Luijpen: Intersubjetividade da verdade filosófica

A tese de que a verdade filosófica, para ser autenticamente filosófica, deve ser verdade-para-mim, é muito exagerada por alguns. Seguindo-se Kierkegaard, afirma-se às vezes que a verdade filosófica não é, de per si, verdade-para-todos, com valor geral ou intersubjetiva. Encontram-se em Jaspers textos — com outros que parecem dizer o contrário — que, com a melhor boa vontade do mundo, só podem ser interpretados como a negação da intersubjetividade essencial da verdade filosófica. Dessa forma, a divergência existente de fato nas opiniões transforma-se em característica da filosofia.1 Se os filósofos se pusessem de acordo, a filosofia deixaria de ser filosofia.2 Intersubjetividade deve ser exclusivamente uma característica da verdade “científica”. O filósofo tem de limitar-se a reproduzir, numa espécie de monólogo, sua verdade estritamente pessoal.3

Tal opinião, defendida por certos filósofos existenciais, é hoje em dia antiquada e abandonada, pois encerra uma latente contradição.4 De fato, como se pode admitir seriamente semelhante concepção filosófica acerca da verdade filosófica, senão (25) pressupondo que essa ideia, desde que verdadeira, vigora em princípio para todos?5 Sem subentender isso, não tem o menor sentido asseverar que nenhuma verdade filosófica vale para todos. Se defendo contra alguém a afirmação de que nenhuma verdade se impõe a todos e, consequentemente, essa verdade tampouco, não afirmo nada. Ao defender uma concepção que julgo verdadeira, tenho, com isso, a “pretensão” de que ninguém pode negá-la de maneira justificada. Na própria negação há de ser reconhecido o que se nega, e sem essa implícita afirmação a negação não tem significado algum. Quem nega a intersubjetividade essencial da verdade acha-se na impossível situação daquele que não pode mais ser um comigo, enquanto eu sou um com ele. Em Jaspers a contradição não permanece nem sequer latente e implícita. Porque, começando por dizer que é da natureza da filosofia que os filósofos não concordem entre si, afirma a seguir que o sentido e o ponto culminante da penetração na história do filosofar está “nos momentos de concordância na origem”.6

Jaspers teria naturalmente razão se quisesse apenas dizer que a verdade filosófica difere da que nos é manifestada pelas ciências positivas. Isso, porém, não significa que a primeira, ao contrário da segunda, deixe de ser intersubjetiva. Claro está que mais simplesmente se empreende uma pesquisa intersubjetiva de ciência positiva e se verificam seus resultados, de modo que de fato há mais concordância no campo das ciências positivas do que no da filosofia.7 Em principio, contudo, toda verdade é intersubjetiva, porque a verdade é verdade.

Sartre afirmou bem explicitamente a intersubjetividade essencial da verdade, embora dentro de um contexto que não é o nosso, a saber, a absoluta liberdade do homem. Todos os que negam sua absoluta liberdade por procurarem nos sinais do céu uma garantia para seus atos ou pretenderem achar em suas paixões desculpa pelo que fizeram, estão para Sartre em “má fé”, vivendo inautêntica e imoralmente. Negam o que são: absolutamente livres. São covardes e safados.8 Então (26) Sartre se pergunta se o homem na absoluta liberdade não pode escolher a vida em “má fé”. Sua resposta é incondicionalmente negativa. “Aqui não se pode escapar a um juízo de verdade.”9 Quem escolhe viver na “má fé” desconhece, diz ele, a verdade de sua essência. Se a essência do homem é a absoluta liberdade, ninguém pode negá-la em seus atos. Certos modos de escolha são fundados no erro; outros, na verdade a respeito do homem.10 A verdade acerca da essência do homem deve, porém, ser reconhecida por todo homem.11

Aí está também, para Sartre, a fonte da angústia.12 Sou angustiado, diz ele, devido à responsabilidade que assumo por minha escolha. De fato, quando escolho, não o faço só para mim, mas para toda a humanidade. Suponhamos que, sendo operário, eu resolva inscrever-me num sindicato cristão e não num comunista; assim procedo, pensa Sartre, na convicção de que temos de resignar-nos e não buscar estabelecer o reino do homem na terra, como pretendem os comunistas. Escolho-o por estar convencido de uma verdade. Semelhante convicção significa que vi pessoalmente ser verdadeira alguma coisa, mas também que ninguém pode com razão negar a verdade. Donde afirmar Sartre: quando decido, faço-o para toda a humanidade.13 Por princípio, não existe, pois, nada de arbitrário na verdade e nenhum caos na vida.

De fato, entretanto, a verdade não é reconhecida por todos. Isso não deve induzir-nos a um irenismo relativista, um laisser aller (deixar ir) que deixa a cada um sua “verdade” ou “erro”, sem procurar um acordo de fato entre todos. Uma sociedade verdadeiramente digna do homem requer uma submissão comum à verdade. A intersubjetividade essencial da verdade revela-se como impossibilidade de negociar com ela. A verdade tem de ser descoberta pelo homem, mas transcende a nós homens; estamos submetidos a ela. A verdade é negada como tal quando a tolerância é interpretada como relativismo. Nesse caso, impossível falar ainda de verdade.14

(27) A noção que o verdadeiro filósofo tem do direito absoluto ao reconhecimento, contido na verdade, torna-o um tanto intransigente. Desde que a verdade é verdade, deve ser reconhecida ! Todos os que, por qualquer motivo, tenham interesse em violentar a verdade, encontram os filósofos contra si. Em certo sentido, os filósofos falam como representantes da humanidade, protegendo uma das mais preciosas possibilidades do gênero humano. Quando uma sociedade se baseia em mentiras, ou os filósofos caem como mártires15 ou começam a figurar como marionetes, i. é, deixam de ser filósofos.16

  1. “Que toda forma da filosofia, distinta das ciências, carece do unânime reconhecimento de todos, deve estar na sua natureza”. K. Jaspers, op. cit., p. 10.[]
  2. “O que todos aceitam devido a razões convincentes, torna-se com isso um conhecimento científico: não é mais filosofia”. K. Jaspers, op. cit., p. 9.[]
  3. “E ainda, note-se bem, esse monólogo não pode senão esclarecer, não pretendendo explicar, porque só se explicam situações objetiváveis, e as situações da existência não são objetiváveis em nenhum grau”. A. de Waelhens, La philosophie de Martin Heidegger, Louvain, 1948, p. 299.[]
  4. A. de Waelhens, op. cit., pp. 295-302.[]
  5. “A vontade de falar é o mesmo que a vontade de ser compreendido”. EP, p. 74.[]
  6. “Mas a significação e o auge da penetração histórica residem nos momentos de concordância na origem”. K. Jaspers, op. cit., p. 138.[]
  7. “A filosofia não é uma ciência; isso não significa, entretanto, que, ao contrário da ciência, não possua nenhuma verdade adquirida, mas só que suas verdades não estão sujeitas à verificação de fato e aos controles precisos”. G. van Riet, art. cit., p. 117 (nota ao pé da pág.).[]
  8. EH, pp. 84-85.[]
  9. EH, p. 81.[]
  10. “Certas escolhas estão fundadas no erro, e outras na verdade”. EH, p. 80.[]
  11. “Assim, embora o conteúdo da moral seja variável, certa forma dessa moral é universal”. EH, p. 85.[]
  12. EH, pp. 25-30.[]
  13. EH, p. 27.[]
  14. A. Dondeyne, L’idée de tolérance, em: Les Etudes Philosophiques XII (1957), Actes du IXe Congrès des Sociétés de philosophie de langue française, Merleau-Ponty, pp. 398-399.[]
  15. G. Verbere, Apologia Philosophiae, em: Tijdschrift woor Philosophie XIX (1957), pp. 580-583.[]
  16. H. L. van Breda, Les entretiens de Varsovie, em: Tijdschrift woor Philosophie XIX (1957), pp. 713-721.[]