(…) Tomemos um jogo como exemplo: o futebol. Antes de se dar início a qualquer jogo, faz-se mister conhecer as regras a priori. Todo e qualquer jogo possui normas, regras e limites que se impõem e que não podem ser ultrapassados. O jogador precisa estar preparado para aceitar as condições e se dispor a pôr-se sob as condições impostas. Tendo iniciado o jogo, os jogadores são levados de um lugar a outro e necessitam manter-se na mesma disponibilidade, do início ao fim, com o risco de perder. Se por instantes titubeiam, se desesperam, se entediam, eles estão pondo em risco a sua vitória. As normas já estão pré-estabelecidas, mas o que vai ocorrer durante as jogadas, não. Este acontecer é como que a potência organizadora que vige no jogo, sem que nós a possamos ver. Esta potência mostra-se através das jogadas, dos fatos e dos acontecimentos. Ou seja, nós vislumbramos o acontecer a partir dos acontecimentos.
Além disso, os jogadores põem-se a procura do mesmo, ou seja, da vitória. A vitória os move e os anima. Ela é o fogo de Prometeu que os impulsiona. No jogo, o que está posto em questão é a capacidade dos jogadores de — apesar de todas as experiências inquietantes e possíveis de serem vivenciadas durante o jogo, tais como: angústia, horror, culpa, dúvida, dor, encantamento, desespero, alegria, desconfiança, aventura, perigo, medo, coragem, questionamento, tormento, entre outras — não se tornarem joguetes das circunstâncias impostas pelo próprio jogo e não esquecerem o que fazem ali, mantendo-se na concentração do necessário, isto é, o anseio pela vitória. Para tal é preciso amar o jogar, amar pôr-se em risco, amar ter de superar a si próprio. Sem esta condição sine qua non, certamente se perderá. Ganhar quer dizer: apesar dos limites, a superação. Perder quer dizer: apesar da tentativa, a derrota.
O jogo constitui boa parte da vivência da criança. Com o “passar do tempo”, o jogo vai sendo reduzido a alguns momentos da vida do indivíduo, não desaparecendo em definitivo, mas adquirindo o caráter de um passatempo ocasional, de uma pausa recreativa, de um espaço lúdico diante da responsabilidade, dos negócios sérios da vida.
Procuremos meditar sobre o jogo e, com isto, relembrar o que aparece com ele. Primeiramente percebemos a vigência de limites e de regras pré-estabelecidas. Em segundo lugar, a presença de um tempo próprio. Mesmo que o jogo tenha um tempo determinado, na vigência própria do jogo o tempo é sem limite e sem determinação. Por isto o jogo é “coisa de criança”, uma vez que ela está aberta às várias situações e imposições que sobressaem no jogo. Grande é a facilidade das crianças em aceitar, ou mesmo, criar regras novas a fim de a elas se submeter, porque grande é a capacidade da criança de esquecer.
Talvez, por esta razão, enquanto o ser humano vai se tornando adulto, ele vai, ao mesmo tempo, “perdendo” a capacidade de “entrar no jogo” e, portanto, de jogar. O jogo torna-se uma brincadeira no sentido pejorativo da palavra. E como o jogo não se controla, nem ao menos se determina, ele fica restrito a um espaço mínimo da vida adulta. Ele fica restrito àquele espaço no qual o adulto se dá o direito de não dominar, de não saber de antemão o que vai acontecer, de não planejar, nem projetar, como também, de permitir-se a inventividade e a liberdade. Inventividade porque, apesar dos limites existentes no jogo, há um espaço para a criação qüe quer dizer superação, ou seja, abertura para a experienciação de novas possibilidades que estão além do já dito, do já concebido, do já pensado, do já vivido; daí a liberdade. No jogo, apenas nos pomos como viventes, como mortais diante da magnitude e da grandeza de uma ordem que é idêntica para todos.
No entanto o jogo, ao qual Píndaro e sua época se remetiam (Jogos Píticos), possuía um significado distinto da compreensão atual de jogo, isto é, tinha um nível de compreensão e profundidade maior. O Jogo era o lugar onde a relação entre o homem e o mundo, a vida e a existência, aparecia mais solenemente. Esta relação descrevia e descreve a “brincadeira” que é o aparecer e o velar próprios da estruturação de mundo e de existência. Neste jogo que é a vida, o mundo, o homem se vê jogado, daí a palavra jogo. Jogado no sentido de lançado, portanto diz respeito a um lance, a um jogo.
O jogo, então, é um lugar privilegiado onde aparece de maneira singular a relação entre o homem e o mundo. Com a mundanidade que há no jogo, eclode o brilho de uma potência organizadora que ilumina, morre e produz jogando. É o tempo que joga como criança. Neste lugar— que posteriormente no capítulo 1 nós analisaremos como sendo o eón— abre-se o espaço, a clareira onde as coisas nascem e perecem, aumentam e diminuem, aparecem e desaparecem, enfim, onde ocorre o tumultuar dos antagonismos, das oposições. Este lugar guarda a plenitude da força vigente nos horizontes das novas possibilidades, quer dizer, da força vigente na instauração do novo, do por fazer, do porvir.
Mas esta força, compreendida como potência organizadora que tudo produz, é quase sempre esquecida devido ao privilégio que se dá ao ente, ao real, às coisas feitas, concretizadas, acabadas, isto é, esquecemos o porvir em prol do repetir.