Mac Dowell: A fundamentação da metafísica através da fenomenologia da vida do espírito

Ao radicalizar o método fenomenológico, Heidegger não visava senão adquirir um instrumento apto para a análise da historicidade, própria da vida da consciência. Tal fora a tarefa, prevista no seu programa, como meio para a restauração da metafísica. A indagação de Heidegger é coroada de êxito, enquanto ele descobre na “existencialidade” a perspectiva autêntica, que há de dirigir a interpretação ontológica do fenômeno humano. Esta intuição decisiva na evolução do seu pensamento é obtida através da recapitulação da concepção protocristã da vida.

Sem dúvida, se Heidegger se orientou nesta direção, ele o deve em grande parte às sugestões de predecessores ilustres, como, p.ex., Kierkegaard. Mas o acolhimento de tais sugestões e mais ainda o vigor extraordinário com o qual Heidegger soube pôr em evidência as características da visão cristã da vida, desvirtuadas por tantos séculos de especulação teológica, só seria possível se esta visão encontrasse eco na sua própria experiência. É, pois, em última análise, a sua própria vivência espiritual que Heidegger traduz, à luz do modelo cristão, na Analítica existencial. O mérito de Heidegger está em que, ao contrário dos seus predecessores, ele extraiu, da compreensão cristã da vida, a perspectiva ontológica, que a possibilitava e tomou-a como fio condutor para a determinação sistemática das estruturas subjacentes a qualquer projeto humano. Esta preocupação ontológica permitiu-lhe individuar, no esquecimento da questão do sentido do ser, a razão da incapacidade do pensamento ocidental de explorar adequadamente a experiência original da existência fornecida pelo cristianismo.
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EM DIREÇÃO DAS ORIGENS DA EXPERIÊNCIA CRISTÃ DA VIDA

a. Dos místicos medievais ao Novo Testamento

Voltando-se para o passado, a fim de reviver criticamente as etapas decisivas da história espiritual do Ocidente, Heidegger começa a executar uma tarefa, que entrevira já vagamente ao escrever a sua dissertação sobre Duns Escoto. Naquela data, ele julgava encontrar no testemunho dos místicos medievais a expressão do verdadeiro sentido da vida, como ele mesmo a experimentava e entendia. Ele anunciara então uma interpretação filosófica da Mística de Eckhart1, vista sem dúvida como o modelo supremo da harmonia entre vivência espiritual e conceitualização escolástica atribuída à mundivisão medieval. E lícito conjeturar que o curso professado no semestre invernal 1919-20, sob o título “Os fundamentos filosóficos da Mística medieval”2, constitui o cumprimento daquela promessa.

Entretanto, a esta altura Heidegger já não considera as obras dos espirituais cristãos como imagem fiel da xperiência fática da vida. Não só a Psicologia escolástica, como ele pensava outrora3, mas também a literatura ascético-mística da Idade Média está eivada de incrustações metafísicas, estranhas aos fenômenos, que se trata de exprimir. Se é justo atribuir aos grandes representantes da Mística medieval, como mais tarde a Lutero4, a Pascal5 ou a Kierkegaard6 a experiência vigorosa e a consciência viva do sentido da existência, como transparece nos seus escritos de edificação, enquanto se mantêm na simples descrição dos fenômenos, tão logo se passa ao nível da conceitualização e da sistematização teorética, eles caem sob o influxo de esquemas inadequados à transmissão de suas vivências7.

A constatação deste fenômeno filosófico-cultural, que se manifesta ao longo de toda a história da civilização cristã desde a Idade Média aos tempos modernos, obriga Heidegger a confrontar-se com a grande figura que está à origem desta tradição: Sto. Agostinho. Os resultados de tal estudo foram recolhidos nas aulas que ele consagrou, em 1921, ao tema “Agostinho e o Neoplatonismo”8. À margem do livro X das Confissões, Heidegger mostra como Sto. Agostinho pensa a partir da experiência da vida na sua facticidade. Para ele o sentido do homem não se determina tanto por um conteúdo objetivo (Gehalt), quanto pela atitude assumida na própria atuação (Vollzug) da vida. Entretanto Sto. Agostinho serve-se frequentemente, na expressão de sua experiência genuína da existência, de categorias neoplatônicas, que a falseiam totalmente. Nele se manifesta exemplarmente o destino do pensamento cristão que, caindo sob a tutela da filosofia grega, foi incapaz de inventar um aparelho conceitual, proporcionado à experiência da vida, própria da fé9.

E assim que, remontando gradualmente o curso da tradição, Heidegger recorre finalmente ao próprio Novo Testamento, onde ele encontra, na sua pureza original, num estado de teorização mínima, a compreensão cristã da vida. No inverno de 1920-21, o seu curso, intitulado “Introdução à fenomenologia da Religião”, é dedicado ao comentário de duas passagens dos escritos mais antigos do Novo Testamento (1 Ts 4,13 – 5,11; 2Cor 12,1-10). Através da análise destas passagens ele mostra os traços característicos da experiência cristã.

Aos tessalonicenses S. Paulo fala da escatologia cristã: a vida do fiel funda-se na esperança do retorno de Cristo. Recusando-se a datar este acontecimento, antes insistindo sobre o seu caráter repentino e inesperado, o Apóstolo propõe uma interpretação “kairológica”, não “cronológica”, da história. O sentido da “parusia” não é tanto o de um fato exterior no fim da sucessão do tempo natural, da vida terrena do homem. A vida nova, a ressurreição, que ela traz consigo, acontece já no “hoje” da decisão da fé. Esta antecipação existencial do futuro, do fim, da morte, que domina a antropologia do Novo Testamento, fornecerá a Heidegger a chave de sua concepção da temporalidade da existência humana. A função da esperança cristã no advento do Senhor não é tanto a de fornecer uma explicação objetiva da vida, como a de despertar continuamente o fiel para a decisão. Trata-se de uma experiência da vida na sua facticidade histórica, que coloca o acento na atitude pessoal, não no conteúdo nocional e normativo. O cálculo do tempo e a fixação das condições da salvação, que permitem dormir um sono sossegado, opõem-se frontalmente à vigilância cristã, à espera do Senhor, que vem como o ladrão no meio da noite.

Na segunda epístola aos Coríntios, S. Paulo refere-se ao “aguilhão na carne”, que lhe foi dado para que não se ensoberbecesse com a alteza das revelações que recebera. Heidegger vê nestas palavras, tão importantes para Kierkegaard, outro traço essencial da experiência protocristã. O fiel não se entende a partir de visões grandiosas, mas sim das fraqueza de sua vida fática, assumida na fé e na esperança.

b. O sentido da vida na experiência protocristã

Heidegger buscar de início na experiência cristã medieval o fundamento vivencial de uma metafísica, que culminasse na afirmação de Deus, como polo transcendente do espírito humano e garantia do valor do seu conhecimento. Todavia, o aprofundamento da sua análise veio transtornar completamente este plano.

Talvez fosse já desde o começo a historicidade fática da experiência cristã, que ele mesmo vivia, o que o atraía secretamente para os místicos medievais. Em todo caso, é só depois da Grande Guerra que ele reconhece como nota dominante da compreensão cristã do homem, expressa no Novo Testamento, não a afirmação de uma dimensão metafísica do espírito, de tal sorte que sua temporalidade consista na assimilação progressiva dos valores eternos, mas sim o encarar a vida como um todo de possibilidades mundanas, que cada um tem de assumir neste ou naquele projeto fundamental.

Esta historicidade peculiar da vida fática é, segundo Heidegger, a perspectiva pré-ontológica que guia secretamente a descrição concreta da existência cristã no Novo Testamento. Ela corresponde, na sua opinião, ao fenômeno original da vida. Sua tarefa será, pois, tomar a perspectiva assim revelada como fio condutor da análise sistemática do homem. Só a fidelidade a esta intuição mestra, ao longo de toda a análise fenomenológica, possibilitará extrair da “própria coisa” as categorias que lhe são proporcionadas.

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A VALORIZAÇÃO FILOSÓFICA DA EXPERIÊNCIA PROTOCRISTÃ DA VIDA

Não é nossa intenção expor, sistematicamente, a análise da existência, que Heidegger empreende em Sein und Zeit. Interessa-nos tão-somente mostrar que a nossa afirmação, baseada até agora no estudo das lições “Introdução à fenomenologia da Religião”, de que a nova via de acesso ao fenômeno humano, descoberta por Heidegger, foi-lhe inspirada pelo Novo Testamento, recebe plena confirmação em Sein und Zeit.

Mas antes de passar à identificação do ponto de apoio na experiência cristã dos principais fenômenos observados no curso da Analítica existencial, faz-se mister precisar melhor o sentido do emprego que Heidegger faz desta mesma experiência. Só assim será possível avaliar o caráter exato da intuição de Heidegger e distingui-la de empreendimentos semelhantes.

a. O significado especial da descoberta da existencialidade

Segundo Heidegger, o existir do homem consiste em projetar-se segundo diferentes possibilidades de ser, definidas por sua facticidade histórica10. Este projetar-se é essencialmente para cada qual compreender-se a si mesmo na sua individualidade irredutível11. Entretanto, esta compreensão existêntica (existenziell)12 e em geral atemática do próprio ser-no-mundo acontece à luz de uma compreensão ontológica, também atemática, do modo de ser da vida em geral13. Esta pré-compreensão da existencialidade permanece, de início e de ordinário, encoberta por uma interpretação inadequada do fenômeno humano14. Em vez de ser entendido a partir de uma perspectiva existencial, o homem é definido como substância viva, dotada da faculdade de pensar. Destarte, a compreensão, mais ou menos expressa, que o homem tem comumente de si mesmo, é condicionada por uma ideia de ser obtida a partir do ente intramundano ou natural.

Apesar disso, encontram-se na auto-interpretação espontânea do homem vários traços da compreensão original e autêntica da existência, normalmente sufocada no seu conjunto. Não faltam, com efeito, documentos que testemunham, num nível pré-científico, esta experiência universal. No § 42 de Sein und Zeit Heidegger apela para uma fábula latina, atribuída a Higino, na qual “cura”, o cuidado, é interpretada como a origem do ser do homem. Trata-se de uma opinião corrente entre os estoicos, da qual também Sêneca se fez porta-voz. Nem Parmênides, apesar de por primeiro ter saltado explicitamente o fenômeno do mundo na investigação filosófica e assim ter orientado toda a tradição ontológica para uma visão naturalística do ser, era completamente alheio à compreensão existencial da vida, como demonstra a sua doutrina das duas vias, respectivamente do descobrir e do ocultar. O descobrir baseia-se num compreender, que diferencia os dois caminhos e se decide por um deles15. Traçando em rápidas pinceladas a história do conceito de “mundo”, Heidegger depara, logo de início, com o fragmento de Heráclito: Para os despertos há um só mundo, comum a todos; o que dorme, ao invés volta-se para seu próprio mundo. Heidegger comenta: O mundo é aqui posto em relação com os modos fundamentais, nos quais o homem faticamente existe. A frase anuncia já uma noção não só transcendental, mas também existencial de mundo.

A mesma compreensão existencial da vida aparece em diversos símbolos e expressões consagradas da linguagem corrente, mostrando que a ideia de existência alimenta-se de uma experiência fundamental do homem16. Aliás, não é por um capricho qualquer que Heidegger denomina assim o ser do homem. De fato, “existência” tem também o sentido especial de vida humana. Nesta acepção, o termo já não significa o fato indiferente de estar-aí entre outras coisas no espaço, mas sim o modo de ser do homem naquilo que ele tem de específico, justamente em relação aos outros viventes, a planta e o animal, o anjo ou Deus. Trata-se, portanto, daquela zona na qual as gamas de significação dos termos existência e vida se cruzam e se confundem. Vida não tem aqui um sentido biológico ou naturalístico, mas antes existencial e histórico. E o papel que cada personagem representa no teatro do mundo. Ela tem um caráter estritamente pessoal. Defunto é justamente aquele que acabou de desempenhar a sua função. A vida de alguém constitui a sua história, não enquanto refletida numa narração biográfica, mas como o próprio acontecer e desenrolar-se da existência. Compete a cada um assenhorear-se de seu destino ou cair vítima dele. Entre os caminhos da vida, o homo viator deve encontrar o seu caminho.

Portanto, a compreensão concreta da vida numa perspectiva existencial não é privilégio do cristianismo. Se, de fato, foi a partir do estudo da antropologia cristã que Heidegger elaborou a sua ideia de existência, é porque a fé põe o homem diante de opções sumamente graves, de sorte que os traços fundamentais da existência sobressaem com uma intensidade toda especial17.

Ao longo da história do Ocidente, a experiência cristã da vida, registrada, no Novo Testamento, foi testemunhada vigorosamente por muitos autores nos seus escritos de edificação, onde a exposição do sentido da vida permanece no âmbito da descrição concreta, sem pretensões teorético-científicas. Na medida, porém, em que procuram dar uma sistematização filosófico-teológica à própria compreensão do homem, estes autores introduzem a sua experiência na camisa-de-força das categorias da metafísica tradicional, deturpando assim o seu conteúdo original.

É verdade que Lutero e Kierkegaard, entre outros, reagiram contra a redução do Evangelho às dimensões do pensamento filosófico e racional, conscientes da necessidade de salvar a índole específica da mensagem cristã18. Todavia, eles não se deram ao trabalho de elaborar uma nova filosofia do homem guiada pela ideia de existência, que substituísse a conceitualização tradicional na função inelutável de respaldar ontologicamente a teologia19. Por conseguinte, foram forçados, inconscientemente e contra a sua intenção, a submeter-se às estruturas filosóficas dominantes, para um, escolásticas, e, para o outro, hegelianas. Típico é o caso de Kierkegaard, enquanto ele, colocando-se exatamente no mesmo plano que seu adversário, contenta-se com inverter-lhe as teses: em vez da essência universal – a existência do indivíduo, em vez da absoluta racionalidade – o paradoxo total.

Nos anos imediatamente anteriores ao aparecimento de Sein und Zeit, E. Husserl e M. Scheler tomaram a peito, cada um a seu modo, a construção de uma Antropologia filosófica, que levasse em conta o caráter inconfundível do fenômeno da subjetividade humana, posto em relevo pela filosofia moderna desde Descartes. Eles submeteram à análise fenomenológica não só o sujeito teorético, mas sim a pessoa integral, nas diversas manifestações intencionais. Todavia apesar de seus protestos veementes e sinceros contra toda concepção coisista, substancialista ou objetivante da consciência e da pessoa, eles não foram capazes de oferecer uma caracterização ontológica positiva da subjetividade. A perspectiva existencial, única em condições de provocar uma renovação autêntica da visão filosófica do homem, ficou encoberta para eles. Além disso, não levantando a questão do sentido de ser, permaneceram sem o perceber, como seus predecessores, sob o influxo da ideia tradicional de ser. A consciência é entendida, em última análise, como sujeito permanente de seu atos. Enfim, abordando o homem a partir da dimensão espiritual, eles se movem na esteira da distinção tradicional entre corpo, alma e espírito, (soma-psyche-nous) e deixam inexplicada a unidade destes elementos.

Dilthey, ao contrário, na opinião de Heidegger, pôs em evidência, como nenhum outro, o traço característico do fenômeno humano, i.é, a historicidade. Baseado nesta descrição, onticamente justa, ele procurou expressamente descobrir as categorias próprias da existência histórica. Entretanto, a omissão da questão radical do sentido de ser impediu também esta tentativa de determinação ontológica positiva da vida de coroar-se de sucesso.

O mérito especial de Heidegger, neste contexto, está em que ele soube, por primeiro, valorizar filosoficamente a concepção protocristã da vida, sem falsear a sua índole própria. Isto significa que ele, ao mesmo tempo:

-* intuiu o sentido original da experiência cristã, como existência fática;

-* reconheceu nesta perspectiva a chave para a interpretação ontológica autêntica do sujeito humano;

-* elaborou sistematicamente uma Analítica da existência, relevando as suas diversas estruturas com extraordinária acuidade e notável fidelidade à sua intuição fundamental.

O aproveitamento da ideia de existência para a interpretação do sentido da vida humana não teria sido possível, se Heidegger não tivesse ousado pôr em questão o sentido de ser em geral. De fato, a interpretação do ser de cada ente é feita à luz da compreensão do ser em geral, à disposição de cada um. É na medida em que se domina o passado filosófico, pondo a descoberto as origens das categorias reinantes, para examinar-lhes a radicalidade, que se cria a distância necessária para interrogar autenticamente o sentido da subjetividade. Destarte, o estudo da experiência cristã, além de sugerir a Heidegger a sua nova concepção do homem, ajudou-o a decifrar o sentido da ontologia tradicional e a convencer-se do significado fundamental do problema hermenêutico. O resultado mais autêntico e duradouro do seu contato com a mundivisão neotestamentária foi a descoberta da incapacidade da tradição ocidental de dar-lhe uma interpretação ontológica idônea, e a identificação da razão de tal falência no esquecimento da questão do sentido de ser.

b. O nível ontológico da análise existencial

O Novo Testamento descreve uma forma peculiar de existência, inspirada pela fé, sobre o fundo de uma compreensão concreta da vida em geral, sem entretanto destacar as estruturas ontológicas subjacentes a tal compreensão. A existência cristã é fruto de uma opção possibilitada do alto, opção que não consiste meramente em colher certas possibilidades objetivamente propostas e recomendadas. Ao contrário, é justamente a resolução que patenteia e determina, em cada situação, as respectivas possibilidades fáticas.

Aos desígnios de Heidegger na elaboração da ontologia fundamental, ao contrário do que acontece com Kierkegaard na sua filosofia da existência, o ideal concreto, acenado pela fé, não interessa, como tal. A existência cristã não é o tema da 6352Analítica de Sein und Zeit. Ela é apenas visada cotematicamente, como base ôntica para a determinação ontológica do modo de ser do eis-aí-ser.

Expor as diversas possibilidades fáticas de existência, nos seus traços principais e nas suas ligações, e descobrir as respectivas estruturas ontológicas é tarefa não da ontologia fundamental, mas de uma Antropologia filosófica de cunho existencial. E neste sentido que se deve entender a obra de K. Jaspers, Psychologie der Weltanschauungen. No caso especial do cristianismo, é preciso ressaltar, porém, que as próprias possibilidades fáticas, testemunhadas pela fé, como a possibilidade da graça e do pecado, escapam essencialmente a uma verificação filosófica20. Isto não exclui que, recebido este testemunho extra-filosófico, seja possível determinar o arcabouço ontológico dos elementos que constituem a mundivisão especificamente cristã21, contanto que se investiguem previamente as estruturas ontológicas que condicionam toda e qualquer possibilidade fática.

Por isso, o que Heidegger aproveita no testemunho do Novo Testamento é a revelação concreta do sentido histórico da vida, como projeto, não os traços peculiares ao projeto do fiel. Esta exposição concreta do sentido da existência em geral que se pode recolher nos escritos do Novo Testamento, é orientada por uma pré-compreensão a-temática das próprias estruturas formal-ontológicas da mesma. Tematizá-las, com a ajuda de um método fenomenológico idôneo, é precisamente a ambição de Heidegger, mas tão-somente na medida em que se faz mister para a explicação da questão do sentido de ser em geral.

E preciso distinguir, porém, entre as estruturas indiferenciadas da existência (p.ex. ser-no-mundo, compreender, modo-de-achar-se, decair etc.), que Heidegger atinge juntamente com o modo de ser inautêntico do homem, através da análise da cotidianidade, e os fenômenos que caracterizam o ser autêntico do eis-aí-ser. Ser autenticamente significa, para o eis-aí-ser, ser aquilo que ele propriamente é; ser inautenticamente, ao invés, quer dizer ser aquilo que ele propriamente não é. Para a caracterização da autenticidade da existência, i.é, para o desvendamento do ser do eis-aí-ser na sua plenitude (e, por conseguinte, também do seu inverso a inautenticidade), a concepção cristã da vida assume um papel mais determinante do que na exploração das estruturas indiferenciadas. Com efeito, sem uma compreensão existêntica, a análise da existencialidade carece de fundamento. A determinação da estrutura da autenticidade como liberdade para a escolha na situação, devido à antecipação da morte, é feita à base de um modelo de existência (o cristão), que não é o único possível. Para Heidegger, porém, a opção por este modelo não é arbitrária, mas sim imposta pelos próprios fenômenos. Ela não circunscreve, entretanto, as possibilidades fático-existênticas do ser. O autêntico ser-para-a-morte é apenas uma estrutura formal-ontológica, da qual não se pode deduzir o conteúdo de um ideal concreto de existência, como seria a existência cristã.

Nem por isso seria exato caracterizar a Analítica existencial de Sein und Zeit como uma “secularização” da concepção cristã da vida, se com isto se entende a construção de uma mundivisão, na qual os diversos elementos constitutivos da existência cristã retornam como grandezas puramente mundanas22. Foi por efeito de uma ilusão ótica, explicável seja pela originalidade desnorteante do verdadeiro intento de Heidegger, seja pela situação histórica em que a obra apareceu, que muitos viram em Sein und Zeit a apologia de um ideal heroico-trágico da existência, ou a profissão do mais absoluto niilismo23.

Na verdade Heidegger não substitui por outra a mundivisão cristã24. Ele recua até o plano ontológico fundamental, até as estruturas subjacentes a qualquer atitude de vida. Ao falar do ser-para-a-morte, Heidegger nota expressamente que esta caracterização da existência, i.é, do ser-no-mundo como finito, não implica nenhuma decisão sobre a possibilidade ôntica de uma sobrevivência do homem no além-túmulo, ou de sua imortalidade. Tampouco a interpretação ontológica do homem como ser-no-mundo antecipa, positiva ou negativamente, a solução da questão de um possível ser-para-Deus. Enfim, a temporalidade radical do ser não exclui o reconhecimento de algo “supra-temporal”, cujo ser, no entanto, deverá ser entendido temporalmente.

O uso filosófico que Heidegger faz da experiência cristã da vida distingue-se da maneira de proceder de Hegel justamente pelo respeito diante dos dados da fé. Heidegger não tenciona efetuar a conciliação ente a filosofia e o cristianismo, através da elevação do conteúdo imaginativo dos dogmas ao plano racional do conceito25. Para ele, o cristianismo é um fato histórico irredutível, não uma “ideia” indeterminada. O que importa é manter a autonomia recíproca ente a fé e o pensar26. Nem por isso aquela é tida por irracional. Teologia não é, com efeito, senão o pensar da fé, e se a filosofia não é competente para discutir a positividade do dado cristão, ela é indispensável para a compreensão científica do mesmo.

  1. ”Espero em outra oportunidade poder mostrar como a Mística de Eckhart só alcança sua interpretação filosófica e sua valorização a partir destas considerações e da metafísica do problema da verdade, que será tocada mais abaixo” (DS, p. 232 n. 1).[]
  2. ”Die philosophischen Grundlagen der mittelalterlichen Mystik”. Trata-se de conjeturas, uma vez que não conhecemos o conteúdo inédito destas lições.[]
  3. Cf. DS, pp. 10s.[]
  4. Cf. SZ, p. 10a, 190 n. 1. Lutero viu e criticou a inadequação do aparelho conceituai da teologia escolástica. Ele não foi, porém, capaz de substituí-lo, positivamente, por categorias extraídas da própria experiência cristã, cuja peculiaridade tão bem ressaltara nos seus primeiros escritos. Destarte, ele recaiu nas malhas da tradição, que pretendia superar. Cf. também O. Pöggeler, op. cit., pp. 40s.[]
  5. Cf. SZ,p. 139 n. 1.[]
  6. Cf. SZ, pp. 190 n. 1, 235 n. 1, 338 n. 1.[]
  7. Cf. SZ, pp. 190 n. 1, 235 n. 1.[]
  8. Para maiores esclarecimentos cf. O. Pöggeler, op. cit., pp. 38-45, ao qual devemos também as nossas referências ao conteúdo dos cursos “Augustinus und der Neuplatonismus” e “Einleitung in die Phänomenologie der Religion”, que será mencionado logo a seguir. Sobre S. Agostinho ver também SZ, pp. 43d-44a, 139 n. 1,171,190 n. 1, 427b.[]
  9. Cf. SZ, p. 10a. H.-G. Gadamer, em seu artigo “Martin Heidegger und die Marburger Theologie”, publicado em Zeit und Geschichte. Dankesgabe an Rudolf Bultmann zum 80. Geburtstag, edit. por E. Winkler, Tübingen, 1964, refere do modo seguinte o conteúdo da participação de Heidegger, recentemente chegado a Marburgo como professor extraordinário, num debate da sociedade teológica daquela Universidade: “Ele disse (…) que a verdadeira tarefa da teologia, que ela precisaria reencontrar, consiste em buscar a palavra, que é capaz de chamar para a fé e na fé guardar” (p. 479).[]
  10. SZ, pp. 12e, 43c.[]
  11. SZ, p. 42d.[]
  12. À falta de outro vocábulo traduzimos “existenziell” pelo neologismo “existêntico”, reservando a forma vernácula “existencial” para exprimir o alemão “existenzial”. A diferença entre a compreensão existêntica e a existencial é explicada brevemente por Heidegger em SZ, pp. 12e-13b.[]
  13. SZ, p. 12b.[]
  14. SZ, pp. 15c-16b.[]
  15. SZ, pp. 222d-223a. Em Einführungin die Metaphysik Heidegger reconhece no poema de Parmênides a indicação de três caminhos, ao lado do ser e do não-ser, também a via da aparência (pp. 84-86).[]
  16. É verdade que Heidegger declara: “No caso destes conceitos elementares é, em geral, preferido o significado vulgar, não o original e essencial. Este é sempre de novo encoberto e só raramente e com dificuldade chega a ser conceitualizado” (WG, p. 23). De fato, a expressão “mundo”, à qual se refere principalmente Heidegger nesta passagem, assume geralmente o sentido, naturalístico e ôntico, de conjunto de coisas no espaço. Isto não impede que Heidegger, ao estudar a acepção peculiar que Kant dá, algumas vezes, ao vocábulo, mencione várias locuções da linguagem ordinária, que denotam uma compreensão existêntica do mundo (WG, pp. 33-36). Também quando somos levados a definir teoricamente o homem ou a vida humana, fazemo-lo ordinariamente numa linguagem naturalística, dada a força da tradição ontológica que nos alimenta. Não obstante isto, na sua automanifestação despreocupada, a vida apresenta-se muitas vezes sob um aspecto existencial, como mostrarão as próximas linhas, com isto não negamos que as fórmulas citadas a seguir possam ter sofrido a influência da compreensão cristã da vida ou mesmo ter sido criadas por ele, como Heidegger nota a propósito da acepção de mundo, que encontramos em Kant (WG, p. 35).[]
  17. ”Não é por acaso que os fenômenos da angústia e do medo (…) entram no campo de visão da teologia cristã. Isto aconteceu sempre que o problema antropológico do ser do homem para Deus obteve a primazia e fenômenos como fé, pecado, amor, arrependimento, dirigiram o questionamento” (SZ, p. 190 n. 1). “Não é porém por acaso que no contexto da nova compreensão ôntica da existência, que emergiu no cristianismo, a relação entre o cosmo e a existência (Dasein) humana e portanto o conceito de mundo se torne mais rigoroso e mais explícito” (WG, p. 24).[]
  18. Em Sein und Zeit Heidegger fala da “Einsicht” de Lutero, segundo a qual a teologia dogmática “baseia-se sobre um ‘fundamento’, que não brota primariamente de uma pergunta animada pela fé e cujo aparelho conceituai não só não é suficiente para a problemática teológica, mas a encobre e desfigura” (p. 10a).[]
  19. SZ, p. 180a. Numa conferência inédita, pronunciada diante da corporação teológica de Tübingen, a 9.7.1927, Heidegger discute expressamente o problema das relações entre teologia e filosofia. Seria longo expor aqui todo o curso de suas considerações sobre o assunto. Basta acenar para os resultados, que se podem compendiar nestas frases: “A fé não precisa da filosofia, mas sim a ciência da fé como ciência positiva” Esta dependência da teologia, em relação à filosofia é, porém, limitada a um aspecto bem determinado: “A filosofia é o corretivo (Korrektiv) possível, de caráter formal e indicativo (formal anzeigend), do conteúdo ôntico e de fato pré-cristão dos conceitos teológicos fundamentais”. Em que consiste esta função corretiva da filosofia em relação à teologia é explicado por Heidegger a propósito da noção de “pecado”: “A correção é antes meramente formal e indicativa, i.é, o conceito ontológico de culpa não é jamais tematizado pela teologia. O conceito de pecado também não é simplesmente construído sobre o conceito ontológico de culpa. Sem embargo, este é sob certo aspecto determinante, precisamente sob o aspecto formal, enquanto indica o caráter ontológico da região do ser, na qual o conceito de pecado como conceito existencial deve necessariamente residir. Nesta indicação formal da região ontológica está contida a orientação de justamente não elaborar o conteúdo teológico específico do conceito através de cálculos filosóficos, mas hauri-lo da e na dimensão existencial específica da fé, assim indicada, e deixá-lo dar-se gratuitamente (sich vorgeben zu lassen). A indicação formal do conceito ontológico não tem, portanto, a função de vincular, mas ao contrário de liberar e orientar para o desvendamento original específico, i.é, consentâneo com a fé, dos conceitos teológicos”.[]
  20. SZ, p. 306 n.l. Na já citada conferência sobre as relações entre a teologia e a filosofia (cf. supra, n. 93 ) diz Heidegger: “A ciência positiva da fé não precisa também da filosofia para a fundamentação e desvendamento primário de sua positividade, do elemento cristão. Este funda-se a si mesmo a seu modo”. E explica esta situação com o exemplo do pecado: “Assim, p. ex., o pecado só se revela na fé, e só o crente consegue existir faticamente como pecador. (…) Pois o pecado na sua essência não deve ser deduzido racionalmente do conceito de culpa. Muito menos deve e pode o fato do pecado ser de algum modo demonstrado racionalmente a partir do conceito ontológico de culpa. Nem mesmo a possibilidade fática do pecado torna-se através da orientação por este conceito minimamente evidente”.[]
  21. SZ, p. 180a. Na sua conferência “Theologie und Philosofia”, Heidegger acrescenta: “Ainda que a fé não se produza a si mesma, e ainda que o que nela se revela não possa ser fundamentado por um saber racional de uma razão deixada puramente a si mesma, todavia é próprio do acontecimento cristão como renascimento, que nele seja suprimida (aufgehoben) a existência precrente, i.é, descrente (ungläubig) da pessoa (Dasein). Suprimido não significa eliminado, mas sim assumido na nova criação e nela mantido e preservado. (…) Daí resulta: todos os conceitos teológicos fundamentais, enquanto cada qual é assumido no seu pleno contexto regional, possuem em si mesmos um conteúdo precristão, existenticamente (existenziell) impotente, é verdade, i.é, onticamente suprimido, mas por isso mesmo ontologicamente determinante, e, portanto, captável de um modo puramente racional. Todos os conceitos teológicos abrigam necessariamente em si a compreensão de ser, que o ser (Dasein) humano como tal por si mesmo tem, enquanto simplesmente existe”.[]
  22. O próprio Heidegger, a propósito do termo “Verfallen” (decaimento), refuta a insinuação de que se trata de uma “secularização” da ideia cristã da queda do homem no pecado: “A palavra não significa um pecado original entendido na perspectiva da filosofia Moral e assim secularizado, mas designa uma relação essencial do homem para o ser no âmbito da referência do ser para a essência do homem” (HB, p. 21).[]
  23. No posfácio de 1943 à sua preleção Was ist Metaphysik?, pronunciada a 24.7.1929, Heidegger refere e rebate as acusações de “filosofia do nada”, “filosofia da angústia”, “filosofia heroica”, assacadas contra o pensamento exposto nesta preleção (pp. 45, 47). Críticas semelhantes foram feitas também a propósito de Sein und Zeit.[]
  24. A propósito de “mundivisão” (Weltanschauung) veja-se SZ,p. 180a, WG,p. 35 n. 54.[]
  25. Sobre a conciliação entre filosofia e cristianismo, segundo Hegel, veja-se K. Löwith: Von Hegel zu Nietzsche. Der revolutionare Bruch im Denken des neunzehnten Jahrhunderts. Stuttgart, 1964, 5a ed., pp. 39s, 59-64.[]
  26. K. Löwith, op. cit., p. 62 escreve: “À medida que Hegel concebe o cristianismo absolutamente e ao mesmo tempo historicamente em conexão com o mundo e o Estado, ele é o último filósofo cristão antes do rompimento entre a filosofia e o cristianismo. (…) Pois se se toma o cristianismo em sua realidade historicamente determinada, e não como ‘ideia’ indeterminada, neste caso toda Filosofia é necessariamente irreligiosa”. Neste sentido também a filosofia de Heidegger seria irreligiosa, enquanto para ele: “Uma ‘filosofia cristã’ é um ferro de madeira e um mal-entendido” (EM, p. 6). Tal qualificação não implica, entretanto, a mínima hostilidade contra a fé cristã. Trata-se apenas da legítima ‘secularização’ da filosofia, aceita em princípio pelo próprio Tomás de Aquino. Mais delicada se torna a questão, quando Heidegger parece afirmar a incompatibilidade entre ser cristão e filosofar autenticamente: “Quem considera, p. ex., a Bíblia revelação e verdade divina, antes de qualquer perguntar da pergunta: ‘Por que afinal o ente é e não simplesmente nada?’, já possui a resposta: o ente, na medida em que não é o próprio Deus, é criado por ele. Deus mesmo ‘é’ como o criador incriado. Quem se situa no terreno de tal fé pode, é verdade, repetir de certo modo e acompanhar o perguntar desta pergunta. Não pode, contudo, propriamente fazê-la sem renunciar à sua condição de crente (ohne sich selbst als einen Gläubigen aufzugeben) com todas as consequências deste passo. Ele pode apenas fazer, como se…” (EM, p. 5). Estas palavras, à primeira vista sobremaneira chocantes, perdem grande parte de sua agressividade tão logo se atenda às frases que seguem. Nelas Heidegger faz duas observações que redimensionam completamente o problema:

    a) A fé, que exclui o questionar filosófico não é a fé autêntica, pois esta não consiste em apoiar-se comodamente numa doutrina tradicional, antes expõe-se permanentemente, através da interrogação, à possibilidade da descrença: “Mas de outro lado aquela fé, se ela não se expõe constantemente à possibilidade da descrença, não é nenhuma fé, mas sim um comodismo e um pacto feito consigo mesmo de no futuro agarrar-se à doutrina como à algo de algum modo transmitido. Isto não é mais nem crer nem interrogar, mas indiferença, que de ora em diante pode ocupar-se com tudo, talvez até com grande interesse, tanto com a fé como com o questionar” (EM, p. 5).

    b) A revelação bíblica da criação não constitui, como se julga ordinariamente, uma resposta à questão filosófica ‘porque há ente em vez de nada?’: “Com esta referência ao estar abrigado na fé, como uma maneira de situar-se na verdade, não se pretende afirmar que a citação da frase bíblica ‘No princípio criou Deus o céu e a terra etc.’ representa uma resposta a nossa pergunta. Prescindindo da questão se esta sentença da Bíblia é verdadeira ou não para a fé, ela não pode absolutamente representar uma resposta a nossa pergunta, porque ela não tem nenhuma relação com esta pergunta. Ela não tem nenhuma relação com ela, porque não pode de modo algum mantê-la. O que é propriamente perguntado em nossa pergunta é para a fé uma loucura” (EM, p. 6). É, portanto, estranho que Max Müller, sem a menor referência aos esclarecimentos que acabamos de citar, ponha-se a criticar a posição assumida por Heidegger nesta passagem, tachando-o de inconsequente com seus princípios: “Aqui a resposta da Bíblia e da Revelação é colocada no mesmo plano que a questão da metafísica ontológica. Em nossa opinião esta posição deixa de considerar o seguinte: Assim como o modo da origem do cosmo e das espécies de entes nele existentes não é ou deve ser explicado cientificamente pela narração bíblica da criação ou pela doutrina revelada sobre a criação, assim também esta resposta não constitui tampouco uma resposta à questão ontológica sobre o sentido, que não pergunta sobre a proveniência ôntico-fática do mundo e do ente nele existente” (Existenz-Philosopbie im Geistigen Leben der Gegenwart, Heidelberg, 1964, 31 ed., p. 47 n.). A distinção proposta para corrigir Heidegger é justamente a que ele, como vimos, já fizera no texto em questão! Não negamos, todavia, que Heidegger justaponha aqui, abruptamente, os vários aspectos do problema sem harmonizá-los expressamente. Além disso, seria de desejar que ele explicasse em que sentido a filosofia, conforme ele afirma, referindo-se claramente a S. Paulo (ICor 1,18ss), é para a fé uma “loucura” (Torheit). Veja-se um comentário desta passagem de Heidegger, afim ao nosso, em H. Birault: “La foi et la pensée d’après Heidegger”, em Recherches et Débats, 10 (1955) pp. 108-116.[]