Marion (2010:40-43) – objeto – fenômeno – acontecimento

(Marion2010)

destaque

(…) como é que o caráter essencialmente e originariamente de acontecimento do fenômeno, e mesmo de todo o fenômeno (incluindo o mais banal, que acabamos de descrever), pode esbater-se, atenuar-se e desaparecer, a ponto de nos deixar com um objeto? Não para perguntar: até que ponto podemos legitimamente pensar o fenômeno como um acontecimento (40), mas porquê: podemos perder a sua fenomenalidade reduzindo-a à objetividade? A resposta a esta questão pode ser encontrada em Kant. A primeira das quatro rubricas que organizam a categoria do entendimento, e que impõem assim o quádruplo selo da objetividade aos fenômenos, diz respeito à quantidade. Todo o fenômeno, diz Kant, deve possuir, para se tornar um objeto, uma quantidade, uma grandeza extensa. De acordo com esta quantidade, a totalidade do fenômeno é equivalente e resulta da soma das suas partes. Daqui decorre um outro carácter decisivo: o objeto pode e deve ser previsto de acordo com a soma das partes que o compõem, de modo que é sempre “(…) intuído antecipadamente (schon angeschaut) como um agregado (a soma das partes dada antecipadamente (vorher angeschaut)” [Crítica da Razão Pura, A 163 / B 204]. Isto significa, sem dúvida, que a grandeza de um fenômeno pode sempre ser modelada numa quantidade de direito finito, podendo, portanto, ser inscrita num espaço real ou transcrita (por meio de modelos, parâmetros e operações de codificação) num espaço imaginário. Acima de tudo, isto significa que o fenômeno se inscreve num espaço que podemos sempre conhecer antecipadamente através da soma das suas partes. Esta sala tem uma quantidade, que resulta da soma das suas partes — as suas paredes definem o seu volume, enquanto outros parâmetros não extensos (o seu custo de fabrico e manutenção, a sua taxa de ocupação, etc.) definem o seu peso orçamental e a sua utilidade pedagógica. Em princípio, não lhe resta a menor surpresa: o que aparece será sempre parte da soma do que os seus parâmetros sempre nos permitiram prever. A sala se acha prevista antes mesmo de ser vista — encerrada na sua quantidade, atribuída às suas partes, limitada, por assim dizer, pelas suas medidas, que precedem e aguardam a sua eficácia empírica (construção). Esta redução da sala à sua quantidade previsível faz dela um objeto, diante do qual e dentro do qual passamos como se não houvesse mais nada para ver — pelo menos nada que não pudesse ser previsto a partir do plano da sua concepção. O mesmo acontece com todos os objetos técnicos: já não os vemos, nem sequer precisamos de os ver, porque os previmos desde o início. E até conseguimos utilizá-los tanto melhor quanto os prevemos sem nos preocuparmos em vê-los. Só começamos realmente a precisar de os ver quando já não os podemos ou ainda não os podemos prever, ou seja, quando já não mais os podemos (por avaria) ou ainda não os podemos utilizar (por aprendizagem). Na utilização técnica normal, não temos de ver os objetos: basta-nos prevê-los. Reduzimo-los à categoria de fenômenos de segunda ordem, de direito comum, sem lhes dar uma aparência plena, autônoma e desinteressada. Aparecem-nos em transparência, na luz neutra da objetividade, sem deter o nosso olhar nem o preencher. Então, de que é privado o fenômeno previsto e não visto, o objeto? Uma vez que o qualificamos como um fenômeno previsto, não é esta previsão que o desqualifica como fenômeno pleno? O que é que “previsão” significa aqui? Que no objeto tudo permanece previsto de antemão — que nada de imprevisto acontece. O objeto permanece um fenômeno decaído, porque aparece como sempre já devido: já nada de novo pode surgir nele, uma vez que, mais radicalmente, ele próprio aparece, sob o olhar que o constitui, como nunca surgindo. O objeto aparece como uma sombra do acontecimento que nele negamos.

original

  1. Critique de la raison pure, A 163 / B 204, trad. franç., Œuvres philosophiques, éd. F. Alquié, Gallimard, « La Pleiade », t. 1, p. 903.[↩]
  2. Au contraire de l’idole du tableau (voir infra, chap. III, § 1-2, pp. 65-74).[↩]
Excertos de

Heidegger – Fenomenologia e Hermenêutica

Responsáveis: João e Murilo Cardoso de Castro

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