MacDowell: A justificação da omissão da questão do sentido do ser

A omissão da questão do sentido de ser não constitui um simples fato, que se pode constatar no decurso da história da Filosofia ocidental. Ela foi também sancionada, oficialmente, pelas teses da Escola, sanção que veio selar definitivamente o seu olvido. A justificação da inutilidade, e mesmo da impossibilidade, de determinar o sentido de ser decorre aliás da própria concepção de ser que anima a Metafísica tradicional. Este preconceito assume diversas vestes.

O ser, entre todos os conceitos, é-nos o mais familiar. Nós usamos o ser a torto e a direito em nosso conhecer, em nosso falar, em todo e qualquer reportar-nos a nós mesmos ou a outros entes. E todo mundo entende, sem mais, o sentido desta expressão. Todo mundo sabe que significa: “O céu é azul”, “Eu sou estudante” etc. Para que instituir uma questão sobre aquilo que já é evidente para todos ? O sentido de ser não desperta a nossa curiosidade. Parece algo tão trivial que não nos preocupamos com a pergunta: que é que entendemos, afinal de contas, com a expressão “ser” ?.

Tentar explicar o sentido de ser não é somente supérfluo, mas também contraditório. Uma definição rigorosa, que, segundo as leis da Lógica, consta do gênero próximo e da diferença específica, está excluída de antemão, pois a noção de ser transcende todos os gêneros e, além disso, não admite diferenças propriamente ditas, pois nada, que é de qualquer modo, pode acrescentar-se ao ser como estando fora de sua alçada original. E o que não é não faz diferença. Mas também uma simples declaração do seu sentido está fadada a fracassar diante da peculiaridade do ser. Qualquer noção, que fosse arregimentada para tal fim, inclui já em si, como nota fundamental, o ser. Ora, aquilo que para ser entendido já supõe entendido o ser, não é capaz de esclarecer o seu sentido.

E, afinal de contas, possui a palavra ser algum sentido determinado ? Não se trata do conceito mais universal ? Ora, quanto maior a extensão, tanto menor é a compreensão de um conceito. Logo, o conceito de ser é o mais vazio e indeterminado. Quando caracterizamos algo como “árvore”, como “novo” como “florido”, estamos certamente penetrando no seu significado, o nosso pensar se detém num certo conteúdo, mais ou menos claramente concebido, mas em todo caso contradistinto de outras noções. Ao dizer, porém, das coisas que são entes, ficamos inteiramente no vago, não juntamos a esta apelação nenhum significado indigitável. Na simplicidade de sua compreensão, formada de uma única nota, “ser” serve para significar tudo e nada, nada de tudo. Uma questão sobre o seu sentido carece, por conseguinte, de qualquer sentido.

O simples relance de olhos sobre o fenômeno da compreensão de ser, proporcionado pelas análises precedentes, revela a superficialidade de tais argumentações. Significa ser simplesmente o nada que resta, quando se prescinde de todas as determinações do Ente ? Através de um processo de generalização por abstração, que se desenvolve simplesmente no plano do ente, não se pode chegar senão a uma indeterminação sempre maior que tende ao limite nada. Entretanto, se se percebe que o ser é o termo da pré-compreensão primária, que funda todo entender do ente enquanto ente, a vacuidade desta noção e a indeterminação de seu sentido se tornam problemáticas.

Certamente a palavra “ser” não é, para nós, um som sem significação alguma, como, p. ex., “abrakadabra”. O fato de que nós distinguimos o “ser” de um mero flatus vocis mostra já que ele não é, absolutamente, vazio de sentido. E como é que identificamos, com tanta segurança, isto e aquilo como ente, se não sabemos o que significa ser como tal? Estamos constantemente em contato com o ente. Distinguimos nos entes entre o ser deste ou daquele modo, e também o ser e não ser simplesmente. É possível duvidar, p. ex., se a parede do quarto vizinho é ou não é branca. Mas a própria dúvida pressupõe a compreensão de uma diferença determinada entre ser e não-ser. Na aparência mais vaga, a noção de ser manifesta-se na verdade como a mais determinada no seu sentido, aquela que usamos com mais segurança e precisão. A determinação de um significado resulta ordinariamente da comparação com outros, que o restringem e limitam ao seu âmbito próprio. O ser, porém, é incomparável: outro que o ser é apenas o nada, com o qual nada pode comparar-se. Por isso, a Lógica tachou a noção de ser de indeterminadíssima. Na verdade, a determinação do sentido de ser é, absolutamente, ímpar.

Nem é supérfluo procurar expor aquilo que entendemos quando dizemos “ser”. É verdade que se trata do termo primeiro e fundamental do nosso entender. Mas este entender primário do ser nada tem de claro. Não se trata de uma ideia explícita, cujo significado nós já possuíssemos reflexamente. Nem o fato de que usamos continuamente o verbo ser, falamos talvez de ser e de existência, dispensa-nos de interrogar o seu sentido. Pois este entender de todo-mundo, sem a mínima crítica, é justamente problemático. Se alguém nos pergunta que é que entendemos ao dizer “ser”, ficamos embaraçados com a resposta e precisamos recorrer a exemplos para manifestar, de algum modo, o que temos em vista. Portanto, o sentido de ser não é tão evidente como parece à primeira vista. Embora já compreendido fundamentalmente, ele pode ser a meta de uma questão, se o que com ela se pretende alcançar é um conceito expresso de ser. Evidentemente, tal conceito não será fruto de uma invenção qualquer, mas sim a explicitação da compreensão pré-conceitual de ser, de que dispomos sempre.

Será possível, porém, tematizar este sentido de ser, que entendemos a cada instante ? Ao querer provar o contrário, a Lógica não levou em conta a distinção entre o entender temático e o entender atemático que o precede e acompanha. É claro que não se pode definir o ser per genus et differentiam, como acontece legitimamente – dentro de certos limites – com o ente. Isto não significa, porém, que não se possa fazer uma ideia de seu sentido. A pré-compreensão do ser que condiciona todo e qualquer conhecimento é, simplesmente, atemática. Nada impede que outras ideias, cuja compreensão pressupõe a ideia ainda não esclarecida de ser, sejam postas a serviço da tematização do ser. A partir da ideia esclarecida de ser, estas noções receberão, por sua vez, nova luz; mas já na fase de tematização provisória, levada a cabo à base da compreensão pré-conceitual de ser, estas noções podem ajudar a delimitar o sentido de ser. Tal circularidade constitui a lei mesma do nosso entender, e não tem nada que ver com o círculo vicioso condenado pela Lógica. De nada vale, porém, tentar expor diretamente a ideia que fazemos de ser. A resposta à questão do sentido de ser só pode ser lograda, convenientemente, através da elaboração prévia e sistemática da própria questão.

O filósofo tomista poderia ser tentado a ver, na exposição feita por Heidegger, dos preconceitos da Metafísica tradicional contra a questão do sentido de ser, mais uma caricatura que uma reprodução fiel de sua posição. Entretanto, depois do que dissemos sobre o caráter peculiar da questão, proposta por Heidegger, este protesto perde todo o seu vigor.

Certamente a Escolástica nunca vetou um certo questionar sobre o ser. Mas é inegável que a sua persuasão do caráter imediatamente acessível do ser, como implícito em todo pensar, contribuiu para apartá-la de qualquer investigação sobre o seu sentido. Faltou-lhe a consciência da ambiguidade inerente à manifestação universal do ser, ou seja, das ameaças a que está exposta a sua compreensão inicial, tanto quanto as suas sucessivas interpretações. E verdade também que a Escolástica, embora excluindo a definição de ser ou o aclaramento de sua ideia por outras, assumiu, conscientemente, a tarefa de descrever a noção de ser. Mas, como vimos, tal descrição não se situa ao nível da questão sobre o sentido de ser.

Enfim, é preciso notar que a ideia do ser, como pura indeterminação, só é atribuída expressamente por Heidegger ao último estádio da Metafísica, à sua consumação em Hegel e Nietzsche. De fato, mesmo nas filosofias, chamadas essencialistas, a tese da indeterminação da noção de ser, correspondente à sua transcendência, não é tão absoluta que a palavra “ser” venha a ser considerada como mero sinal linguístico, desprovido de qualquer conteúdo significativo. Entretanto, é inegável que a Metafísica tendeu a reduzir o ser a uma simples moldura apta a envolver as diferentes determinações quiditativas, pensadas seja no estado de existência, seja no de possibilidade.