As palavras alemãs para “verdadeiro, verdade” são wahr, Wahrheit. Assim como sua equivalente, a palavra latina verus e a inglesa”, wahr originalmente significava “confiável, fidedigno, seguro”. Ela atualmente possui dois principais sentidos: 1. “ verdadeiro, real, genuíno”, em contraste com “ aparente, simulado, falso, imperfeito etc.”: verdadeiro amor, ouro, amigos etc; 2. “verdadeiro, factualmente correto etc.”: uma explicação, declaração, história, teoria, etc. verdadeiras, (cf. GA9, 175ss/115ss). O Shorter Oxford English Dictionary define a “verdade” no sentido 2 como: “conformidade com os fatos, adequação à realidade”, materializando, assim, a teoria da verdade como correspondência. Geralmente, supõe-se que essa teoria se originara com Aristóteles, mas Heidegger discute esta interpretação (GA21, 128ss; SZ, 214ss). Localiza suas origens em Platão e o seu completo florescimento na definição escolástica da verdade como adaequatio rei/rerum et intellectus, “conformidade da(s) coisa(s) e do intelecto” (Alberto Magno, Summa theologiae, I, 25, 2; são Tomás, De veritate, 1,1).
Heidegger ataca esta visão de verdade, ou ao menos a sua primazia, de diversos pontos de vista:
1. O que concorda com a realidade deve ser visto como um ser-simplesmente-dado (Vorhandensein), uma asserção ou proposição distintas da realidade sobre a qual elas discorrem. Quando falo normalmente, não me concentro nas palavras que pronuncio e ouço. Minha mente está concentrada naquilo sobre o qual eu falo. Frequentemente sei o que foi dito sem perceber ou lembrar precisamente que palavras foram pronunciadas. O silêncio pode transmitir uma mensagem com mais efetividade do que palavras. Não há proposições eternas distintas daquilo que é dito em ocasiões particulares, nem possuem as palavras significados ou conotações fixos, distintos dos entes aos quais se aplicam e de nossas crenças sobre esses entes (GA24, 280s). Não há nada distinto daquilo sobre o que é a fala com o qual se possa estar em concordância. O que é dito na fala é, mais ou menos, apenas aquilo sobre o que é a fala. (Heidegger certas vezes aproxima-se de uma teoria da verdade como identidade, apesar de que ele — em realidade — rejeitaria este rótulo.) A teoria da verdade como concordância, como a teoria representativa da percepção, ressalta uma entidade mental, lógica ou puramente sensorial intervindo entre nós mesmos e a realidade — um significado, proposição, sensação, representação — quando, ainda que haja tais entidades, nós normalmente não percebemos ou atentamos (SZ, 214ss; GA65, 327ss). Não obstante, posso me concentrar em uma sentença ou proposição, tal como “O gato está sobre o tapete”, e perguntar se ela concorda com a realidade. Trato, assim, as palavras como seres-simplesmente-dados. Se a sentença concordar com a realidade, então ela é verdadeira, ou ainda, “correta (richtig).”
2. Um pedaço de realidade com o qual uma dada sentença ou proposição concorda também deve ser visto como ser-simplesmente-dado, apartado de suas conexões com outros entes dentro do mundo. Quando afirmo “O martelo é pesado”, a oficina, os pregos, a madeira, o carpinteiro — tudo que faz do martelo o utensílio que ele é — está fora de consideração. Fora de consideração também estão quaisquer razões pelas quais alguém poderia se importar com a proposição ser verdadeira ou não. Se a verdade tem valor, e “verdade” equivale a “proposições verdadeiras”, por que não memorizar o catálogo de telefones de Londres? Entretanto, nós podemos “des-mundanizar (entweltlichen)” pedaços de realidade. Na verdade, sempre o fazemos e então as proposições que sustentam a igualmente simplesmente-dada (vorhanden) relação de adequação a eles são “corretas” .
3. Quer interpretemos ou não a sua verdade como adequação à realidade, proposições ou pronunciamentos em geral não são o locus primário da verdade. “A proposição (Satz) não é o lugar da verdade; a verdade é o lugar da proposição” (GA21, 135). A verdade não é primordialmente uma propriedade de proposições ou juízos; ela é o que nos capacita, ao contrário de pedras, plantas e animais, a fazer toda e qualquer proposição ou juízo. Antes que uma proposição possa ser pronunciada ou compreendida, o mundo à nossa volta e os entes dentro dele precisam ser descobertos de um modo que não pode ser igualado com um conjunto de crenças discretas nem expresso em um conjunto de proposições discretas. Em busca do gato, eu entro no quarto e fico consciente do quarto como um todo. Então vejo o gato sobre o tapete, e digo “Ele está sobre o tapete”. O fato de ver o gato sobre o tapete equivale a um juízo ou crença, e o fato de ele estar sobre o tapete pode ser expresso em uma proposição. Mas a minha consciência total do quarto não pode ser expressa em proposições. Eu estou consciente do quarto como um todo e não em todos os seus detalhes. De alguns detalhes eu estou apenas vagamente consciente, sem poder colocá-los em palavras. Estou consciente da forma geral do quarto, da “totalidade da conjuntura”, das interconexões entre áreas e itens, não de partes isoladas. A proposição explícita pressupõe tudo isso. O mesmo vale para uma teoria científica. Ela não é primordialmente um conjunto de proposições. Ela é primordialmente um novo modo de olhar para as coisas, ou para certas coisas, e isto, por sua vez, pressupõe o velho modo familiar de olhar para as coisas que possibilita que os cientistas comam as suas refeições e percorram seu caminho para o laboratório. A verdade não exige que memorizemos o catálogo de telefones. Ela envolve o ter algo a dizer, querer telefonar para as pessoas, saber como fazê-lo e onde achar o seu número de telefone, em suma, conhecer nosso caminho dentro do espaço, no qual verdades particulares nos importam e podem ser reveladas. Os teóricos da verdade como correspondência tipicamente não lidam com as verdades que descobrimos no contexto dentro do qual as descobrimos, mas com o tipo de verdade que é “passada adiante em ‘outras narrações’” (SZ, 155), “O gato está sobre o tapete” e “ A neve é branca”.
A explicação de Heidegger da verdade como “desvelamento” possui diversas consequências. A verdade já não é mais algo do qual podemos ou devemos estar certos em um sentido cartesiano ou husserliano. Nós podemos estar certos de proposições, eu estou certo de que isto e isto é assim. A busca pela verdade não é uma busca pela certeza sobre aquilo que já sabemos ou cremos, mas uma busca pela descoberta de âmbitos ainda desconhecidos. “Verdade” já não contrasta com “falsidade”. Proposições podem ser verdadeiras ou falsas, corretas ou incorretas. Mas as proposições falsas pressupõem um âmbito de verdade aberto tanto quanto as verdadeiras. A falsidade, p.ex. confundir um arbusto com um cabrito montês no crepúsculo, possui três condições (GA21, 187s): 1. O mundo já está descoberto para mim e eu posso descobrir coisas dentro dele: algo está se aproximando. 2. Eu não somente pasmo com as coisas, eu as interpreto como algo. 3. Eu conheço suficientemente meus arredores para saber que um cabrito montês é algo que pode aparecer em uma floresta; eu não confundiría um arbusto com um xá do Iran ou com a raiz cúbica de 69. Um erro é uma distorção localizada dentro de um âmbito de verdade. Se a “verdade” contrasta com alguma coisa, então é com a “não-verdade (Unwahrheit)”
Um teórico da correspondência poderia objetar que Heidegger mistura (i) condições de afirmar uma proposição, (ii) condições da verdade de uma proposição, e (iii) condições para que uma proposição seja conhecida, e se perguntar se ele está autorizado a identificar (i) e/ou (iii) com a verdade. Mas em vista da complexa e multifacetada utilização das palavras “verdadeiro, verdade” e do talento com o qual ele disseca as ambiguidades e confusões da Geltungslogik, “ lógica da validade” de Lotze (GA21, 62ss; SZ, 155s), não é óbvio que Heidegger perderia essa discussão. (Inwood, MIDH)