Viravolta

Kehre

[…] Na medida em que Heidegger determina a temporalidade existencial como base para a historicidade do mundo, ele acaba inviabilizando a determinação propriamente dita da historicidade. Como o mundo é pensado em Ser e tempo como totalidade de significados (significância), não se consegue pensar a unidade propriamente dita dessa totalidade e ela permanece, com isso, indeterminada. E estranho que Heidegger, um leitor de resto tão arguto e sistemático de Dilthey, não tenha se dado conta de que lhe faltava justamente aquele elemento que constitui a preocupação fundamental da hermenêutica diltheyana: o nexo de sentido, o nexo histórico que articula todas as expressões da vida. O que falta à obra capital do pensamento heideggeriano é precisamente isso: a possibilidade de dizer qual é o nexo estrutural que liga todos os significados e unifica o campo de manifestabilidade do ente enquanto ente. Há, em suma, um fosso intransponível entre a temporalidade existencial do ser-aí humano e a temporialidade do ser. Não porque as duas não se encontram em ponto algum, mas porque esse encontro não tem como ser estabelecido a partir da temporalidade existencial. Assim, quanto mais Heidegger se aproxima do ponto em que tem de dar o salto em direção à historicidade e à temporialidade do ser, tanto mais vai ficando claro o quanto esse salto não tem como ser estabelecido nos termos de Ser e tempo. Enquanto a temporalidade existencial mobiliza o campo significativo como um todo, sem que jamais se tenha como dizer o que reúne a totalidade em sua unidade, o tempo histórico se caracteriza justamente por se constituir como uma medida que transcende tais mobilizações. E é aqui, então, que a afirmação de Heidegger em A carta sobre o humanismo se revela como encerrando em si um aceno particular para os dilemas encontrados em Ser e tempo. Heidegger busca na obra levar a [371] termo o projeto da ontologia fundamental, ou seja, o projeto de perguntar sobre as condições de possibilidade de algo assim como a pergunta sobre o sentido de ser. Esse projeto foi levado a termo em Ser e tempo a partir da análise do ser-aí humano em suas duas possibilidades existenciais, impropriedade e propriedade. É somente na medida em que o ser-aí conquista o seu caráter temporal, que o campo histórico experimenta a possibilidade de rearticulação de suas possibilidades históricas de ser. Tal rearticulação do campo histórico, porém, não chega propriamente a dar conta da transformação do horizonte histórico em sua unidade. O mundo não se transforma, em outras palavras, quando os seus modos de aparição, ou seja, os significados dos fenômenos, se transformam. Ele se transforma quando se dá uma mudança na determinação una da totalidade. Bem, mas se a metafísica se caracteriza justamente por um esquecimento do mundo, por um descaso em relação ao campo de manifestabilidade do ente enquanto ente, Ser e tempo continua às últimas consequências em uma certa ligação com esse campo de esquecimento, na medida em que não consegue pensar de maneira plena a unidade desse campo. Por isso, é preciso não abandonar a questão primordial do projeto da ontologia fundamental, mas sim alterar os pressupostos que conduziam a realização primordial do projeto. Ao invés de partir do ser-aí para pensar o acontecimento de ser, é preciso agora partir do próprio acontecimento de ser. È isso, então, que constitui propriamente a viragem do pensar heideggeriano: um passo atrás em relação à ideia de que a temporalidade existencial é base da temporiaüdade do ser, a fim de revelar justamente o quanto a historicidade do ser possui um primado inclusive sobre a temporalidade existencial. (Casanova, MAC2020)


Antes do aparecimento de Ser e Tempo, análises de Aristóteles lhe revelaram, como impacto decisivo, o conteúdo e a carga ambivalente da palavra aletheia. Não que o filósofo tirasse deste semantema, por um passe de mágica, toda a temática. Mas a interpretação polarizadora de aletheia, como velamento que é negado, como desvelamento sempre referido a velamento, deu-lhe, como confessa, impulso decisivo para a radicalização da fenomenologia no sentido husserliano, elaborando seu método fenomenológico. Este joga implicitamente com os dois pólos da aletheia: aquilo que é preciso ser desvelado está primeiramente, o mais das vezes, velado. A fenomenologia recebe sua ambiguidade da aletheia. Enquanto a fenomenologia é utilizada para a analítica da facticidade e da existência, ela se torna hermenêutica; passa a se movimentar [110] num circulo hermenêutico. Esta circularidade, que não é apenas característica da compreensão, mas através dela, do próprio ser-aí, também apresenta uma ambiguidade que acompanha toda a obra de Heidegger. Pelo método fenomenológico se desvendou esta circularidade, que passa, por sua vez, a possibilitar uma verdadeira penetração na fenomenologia. A estrutura circular da interrogação heideggeriana leva-o ao que chamará de viravolta (Kehre). Na estrutura circular do ser-aí se revela que a análise do ser-ai pressupõe uma compreensão do ser; mas, uma compreensão do ser, supõe, quando quer ser explícita, uma analítica do ser-aí. A Kehre é um movimento pelo qual o Filósofo, uma vez realizada a mediação pela analítica, se volta para o ser e a partir dele analisa o homem. A estrutura circular do ser-ai, de início reduzida ao âmbito da analítica, se converte em movimento — na história de um pensamento — pelo qual este se volta para o ser. O caráter hermenêutico da fenomenologia toma então um sentido mais amplo e radical, determinando-se a dimensão hermenêutica não mais só a partir do homem, mas a partir do ser. Círculo hermenêutico e Kehre não se sucedem na obra do filósofo, mas se entrelaçam, destacando-se um outro, conforme se queira enfatizar o problema do ser-aí ou o problema do ser. Se após o movimento da Kehre, o filósofo retorna como que à sua primigênia inspiração, que reside na aletheia, não se pode falar de arbitrariedade. É ainda o impulso originário da aletheia, como velamento e desvelamento, que comanda a reflexão do último Heidegger. (Stein1983)

Heidegger – Fenomenologia e Hermenêutica

Responsáveis: João e Murilo Cardoso de Castro

Twenty Twenty-Five

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