Loparic: ter-que-cuidar

Em vários trabalhos, a começar por Ética e finitude (1995), sugeri que Heidegger abriu um novo campo de investigação sobre os fundamentos da ética, a qual não visa, como a de Aristóteles, a determinar as virtudes como bases do bem-viver,4 nem, como a de Kant, a formular as regras morais do bem agir, mas explicitar o ter-que-ser (das Zu-sein) no homem. Como mostrei em Sobre a responsabilidade, capítulo 3, o conceito heideggeriano de ter-que-ser factual afigura-se como desconstrução existencial-ontológica, típica da primeira fase de Heidegger, do conceito metafísico do dever. Já em 1919, Heidegger afirma que a dadidade originária da filosofia é a “dadidade do dever” (Sollensgegebenheit). Nesse ponto, Heidegger não dialoga tanto com o senso comum nem mesmo com a moral empirista, e sim com Kant e os neokantianos. O ter-que-ser heideggeriano é uma desconstrução do ter-que-obedecer à lei moral no sentido de Kant. Como vimos, já em Kant o dever não se baseia em considerações relativas à sobrevivência ou ao bem-estar, pessoal ou coletivo, nem por qualquer outra consideração de conteúdo material ou afetivo (valorativo), mas única e exclusivamente pelo comando da razão. A ditadura da razão não determina qualquer agir em particular (por exemplo, preservar a vida ou otimizar certos parâmetros empíricos da convivência entre os homens), mas tão somente a forma, o como do agir e da vida no seu todo, tanto dos indivíduos como do gênero humano. Estamos na esfera da determinação não apenas formal, mas também pura do existir dos homens, distinta do domínio comandado pelo consenso social e pelas exigências ligadas à prestação de serviços do bem-estar. Em Kant, a vida moral resulta, como vimos, do fato da razão, da coerção (Zwang) da vontade finita humana pela lei moral. Em Heidegger, o estar-no-mundo próprio é fruto do fato da responsabilidade para com a presença como tal e para com todos os presentes, transmitida (überantwortet) ao homem pela não identidade consigo mesmo, cisão reveladora da diferença ontológica entre o não-mais e o ainda-sim. Em nenhum desses casos, trata-se de fato bruto, de uma dadidade que pertencesse ao domínio dos fenômenos naturais, a ser concebida à luz da categoria da efetividade.

O ter-que-ser heideggeriano, que ocupa o lugar do dever ser kantiano, tem um sentido ontológico e um sentido ôntico. “Ser humano” significa, por um lado, ter cuidados ontológicos – ter-que-cuidar do sentido do ser, do sentido da presença no mundo de si mesmo, dos outros e dos entes no seu todo – e, por outro lado, ter cuidados ônticos, relativos aos seus próprios modos de estar presente no mundo, bem como aos modos de estar-aí dos outros e das feições das coisas, a continuidade desses cuidados sendo fundada na continuidade do si-mesmo, na sua “estância” (Ständigkeit), no tempo finito originário.

Como essas duas modalidades do cuidado – a ontológica e a ôntica – se originam e se fundamentam na própria estrutura do existir dos seres humanos, a ética heideggeriana não oferece propostas sobre novas virtudes nem sobre novos princípios do tipo acional. Heidegger questiona a própria ideia de que a tarefa de cuidar da presença e dos modos de presença dos entes intramundanos possa ser reduzida a estas ou aquelas práticas virtuosas ou aos modos de agir racional com respeito a tais ou quais fins.5 A sua ética do cuidado diz, no essencial, que tenho que manter aberto um espaço no qual eu próprio e os outros seres humanos possamos existir a partir de nós mesmos sem sermos objetificados como meras presentidades seja pelo cotidiano público seja pela razão. Decerto, a objetivação prática (em termos de regras extraídas da vida boa em comum ou diretamente da razão) é inevitável, dadas as nossas premências ônticas. O que tem-que-não-ser, contudo, é a objetidade tornar-se para nós ontologicamente inevitável, isto é, o único sentido de ser dos entes no seu todo. O motivo desse imperativo é o seguinte: na época na qual a objetificação prevalecer, os homens passarão a subsistir exclusivamente como efeitos das regras sociais ou, no extremo, como produtos técnico-práticos ou moral-práticos patenteados, não tendo mais condições ontológicas para existir.6

Em suma, em Heidegger, o ter-que-cuidar dos diferentes sentidos de ser e do sentido originário de ser dos seres humanos é o fundamento dos cuidados ônticos, factuais, de si e dos outros, os quais promovem a apropriação e a manutenção dos modos de ser “autênticos” no mundo – tanto os modos de ser que são nossos, portanto próprios, como os praticados por aqueles que compartilham conosco o nosso estar-aí. Heidegger não descarta a ética aristotélica ou kantiana; sua crítica consiste em dizer que estas são formas derivadas do ter-que-ser originário. Sendo assim, ele estende à ética a sua tese de multiplicidade de dizeres filosóficos em geral, que repousa, de resto, sobre um tema aristotélico, a saber: ser se diz de diferentes maneiras. (LOPARIC, Winnicott e a ética do cuidado, Introdução §4)