- tradução do inglês
- Jeffrey Kosky
- Original
tradução do inglês
Um ponto parece assim estabelecido: em nenhum momento Santo Agostinho consegue (nem tenta, como Descartes fará) assegurar o ego de sua existência ou atribuí-lo cogitatio como essência (res cogitans). Por que esse recuo diante do que hoje nos parece uma evidência inegável? Ou então a Santo Agostinho estava faltando alguns elementos necessários para validar o argumento?
Evidentemente, o cogitatio não estava faltando, uma vez que cabe a ele estabelecer definitivamente seu uso conceitual, com base em uma etimologia um tanto nebulosa quanto a esse assunto: “Quia tria cum in unum coguntur, ab ipso coactu cogitatio dicitur ”(Pois quando esses três termos (memória, visão e vontade) são reunidos em apenas um, essa coleção é chamada cogitatio). Também não estava faltando, visto que ele indicava claramente que a mente só tem certeza disso apenas que é certo que ela é – “sente sit, quod solum esse se cer est”. O que então é ou estaria faltando em Santo Agostinho, de tal modo que ele não pudesse escrever ego cogito, ergo sum como Descartes? Se ele não estava sentindo falta de cogitatio nem esse, ele só poderia estar sentindo falta do ego ele mesmo — esse ego que, para Descartes, sustenta os dois outros termos que o manifestam apenas porque, mais essencialmente, eles o pressupõem imediatamente, tão cedo quanto à dúvida; a tal ponto que a cogitatio é tão identificada com o ego como seu próprio ato que acaba desaparecendo nele, finalmente emergindo sozinho, mas imperial, em seu ser sem mais menção a ele: Ego sum, ego existo. O ego está ausente de Santo Agostinho, pelo menos no sentido cartesiano de “ego ille, quem novi” (este ego aqui que vim a conhecer), vendo como ele o conhece apenas como uma pergunta e uma questão relativa a uma essência desconhecida : “Quis ego et qualis ego?” (Confissões IX, 1, 1, 14, 70). E a razão para esse questionamento é óbvia: para ele, o acesso pela cogitatio ao ser (ou melhor, à vida) não permite acesso a mim mesmo e, especialmente, não me identificar por uma essência. Em outras palavras, o fato de meu acesso ao meu ser através do meu pensamento ser imposto indiscutivelmente não implica que eu tenha, nesse ser através do pensamento, o mínimo acesso a mim mesmo na figura de um ego conhecido por ele mesmo. Santo Agostinho está perfeitamente disposto a admitir o argumento que liga o pensamento ao ser; ele até o inaugura e o impõe à posteridade (incluindo Descartes); mas ele se recusa a deixar esse mesmo argumento produzir e consagrar qualquer ego conhecido por ele mesmo. Não que ele preveja a objeção que vem na metafísica, uma objeção vulgar por repetir que o que existe não é mim mesmo porque “pensa em mim”, sem que mim mesmo esteja em questão; ele não contesta que mim mesmo, eu penso e que através disso sou certamente. Mas ele contesta ou, melhor dizendo, observa que, quando penso e sou (ou penso que sou), não me aproprio como um ego que diria eu mim mesmo ou que se diria a si mesmo um mim mesmo — e, assim, conheceria sua essência.
Mas então o que eu sou ensinado pela certeza (ainda incontestada) de que sou na medida que penso? Sou ensinado que, em pensando, sou posto à distância de mim mesmo e me torno diferente de eu mim mesmo, que, em pensando, não ganho posse de qualquer mim mesmo que possa exata e verdadeiramente dizer si mesmo em dizendo eu, que quanto mais eu penso mim mesmo (e quanto mais eu sou por pensar), mais inconsciente me torno de quem eu sou e alienado de mim mesmo. Em suma, acesso a meu Ser dentro e através de meu pensamento, longe de me apropriar a mim mesmo como em Descartes, para Santo Agostinho me exila fora de mim mesmo. Não tenho outro ego ao lado de minha divisão ela mesma consigo mesma. Ao entrar no terreno em que a aliança do pensar e do Ser me introduz, não descubro mim mesmo nem descubro mim mesmo como um mim mesmo seguro do si mesmo, mas vejo que escapei mi mesmo porque eu mim mesmo excedi mim mesmo — que sou este próprio exceder de mim mesmo sobre mim mesmo. O cogito, suposto me apropriar de mim mesmo como um mim mesmo, me expulsa de mim mesmo e me define por este mesmo exílio. Por conseguinte, sou paradoxalmente aquele que em pensando sabe que não é (pertence a) ele mesmo, não conhece sua essência e nunca pode dizer (ele mesmo), rigorosamente, mim mesmo.
Santo Agostinho descreve esse exílio com frequência e clareza, mostrando por meio disso que o suposto cogito revela que sou um quaestio mihi, uma pergunta para mim mesmo — que eu sou mim mesmo enquanto esta pergunta. Certa vez, ele se sente tendo se tornado para ele mesmo uma grande questão — “factus eram mihi magna quaestio” (Confissões IV, 4, 9, 13, 422) — na morte de um amigo. Este amigo de infância compartilhou uma vida e suas alegrias com ele — até o momento de sua queda em uma grande agonia. Durante esta agonia, moribunda e inconsciente, ele recebe o batismo; mas, sobrevivendo por uma remissão, longe de negar isto, por assim dizer, o batismo involuntário, como esperava Agostinho, ele reivindica fortemente isto e, no final, morre batizado. Por que este luto provoca, mais do que apenas tristeza por causa do outro, uma ininteligibilidade para ele mesmo? Sem dúvida, porque o amigo, “dimidium animae meae” (parte da minha própria alma), mantém uma parte de mim, que sua morte amputa, de modo que assumo com horror uma vida que não quero viver parcialmente “nolebam dimidius vivere” (IV, 6, 11, 13, 426). Mas sem dúvida há mais: a meia-vida que a morte de meu amigo deixa para mim já havia me escapado desde antes de sua morte, pois, em sua agonia, ele tinha, por meio do batismo, mudado sua vida recebendo-a desta vez do Imortal ele mesmo; consequentemente, esta vida já escapada de mim por força de uma vida que permaneceu absolutamente estranha para mim. A morte do amigo me priva de minha própria vida, mas sua nova vida ainda mais. Tal fuga de mim mesmo para fora de mim (pois é precisamente o si mesmo que deixa a vida escapar) me deixa sem mim mesmo, como alguém permanece sem voz. E este não é apenas um estado provisional, que resultaria de um evento passageiro, como uma simples crise. Concerne uma provação tão repetida quanto é a tentação, ou melhor, como os cinco modos de tentação que, acrescentando-se um ao outro e constantemente intervindo em mim, definem o status permanente de minha condição. Se “oneri mihi sum” (eu sou um fardo para mim), isso resulta do fato de que “‘tentatio est vita humana super terram sine interstitio” (“a vida do homem nesta terra é uma provação” [Salmo 30: 10], sem o menor descanso) (Confissões X, 28, 39, 14, 210).
Jeffrey Kosky
Original
- De Trinitate XI, 3, 6, BA 16, 174. Varro’s formulation, “Cogitare a cogitando dictum: mens plura in unum cogit, unde eligere possit” ( De lingua latina , ed. P. Flobert (Paris, 1985), 22), also finds an echo in Confessiones X, 11, 18: “cogitando quasi colligere” (14, 172). See Confessiones VII, 1, 1, 13, 576; De Trinitate X, 5, 7, 16, 134 and XIV, 6, 8, 16, 364.[
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- De Trinitate X, 10, 16, 16, 150. That esse remains, at bottom, in the case of the mens, understood on the basis of life and not substantia obviously does not forbid it from intervening explicitly in the argument.[
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- Descartes, Principia philosophia I, §7, AT VIII, 7 (English trans., 1:195).[
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- Descartes, Meditatio II , AT VII, 25, 12 (English trans., 2:17). On the primacy of this formulation, which leaves out precisely the cogitatio , in what is always called, a bit hastily, “the cogito ,” see my studies in Sur la théologie blanche de Descartes II, §16 (Paris 19811, 19912), 370ff.; and Questions cartésiennes II I, 1, §§3–4, 12ff. (English trans., 8ff.).[
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- Descartes, Meditatio II , AT VII, 27, 30 (English trans., 2:18 (modified)). The complete text, “Novi me existere; quaero quis sim ego ille quem novi,” indicates that from here on out, it is a matter of determining the essence of the ego , after having secured its existence (and, in fact, the res cogitans and the explication of its modes will follow, 28, 20–23). We should also take note of the ille (as in 25, 14: “quisnam ego ille, qui jam necessario sum,” and in 49, 13–14: “ego ille, qui jam sum,” which should be translated “this I , that I am,” as Luynes once does in AT IX-1, 21, 41: “I seek what I am, me whom I recognized to be”) being used to designate the ego (instead of the more expected ego ipse, myself , as in VII, 51, 22ff.).[
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- Leibniz, Système nouveau de la communication des substances , ed. Gerhardt, Philosophische Schriften IV, 473 and 482. On this point see my study “The Egological Deduction of Substance,” in Marion, On Descartes’ Metaphysical Prism , chap. 3, §13.[
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- The citation comes from Job 7:1, but the Vulgate reads “Militia est vita hominis super terram.” The addition of “sine interstitio” comes from Saint Augustine, confirming the interpretation that Heidegger gives to this verse: tentatio defines the existential condition of Dasein (see below, Chapter 4, §23).[
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- De Trinitate, XI, 3, 6, BA 16, 174. La formule de Varron, De lingua latina, VI, 43, « Cogitare a cogitando dictum : mens plura in unum cogit, unde eligere possit » (éd. P. Flobert, Paris, Budé, 1985, p. 22), trouve aussi un écho dans Confessiones, X, 11, 18 : « … cogitando quasi colligere… » (14, 172). Voir Confessiones, VII, 1, 1 (13, 576) ; De Trinitate, X, 5, 7 (16, 134) et XIV, 6, 8 (16, 364).[
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- De Trinitate, X, 10, 16, 16, 150. Que l’esse reste, quand il s’agit de la mens, dans son fond compris à partir de la vie, et non de la substantia, n’interdit évidemment pas qu’il intervienne explicitement dans l’argument.[
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- Descartes, Principa Philosophiae, I, § 7, AT VIII, 7.[
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- Descartes, Meditatio II, AT VII, 25, 12. Sur la primauté de cette formulation, qui omet précisément la cogitatio dans ce qu’on nomme toujours un peu vite « le cogito », voir nos analyses dans Sur la théologie blanche de Descartes, II, § 16, Paris, 19811, 19912, p. 370 sq., et Questions cartésiennes II, I, 1, § 3-4, op. cit., p. 12 sq.[
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- Descartes, AT VII, 27, 30. Le texte complet, « Novi me existere ; quaero quis sim ego ille quem novi », indique qu’il s’agit désormais de fixer l’essence de l’ego, après avoir conquis son existence (et, de fait, va suivre la res cogitans et l’explicitation de ses modes, 28, 20-23). On remarque aussi le recours à ille (comme en 25, 14-14 « … quisnam ego ille, qui jam necessario sum », et en 49, 13-14 « … ego ille, qui jam sum », qu’il faudrait traduire « … ce je, qui je suis », comme le fait d’ailleurs une fois Luynes en AT IX-1, 21, 41 : « … je cherche quel je suis, moi que j’ai reconnu être… »), pour désigner l’ego (au lieu du plus attendu ego ipse, moi-même, comme en VII, 51, 22 sq.).[
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- Leibniz, Système nouveau de la communication des substances, éd. Gerhardt, Philosophische Schriften, IV, p. 473 et 482. Sur ce point, voir notre étude Sur le prisme métaphysique de Descartes, chap. 3,§ 1 : « La déduction égologique de la substance », Paris, 19861, 20042, p. 161 sq.[
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- La citation vient de Job, 7, 1, mais la Vulgate donne « Militia est vita hominis super terram ». L’addition de « sine interstitio » vient, elle, de saint Augustin, confirmant l’interprétation que Heidegger donne de ce verset : la temtatio définit la condition existentiale du Dasein (voir infra, IV, § 23, p. 214 sq.)[
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