Loparic (EF:13-15) – destinamento e ética

Na fase de Ser e tempo, no final dos anos de 1920, Heidegger ainda pensava que a “destruição”1 da metafísica poderia valer-se da transcendência constitutiva do existir humano. Em meados dos anos de 1930, ele descobriu que o infinitismo não era fruto de um projeto humano, mas um destinamento 2 do próprio ser. Assim sendo, o homem também não podia se desvencilhar do infinitismo por suas próprias forças, devendo aguardar a virada (Kehre) do ser. Virada súbita, não mediatizada e condicionada a um novo destinamento, que só poderá dar-se como contencioso e, assim, também finito.

Para que possa corresponder a esse destinamento, entrar nesse contencioso, o homem não precisa apenas afastar-se de todas as doutrinas metafísicas. Ele tem que convalescer da própria essência da metafísica: transcender a vontade de presenciar a presença de todas as coisas e de si mesmo na forma da ideia, à maneira platônica, e, a fortiori, abandonar o acesso representacional ao ente. O homem tem que deixar-se interpelar pela presença “mediatizada” pela ausência. Heidegger faz ver que o nosso pensamento da positividade precisa compenetrar-se daquela negatividade que não oblitera, como temia o infinitismo tradicional, mas que, pelo contrário, possibilita o acesso originário ao ser. Haverá necessidade de se pensar o não-ser no ser, o ocultamento no desocultamento da verdade, o in-devido em todo ter-que-ser. Será preciso atentar para o “positivo” na “privação” que possibilita. Será incontornável reconhecer, na positividade do fundamento tradicional, a negatividade do retraimento possibilitador.3

Esse pensamento da finitude é ainda um agir: o agir fundamental para o qual o homem é convocado pelo próprio ser negativado. Corresponder a esse chamado, tentar dar resposta à pergunta sobre sentido do destinamento contencioso do ser, é um ter-que 4 (mussen) mais originário do que qualquer “dever moral”.5 Esse ter-que cumpre-se na medida em que o homem aprende a morar no espaço da manifestação e, ao mesmo tempo, do ocultamento do ser. A resposta é dada uma vez que o homem edifica e pensa “a partir do” e “para o” morar (Heidegger, 1954, p. 162). Morar, edificar e pensar: esses são, segundo a ética finitista de Heidegger, os nossos principais modos de responder ao chamado do ser e também os nossos principais “deveres”.6 (LOPARIC, Zeljko. Ética e Finitude. São Paulo: Editora Escuta, 2004, p. 13-15)

  1. A “destruição” (Destruktion) da metafísica não significa o seu desmantelamento, mas a sua “desconstrução” (Abbau) a partir da sua origem pré-metafísica. Trata-se de uma tarefa que obedece a leis próprias, distintas das que regem estudos histórico-filosóficos e filológicos (as traduções “violentas” dos textos gregos, oferecidas por Heidegger, são a melhor prova disso). Da mesma maneira, a expressão “o fim da metafísica” não designa a sua eliminação da vida cultural do Ocidente, mas tão-somente a libertação do ente do poder da representação. O projeto heideggeriano de desconstrução foi associado, por Lévinas e Derrida, com repercussões conhecidas, ao antiontologismo da tradição judaica.[]
  2. Por “destinamento (do ser)” traduzo as expressões heideggerianas Geschick des Seins e Seinsgeschick. Proponho, ainda, o neologismo “destinamental” para o termo heideggeriano geschicklich. Creio ser conveniente reservar a palavra “historiai” – em razão de seu sentido etimológico, que deriva do grego historein, investigar, observar, narrar – para designar processos que se dão no interior das épocas marcadas pelos destinamentos do ser, bem como os saberes que dizem respeito a esses processos.[]
  3. Sobre a apreciação do “positivo” na essência “privativa” da a-letheia, cf. Heidegger, 1947, p. 51.[]
  4. Emprego a expressão “ter-que” (com hífen, para deixar claro que seu referente é um conceito e não parte de uma proposição) para verter o termo heideggeriano mussen, que, no presente contexto, não convém traduzir por “dever”, a fim de evitar toda conotação ainda ligada à ética dos deveres. Prefiro “ter-que” a “ter-de”, para indicar que se trata de uma necessitação mais próxima da expressa na locução “ter que se alimentar bem”, quando aplicada a uma criança no processo de crescimento, do que da obrigação significada por “ter de estudar”, ao se falar de um adolescente no processo de socialização.[]
  5. Além de “corresponder” e “correspondência”, Nunes usa também “reciprocar” e “reciprocidade” para os termos entsprechen e Entsprechung de Heidegger (Nunes, Benedito. Passagem para o poético. São Paulo: Ática, 1986, p. 216). Essa proposta suscita reservas, já que a relação do homem ao ser não é de diálogo, e sim de obediência, o que exclui a reciprocidade.[]
  6. Lévinas seguirá Heidegger no seu distanciamento do infinitismo tradicional. Não o fará, no entanto, para reconhecer a precisão do tomar pé na verdade do ser, e sim para preparar o homem ao sacrifício do ser. Retornando à tradição judaica, liberada com a ajuda de Heidegger da tradição metafísica infinitista, Lévinas tentará elaborar uma ética também finitista, mas independente de qualquer pensamento do ser; uma ética do serviço ao próximo, traço vivo do Outro-que-o-ser (cf. Lévinas, Emmanuel. Autrement qu’être ou au-delà de l’essence. Paris: Kluwer, 1974).[]