrofe do mundo ocidental-europeu. Se levarmos em consideração a definição anterior, que caracteriza o modo hodierno de compreensão do niilismo, como a perda da “figura tradicional do vínculo”, então, o caráter catastrófico do niilismo diz respeito à negatividade presente na corrupção dos princípios tradicionais de estruturação do próprio Ocidente. Como fica evidente na passagem acima, o desdobramento histórico dos próximos dois séculos é ele mesmo o lugar do surgimento do niilismo. Isso significa que o niilismo não é o ponto final do nosso curso histórico, mas, antes disso, é o acontecimento fundamental de nossa história atual. A catástrofe nesse sentido consistiria na absolutização da falta de medidas vinculadoras em todo o percurso histórico que é o nosso. Apesar de Nietzsche afirmar que esse “futuro anuncia-se por cem sinais”, isto não quer dizer que o advento mesmo do niilismo só seja vislumbrado dois séculos depois de seu anúncio. Por isso, ele mesmo diz: “esse destino anuncia-se por toda parte; para essa música do futuro, todos os ouvidos estão afinados”. Trata-se portanto de um futuro já presente “por toda parte” e de uma música que dará o tom ao homem europeu-ocidental, mas que já afinou os seus ouvidos, porque ela mesma já é escutada. Dessa forma, só cabe afirmar a negatividade generalizada concernente à falta de princípios tradicionais vinculativos no desdobramento do processo histórico do Ocidente contemporâneo, como fizera Artaud, em carta de 9 de novembro de 1932:

Vivemos uma época provavelmente única na história do mundo, em que o mundo passado pela peneira vê desmoronarem seus velhos valores. A vida calcinada dissolve-se pela base. E isso, no plano moral e social, (16) traduz-se por um monstruoso desencadeador de apetites, uma liberação dos mais baixos instintos, um crepitar de vidas queimadas e que se expõem prematuramente ao fogo. O interessante nos acontecimentos atuais não são os acontecimentos em si, mas o estado de ebulição moral em que fazem os espíritos caírem, o grau de extrema tensão. É o estado de caos consciente em que não param de nos mergulhar.

E tudo isso que abala nosso espírito sem o fazer perder o equilíbrio é para ele um meio patético de traduzir a palpitação inata da vida.3

  1. BADIOU, Alain. Manifesto pela filosofia. Rio de Janeiro: Aoutra, 1991, p. 24-25.[↩]
  2. NF/NP 11 (411) de novembro de 1887 a março de 1888.[↩]
  3. ARTAUD, Antoine. O teatro e seu duplo. São Paulo: Martins Fontes, 2006, p. 136.[↩]
Excertos de

Heidegger – Fenomenologia e Hermenêutica

Responsáveis: João e Murilo Cardoso de Castro

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