Há vinte e cinco séculos se filosofou e o resultado foi o surgimento de inumeráveis sistemas contraditórios. Conquanto o pensamento filosófico seja muito mais antigo do que a ciência positiva que conhecemos hoje, não há nem sequer um reduzido número de proposições sobre as quais os filósofos estejam de acordo.1 Pode-se mesmo dizer que talvez não exista uma só afirmativa que não seja negada por um ou outro filósofo do presente, passado ou futuro. Mas enquanto o especialista, admirado da fertilidade sempre crescente da ciência positiva, se ri do filósofo, surge, em cada século, pelo menos um gênio com uma nova filosofia. O homem, ao que parece, não pode deixar de filosofar. Impossível fazê-lo, e se os detratores entendessem isso, veriam que zombar da filosofia seria ainda uma espécie de filosofia, embora má.2
Talvez convenha demorar-nos nesse ponto. Aqueles que rejeitam a filosofia, e por isso são maus filósofos, não pertencem amiúde à categoria dos que poderíamos sem receio qualificar de tolos. Ao contrário. Não raras vezes, a filosofia é menosprezada por pessoas que são, de resto, bem inteligentes, versadíssimas em algum campo da ciência positiva, e que, precisamente devido ao êxito em sua ciência, são tentadas a tornar absoluto o valor de um determinado saber científico. Abaixo a filosofia, viva a ciência natural! Esta, pelo menos, nos dá um conhecimento verdadeiro e seguro.
Não é difícil verificar que tal atitude contém uma filosofia em princípio “completa”. De fato, quem identifica, sem mais, o saber da ciência natural com o saber verdadeiro e certo possui uma teoria do conhecimento “completa” em princípio: o conhecimento deve ser o da ciência natural. Mas, perguntamos, é tarefa do cientista natural definir o que é o conhecimento ? Não; isso compete ao filósofo ! Nos livros de física nada se diz do conhecimento; nem sequer se trata da definição da ciência natural.3.
Uma teoria do conhecimento é uma convicção filosófica. Logo, quem propõe uma teoria do conhecimento, em princípio “completa”, não pode deixar de enunciar ao mesmo tempo também uma teoria da realidade, em princípio “completa”. Com efeito, se quisermos definir o conhecimento, devemos admitir que ele, ao contrário do sonho, da imaginação, da alucinação ou coisas semelhantes, é o desvelar da realidade.4 Assim, quem, pela absolutização da ciência natural, excogita uma teoria do conhecimento, estabelece também, ao mesmo tempo, uma teoria da realidade. O que não pode ser desvelado pela ciência física deixa simplesmente de ser realidade. Será, porém, tarefa do físico definir o que é a realidade ? Não; isso cabe ao filósofo.5
O cientismo, compreendido como absolutismo das ciências — ou da ciência natural, pois até há pouco se definiam todas as ciências positivas como “formas imperfeitas da ciência natural” — é propriamente uma contradição interna. Ele afiança que os enunciados pertencem à ciência natural, com o que qualifica implicitamente os outros enunciados de absurdos. Mas essa própria afirmação, de toda evidência, não é um enunciado da ciência natural — quem pensa assim não sabe o que é ciência natural — e, por conseguinte, subentende-se que faz parte dos enunciados absurdos. Contudo, quem admite a afirmação acima julga tacitamente exprimir um enunciado com sentido; vive, pois, numa contradição. A tentação do ceticismo é forte para o filósofo; este não pode, porém, ser infiel à filosofia ou repudiá-la sem se tornar defensor da pior filosofia pensável. Se pertence à essência do homem ser filósofo, sua obrigação é sê-lo tão bem quanto possível.
Quando uma nova filosofia aparece, os maus ou inautênticos filósofos curvam-se sobre ela para ver se afinal foi apresentada a filosofia. Naturalmente veem-se desiludidos, o que quer dizer que continuam sendo maus ou inautênticos filósofos. O verdadeiro filósofo sabe melhor, pois sabe que a filosofia não existe nem deve existir; se existisse, não haveria mais nenhum filósofo.
K. Jaspers, Einführung in die Philosophie, München, 1957, p. 9. ↩
A. G. M. van Melsen, Natuurwetenschap en Techniek, Utrecht-Antwerpen, 1960, p. 19 ↩
E. Husserl, Philosophie als strenge Wissenschaft, em: Logos I (1910-1911), pp. 299-300. [Trad. port. de Albin Beau: A Filosofia Como Ciência de Rigor, Atlântica, Coimbra, 1952] ↩
C. A. van Peursen, Feiten, waarden, gebeurtenissen, Een deiktische ontologie, Hilversum-Amsterdam, 1965, p. 34. ↩
C. A. van Peursen, op. cit., p. 40. ↩