Luijpen – Crítica da psicologia tradicional da percepção

Excertos de W. Luijpen, “Introdução à fenomenologia existencial”

Uma vez vista a unidade original da estrutura figura-horizonte, dada na percepção, compreende-se sem dificuldade que a explicação psicológica da percepção pelos adeptos da psicologia de elementos não faz justiça a esse fenômeno como ocorre realmente. Tais psicólogos admitem que a percepção é construída de sensações elementares, insulares e punctiformes, causadas por estímulos físico-químicos.

Esta explicação não abre perspectivas, visto que jamais se encontraram sensações elementares. Além disso, indicando-se uma constelação de estímulos, não se explica a percepção I assim como se produz na realidade, nem se exprime o que se passa realmente no ato de perceber. Uma cor, p. ex., nunca é apenas uma cor na percepção, mas sempre a cor de alguma coisa.1 Há uma enorme diferença entre o vermelho lanoso de j um tapete, o viscoso e grudento vermelho do sangue, o refrescante e radioso vermelho de um rosto sadio e sanguíneo e o sedutor vermelho de uns lábios pintados. Essa diferença não se explica de modo algum pelos estímulos físico-químicos.2 É a totalidade do objeto que se apresenta na percepção, não aparecendo nela o objeto como um aglomerado de excitantes, mas como uma significação dada. Um amontoado de estímulos é outra coisa que a ira ou a dor que leio no rosto de meu semelhante: percebo a ira e a dor como significados de um rosto.3 A redução de um sentido a certa constelação de estímulos implica que jamais posso perceber que uma paisagem ou um rosto sejam alegres, tristes, animados, melancólicos, monótonos ou insípidos.4 Um rosto alegre e feliz não se define pelas propriedades físico-químicas de uma constelação de estímulos, e, contudo, tenho a ideia de ter visto um rosto alegre e feliz.

Mas, também visto do lado do sujeito, há muitas dificuldades contra a explicação psicológica da percepção pelos elementaristas. O sujeito percipiente reduz-se a um aglomerado de impressões insulares, punctiformes. Os elementaristas dizem muito bem não ser possível mostrar para cada uma dessas impressões um estímulo como causa. Quando leio um livro ou entabulo uma conversação, não recebo uma impressão particularizada de cada letra escrita ou som falado; não obstante, leio e ouço palavras e frases. Da parte posterior da mesa e de sua parte inferior meu “aparelho receptor e registrador”, aparelho dos sentidos, não recebe as “mensagens” dos estímulos; contudo, tenho ideia de estar percebendo uma mesa. Ao perceber minha água-furtada, só recebo estímulos das paredes que estão diante de mim, e a meu lado, mas não da parede de trás nem do telhado; entretanto, sei que meu quarto tem quatro paredes e é uma água-furtada.

Tais dificuldades não levaram os elementaristas a abandonar sua teoria dos estímulos. Julgaram poder superá-las com a introdução de uma nova teoria: a hipótese dos complementos por meio da associação e reprodução, ou outras invenções semelhantes.

Para eles, fica claro o seguinte: a percepção pode não ser percepção da totalidade da realidade; a percepção da totalidade pode não ser primária; deve, porém, obrigatoriamente ser construída de elementos psíquicos. Com outras palavras, a psique deve ser composta como uma coisa da natureza, os conteúdos da consciência devem ser elementos e tratados como se costumam tratar os elementos nas ciências naturais. Eis a incondicional exigência para o caráter “científico” da psicologia.5

Entretanto, a teoria da associação e reprodução, exigida como complemento pela teoria dos estímulos, tem de pressupor o que quer explicar. A associação, consoante a terminologia de Claparède,6 concebe-se como um “cordão” psíquico ligando as impressões punctiformes. Dada a interconexão das impressões, um estímulo exterior muito fragmentário basta para reproduzir o conjunto ou totalidade do percebido. Assim deve poder manter-se o primado das impressões isoladas sobre a percepção da totalidade.

Esta teoria, como dissemos, pressupõe o que pretende explicar. As impressões sempre se associam, de muitos modos, com outras impressões. Portanto, a reprodução de um conjunto pode fazer-se de várias maneiras. Mas como sucede que justamente este conjunto se reproduza ? Por um estímulo fragmentário poderiam formar-se diversas totalidades. Como “sabem” as impressões atuais que impressões suscitar para o complemento do conjunto ? Se é sem “razão” ou casualmente que estas e não aquelas impressões são evocadas da memória para complemento, a percepção não será explicada, porque, com o acaso, nada se explica. Se, pelo contrário, há uma “razão” para reproduzir esta e não aquela totalidade, supõe-se certo “saber” da totalidade, donde se deduz que a explicação pela associação se torna supérflua, porque já está pressuposto o conhecimento da totalidade a esclarecer.7

Até mesmo a psicologia dos elementos precisa, pois, afirmar a prioridade do objeto percebido, visto que a teoria da associação e da reprodução pressupõem tal coisa.8 Atendo-nos à sensação tal como ocorre, cumpre afirmar a prioridade do conjunto; se não o fizermos, afirmamos a mesma prioridade implicitamente, pelo fato de a pressupormos.

Isso nos traz de volta a nosso ponto de partida: é contraditório querer substituir a experiência comum pela das ciências naturais, ou pretender pôr em lugar do mundo da experiência cotidiana um sistema de significados descoberto por alguma ciência.9 A reflexão filosófica exige uma volta à experiência original e ao mundo original, despojados da superestrutura de teorias acrescentadas pelas ciências. Esta volta se chama “redução fenomenológica”.


  1. “Uma cor nunca é simples cor, mas cor de certo objeto, e o azul de um tapete não seria o mesmo azul se não fosse um azul lanoso”. Merleau-Ponty, Phénoménologie de la Perception, p. 361. 

  2. A chamada “hipótese da constância”, a teoria segundo a qual os estímulos de determinada força provocam em todo caso uma “reação” constante, contrasta com os fatos reconhecidos pelos próprios psicólogos. Cf. Merleau-Ponty, Phénoménologie de la Perception, p. 14. 

  3. “Definindo uma vez mais o que percebemos pelas propriedades físicas e químicas dos estímulos que podem atuar sobre nossos aparelhos sensoriais, o empirismo exclui da percepção a cólera ou a dor que, entretanto, leio num rosto; a religião cuja essência apreendo, não obstante, numa hesitação ou numa reticência; a cidade cuja estrutura, apesar de tudo, conheço na atitude do guarda civil ou no estilo de um monumento”. PF, p. 32. 

  4. Merleau-Ponty, Phénoménologie de la Perception, Merleau-Ponty, Phénoménologie de la Perception. 31-32. 

  5. “Está-se certamente convencido de que, considerado, em princípio, na sua generalidade, o método de todas as ciências experimentais é um só, e, desde logo, o mesmo na psicologia como na ciência da natureza física”. E. Husserl, Philosophie als strenge Wissenschaft, em: Logos, I (1910-1911), p. 309. 

  6. E. Claparède, L’association des Idées, Paris, 1913, p. 7. 

  7. “No momento em que a evocação se torna possível, fica sendo supérflua, porque o trabalho que dela se espera já está feito”. Merleau-Ponty, Phénoménologie de la Perception, p. 27. 

  8. “Se nos atemos aos fenômenos, a unidade da coisa na percepção não é construída pela associação, mas, condição da associação, precede as informações que a verificam e determinam, ou seja, precede a si mesma”. Merleau-Ponty, Phénoménologie de la Perception, p. 24. 

  9. “Como vimos, não se pode reconstituir assim, combinando situações ideais (estímulos, receptores, circuitos associativos), a estrutura da experiência perceptiva”. Merleau-Ponty, La Structure du Comportement, p. 235.