Loparic (EF:10-11) – crise do infinitismo

Hoje, o infinitismo está em crise, tanto na filosofia como no resto da cultura ocidental. O relativismo teórico e a falibilidade são moedas correntes nas teorias da natureza. A morte das utopias e do messianismo secularizado sinaliza o mea-culpa das éticas infinitistas.1 Também perderam a (10) força as ideias correlatas do progresso e da perfectibilidade do homem. A fantasia de criar o “novo homem”, quando prevaleceu, revelou-se um caminho de retorno à barbárie. O próprio conceito de história caiu em descrédito. Fala-se até em fim da história. Não no sentido do cumprimento de um destino, mas, pelo contrário, de substituição do “movimento de totalização” pela “administração total” dos conflitos que vão aparecendo. Assim como o conceito tradicional de história, o de ética também sofreu desgaste. Entraram em crise conceitos que atravessaram épocas: o do dever e o do agir. De fato, hoje, o dever virou sinônimo de obediência à realidade dos fatos e aos acordos sociais, perdendo o sentido nobre de moralidade incondicional ou de compromisso histórico inarredável. Agir não significa mais “fazer o bem” ou “fazer história”, mas, de maneira crescente, agir planejadamente. Dos fragmentos da ética da perfectibilidade surge a engenharia social. Das cinzas da história do progresso, um mundo crescentemente administrado. Nessas condições, pode não surpreender a sugestão de que o modelo de história mais condizente com a acontecência 2 do homem poderia bem ser o da história da arte, em que não há lugar para os conceitos infinitistas que anunciam a plenitude dos tempos.

Alguns, no Oriente e no Ocidente, levantaram suspeitas de que ambos os conceitos, o de ética, baseado em regras categóricas, e o de história de salvação seriam idiossincrasias ocidentais. Segundo Daisetz T. Suzuki, a ideia bíblica de que o homem foi criado à imagem de Deus e de que a natureza foi feita para ser dominada, ideia que presidiu a todos os messianismos e milenarismos europeus, marca o começo da tragédia humana (Suzuki, 1956, p. 231). Karl Löwith, num artigo escrito em homenagem a Heidegger, observa que a divisão entre o mundo da natureza e o mundo da história não existe fora da Europa, por exemplo, no Japão. Ela decorrería exclusivamente das tradições grega e judaica, que, teme Löwith, tornaram-se estreitas demais para poder continuar orientando a discussão dos problemas contemporâneos. Löwith cita a afirmação do filósofo japonês Kitarô Nishida (1870-1945),3 de que o Ocidente foi levado ao dualismo natureza-história porque, desde Parmenides até Hegel, só pensou o ser, sem conhecer o conceito verdadeiro, budista, do nada. Esse conceito não significa a mera negação do ser, mas, pelo contrário, a plenitude mais rica que o universo das coisas positivas. O homem ocidental buscou a plenitude no lugar errado: no próprio ser, erroneamente suposto como infinito; e, além disso, usou os meios errados: ações visando ao aperfeiçoamento infinito, dirigido por deveres éticos e pragmáticos, todos, em princípio, racionalizáveis, isto é, plenamente justificáveis. A sabedoria diz, no entretanto, que o perfeito é menos distante de nós que nós mesmos, e que só nos aproximaremos dele se deixarmos de agir visando a resultados que tragam o progresso (cf. Löwith, 1950, p. 109-15).4

  1. Numa entrevista, Lévinas declarou: “Mas, em princípio, os que pregam o marxismo esperavam tomar o poder político inútil. (…) Há aí um messianismo. Outra coisa é o que isso deu na prática… Para mim, uma das grandes decepções da história do século XX tem sido o fato de um movimento como esse ter dado no stalinismo. É isso aí a finitude!” (Lévinas, 1991, p. 139).[]
  2. Aqui, o termo “acontecência” traduz Geschehen e Geschichtlichkeit do Dasein, bem como do próprio ser, no sentido do segundo Heidegger. Uso “acontecente” para verter o termo geschichtlich. Cf. a nota 9.[]
  3. Löwith está se referindo à obra de Kitarô Nishida: Die morgenländischen und abendländischen Kulturformen in alter Zeit vom metaphysischen Standpukt aus gesehen. Berlin: Abhandlungen der Preussischen Akademie der Wissenschaften, 1939.[]
  4. Huston Smith, então professor de filosofia no Massachusetts Institute of Technology, no seu prefácio a uma coleção de textos zen-budistas (Kapleau, 1967), explica, da seguinte maneira, o crescente interesse do Ocidente pela cultura oriental e, em particular, pelo zen-budismo: “Nós entenderemos a atração específica do zen-budismo se nos dermos conta da extensão em que o Ocidente contemporâneo segue animado pela ‘fé profética’, pelo sentido da santidade do dever, pela pressão do modo como as coisas poderíam e deveríam ser, mesmo se, por enquanto, ainda não sejam. Tal fé tem virtudes óbvias, mas se toma excessivamente opressiva, quando não é contrabalançada pelo sentido complementar do caráter sagrado do é. Se os nossos olhos sempre se dirigem para o amanhã, o hoje se esvai sem ser percebido. Para o Ocidente que, na sua preocupação de remodelar o céu e a terra, corre o perigo de deixar escapar das mãos o momento presente da vida – a única vida que realmente temos -, o zen relembra que se não aprendermos a perceber o mistério e a beleza da vida presente, a nossa hora presente, não perceberemos mais o valor de vida alguma, de hora alguma. (…) O zen nos diz que o é sagrado…” (Kapleau, 1967, p. XIII). Huston Smith está se referindo às abordagens que não tentam mais, como fazia Schopenhauer (em parte, por dispor apenas de traduções muito escassas e falhas dos textos orientais), e como ainda fez Jung, encaixar o pensamento oriental nas categorias ocidentais, e sim aprender dos orientais novos modos de pensar, como sugerem, por exemplo, R. M. Smullyan (1977), um lógico matemático, e M. Masud R. Khan (1979), um psicanalista pós-freudiano.[]