Marion (1998:§1) – princípio da dação

Podemos agora compreender como a invocação de um princípio na fenomenologia não contradiz, no entanto, o direito do fenômeno a mostrar-se; de fato, o princípio da dação é precisamente o de que nada precede o fenômeno, a não ser o seu próprio aparecimento a partir de si mesmo; o que equivale a postular que o fenômeno ocorre sem outro princípio que não ele próprio. Em suma, o princípio, como o da dação, dá primazia ao fenômeno — não é tanto um princípio primeiro como um princípio último. Husserl afirma-o literalmente: “A dação absoluta é um último (termo) — absolute Gegebenheit ist ein Letztes.” 1 O termo “último” não equivale aqui a uma outra forma de designar a primazia; pois o princípio da dação não intervém antes do fenômeno para estabelecer a priori regras e limites para o seu aparecimento; intervém depois da manifestação do aparecimento, que se desenrola livremente sem qualquer outro princípio, para apenas sancionar a posteriori por redução aquilo que, no aparecimento, merece verdadeiramente o título de fenômeno dado: só o que se dá a si mesmo aparece como fenômeno autêntico, e só o que se dá absolutamente aparece como fenômeno absoluto; o princípio dirige o aparecimento a posteriori, precisamente na medida em que o deixou aparecer a partir de si mesmo, na medida em que observa exatamente que ele se deu absolutamente — ou não. O quarto princípio obtém o seu privilégio do fato de permanecer último, de jogar em última instância e de julgar a posteriori — por outras palavras, do fato de já não ser exercido precisamente como um princípio que produziria o fenômeno antecipadamente, mas como a regra que dita que o fenômeno deve ser deixado acontecer por si mesmo. Jogando sempre a posteriori, o princípio paradoxal de “Tanta redução, tanta dação” não só libera o fenômeno dos três princípios ainda a priori que lhe infligiam as suas aporias, não só contradiz a definição metafísica de qualquer princípio em geral (e, neste sentido, libera a fenomenologia do projeto crítico), mas sobretudo renuncia a fundar o fenômeno para lhe deixar — finalmente — a iniciativa de aparecer a partir de si mesmo. A partir de então, a dação torna-se menos uma opção fenomenológica entre outras, que podemos aceitar ou rejeitar segundo o nosso estado de espírito ou a nossa escola, do que a condição não fundadora, mas absoluta, para a ascensão do fenômeno ao seu próprio aparecimento. Claro que podemos sempre rejeitá-la, mas essa rejeição bloqueia definitivamente a possibilidade de o fenômeno se mostrar a partir de si mesmo e como tal. Negar o estatuto principial da dação — o princípio “Tanta redução, tanta dação” — é, de fato e de direito, fechar a rutura fenomenológica. A decisão sobre a dação é equivalente a uma decisão sobre a fenomenalidade do fenômeno. O jovem Heidegger viu isso perfeitamente quando perguntou: “O que significa ‘dado’, ‘dação’ — essa palavra mágica da fenomenologia e a ‘pedra de tropeço’ para todas as outras?” Para alguns, o primado da dação é um escândalo, mas ao rejeitá-lo por preconceito, fecham-se a nada menos do que à fenomenalidade do fenômeno. Para outros, o que abre o acesso a essa mesma fenomenalidade do fenômeno continua a ser uma palavra “mágica”. Os primeiros caricaturam tanto mais o pretenso encanto dos segundos, quanto daí retiram a glória da racionalidade; os segundos acentuam tanto mais o pavor dos primeiros, quanto daí retiram o prestígio da audácia especulativa. Mas pode acontecer que à recusa dos primeiros corresponda o deleite dos segundos, irmãos e inimigos com base num único pressuposto — o de que a dação não pode (ou não deve) ter acesso ao conceito. Mas é precisamente este pressuposto que vamos agora pôr em causa: entre a magia e o escândalo, abre-se um outro caminho — o da dação que articula racionalmente os conceitos que descrevem o fenômeno tal como ele se manifesta.

  1. L’idée de la phénoménologie, Hua. II, p. 61, 9 ; tr. fr., p. 8 (corrigée).[]