(JMSC)
[…] “Existir” (Existenz) é ser de tal forma que o ser mesmo seja (ou signifique) uma tarefa ou uma questão — em jogo — não apenas agora e depois, mas em todos os lugares e sempre.Esse “ser em jogo” não pode ser compreendido como qualquer modo de Kampf ums Leben (de luta pela vida); não é nada como conatus instintivo ou uma luta animal pela sobrevivência. Se a vida é levada a se envolver em tal luta, uma criatura viva pode ser considerada como tendo sucesso ou fracasso; e isso medido segundo um padrão — sobrevivência — que ilustra a luta, mas cujo sentido não está em jogo na luta. O Dasein, em contraste, “se compreende nos termos de (…) uma possibilidade de si mesmo” (33/12)1, ou seja, ele mensura a si mesmo em relação a um padrão cujo sentido é parte do que está em jogo em seu existir como essa possibilidade. Por exemplo, “ser” um pai significa que a pergunta acerca do sentido de ser pai é um pergunta para mim enquanto estou tentando sê-lo: eu não simplesmente faço algumas coisas, mas comprometo-me com a possibilidade do fracasso. O que quer dizer que, para mim, ser um pai é um status normativo. Mesmo que não consiga definir o sentido de ser pai, sou orientado rumo a esse sentido e a uma medida. Por mais que não seja normalmente uma questão de apresentação de razões por parte da consciência, isso não significa que seja algo como processos instintivos ou ambientais da vida.
Descrever como é, esse é o fardo do texto peculiarmente estruturado Ser e Tempo. A estrutura é peculiar, porque o que é apresentado no início da obra já pressupõe o que vem depois. Nada do que aparece na parte I se mantém, mas depende do que é estabelecido na parte II. Em particular, o tipo de “desencobri-mento” que pertence ao ser-no-mundo “cotidiano” não pode ser compreendido em si, como certas leituras pragmáticas de Heidegger sugerem.2 Deste modo, a parte II não é um apêndice; ela desencobre uma possibilidade de ser do Dasein sem a qual não podería haver a totalidade da significância ou o “mundo”. Mas a possibilidade em questão não é a autenticidade, já que esta é meramente “uma modificação existencial do ‘singular’” (168/130), um caminho distinto no qual “a cotidianidade é descerrada” (224/179). Ao contrário, a parte II desencobre a possibilidade que não habita o continuum entre autenticidade e inautenticidade: a possibilidade da crise, na qual não posso mais fazer nada, mais posso ser. Essa condição limite — a unidade que é analisada sob os diferentes tópicos da Angústia, Morte e Consciência — é metodologicamente importante, porque dela provém para o Dasein a clareza fenomenológica do sentido próprio de “ser uma questão”. Por esse motivo, o que é dito sobre a estrutura do cuidado na parte I, precisa ser interpretado à luz do que aprendemos sobre os elementos dessa estrutura na crise.
- Martin Heidegger, Being and Time, tr. Jonh Macquarrie e Edward Robinson (New York: Harper & Row, 1962). Daqui em diante citado com a paginação inglesa, seguida da paginação alemã na margem.[
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- O locus classicus de tal leitura é Hubert Dreyfus, Being-in-the-World. A Commentary on Heideggers Being and Time, Division 1 (Cambridge: The MIT Press, 1991).[
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