Transzendenz, transzendent e transzendieren (“transcender”) vêm do latim transcendere “ascender (scendere) para além, através (trans)”. Heidegger também utiliza seus equivalentes germânicos, übersteigen, “ascender, superar, exceder, transcender”, e überschreiten, “cruzar, exceder”.
[…]Kant distinguiu entre o “transcendente”, um conceito ou entidade que ultrapassa a nossa experiência (p.ex. Deus), e o “transcendental”, aquilo que pertence à possibilidade do nosso conhecimento experimental, tanto no sentido do nosso “conhecimento pré-ontológico do ser”, quanto no sentido da interpretação explícita, conceitual do ser tal como realizada por Kant (GA27, 207s). Kant não explica, porém, o que é a “transcendência”. Heidegger o faz: é a transcendência ou superação (Überstieg) dos entes para os entes como um todo ou MUNDO feita por DASEIN (GA26, 203ss; GA27, 207ss; GA10, 34ss).
Heidegger distingue, assim, quatro sentidos de “transcendência” (GA65, 216s):
1. A transcendência ÔNTICA: um outro ente transcendeu os entes; no cristianismo, Deus, o criador, transcendeu os entes criados. Esta é uma noção confusa, especialmente quando se diz que Deus é a “transcendência” ou até mesmo um “ente”.
2. A transcendência ONTOLÓGICA que se encontra no koinon (“comum” em grego) enquanto tal, o ser como conceito geral (genera — categorias — “acima” e “antes” dos entes, a priori). Esta é a abordagem de Aristóteles e seus seguidores medievais, que examinaram o ser como um transcendens, deixando obscura a DIFERENÇA entre ser e entes.
3. A transcendência “fundamental-ontológica” (cf. SZ, 350-67, esp. 364-6): esta retorna para o sentido original de “transcendência”, superação (Übersteigung), sendo concebida como um aspecto distintivo de Dasein (ou melhor, Da-sein) e indicando que ele “sempre já se encontra no aberto dos entes”. A transcendência de Dasein envolve a COMPREENSÃO de ser (cf. GA26, 280; GA27, 217). Assim a transcendência ontológica (2 acima), com a sua compreensão de ser, combina com a transcendência fundamental-ontológica. Mas a compreensão é agora concebida, de modo não-medieval, como “PROJETO LANÇADO”. Transcendência significa portanto: “estar na verdade do ser”, o que não implica um explícito conhecimento do ser. Essa transcendência assegura a liberdade do homem.
4. A transcendência “epistemológica” ou cartesiana: um sujeito supera a barreira ou fronteira entre si mesmo e o seu objeto, entre o seu espaço interno e o mundo externo. Uma tal transcendência não ocorre, insiste Heidegger. Em virtude da transcendência no sentido 3, Dasein está aberto para objetos intramundanos, não está separado deles por barreira ou fronteira alguma; ele transcende para o mundo, não para os objetos (cf. GA26, 211s).
Não obstante ter defendido 3, que é o modo como Heidegger usa o termo “transcendência” em SZ, Heidegger critica o uso do termo que ele mesmo faz anteriormente. Por duas principais razões: (1) Falar da transcendência de Dasein poderia parecer implicar que antes de transcender Dasein parte, como um “eu” ou sujeito sem-mundo, de uma esfera de entes sem-mundo, não-transcendidos. (GA65, 217s, 322). (2) Se a transcendência de Dasein é tornada mais explícita e conceitual, como uma transição filosófica ou metafísica dos entes em particular para os entes como um todo e de lá para o ser, isto é uma tentativa de atingir o ser por meio dos entes, de interpretar a sua natureza a partir da natureza dos entes. Mas isto não procede. O ser é único e incomparável, não deve ser atingido por meio de passos graduais a partir dos entes, mas apenas por meio de um salto direto para dentro dele. “Então não devemos superar os entes (transcendência), mas saltar por sobre esta distinção (entre ser e entes), e assim transcender, e questionar primordialmente a partir do ponto de vista do ser e da verdade” (GA65, 250s).
Heidegger rejeita a palavra “transcendência” mais do que o conceito. Ele ainda fala do homem desprendendo-se (Sichloswerfen, Loswurf) dos entes (GA65, 454) e da “rendição” (Entsetzung, que também inclui o significado de Entsetzen, “terror”) pelo ser dos entes que nos cercam e nos assediam (GA65, 481s). Nada na explicação da transcendência de SZ sugere que ela seja um processo gradual ou inferencial que parte de um ainda não transcendente Dasein e de entes ainda não transcendidos; entes só são considerados como entes em virtude de serem transcendidos, e Dasein não seria Dasein (ou um sujeito) se não transcendesse (GA26, 211). Heidegger não considera consistentemente a filosofia como envolvendo um salto imediato para dentro do novo paradigma: ao explicar o tempo-espaço para os seus contemporâneos, ele concorda em começar do espaço e do tempo como concebidos tradicionalmente (GA65, 372). Mas ele sente que o ser seria contaminado se nos aproximássemos dele por meio dos entes. (Duns Scotus similarmente sentiu que argumentar, como são Tomás, a favor da existência de Deus a partir da existência e movimento das entidades finitas enfraquece nosso conceito de Deus.)
Heidegger rejeita a transcendência ôntica, embora mantenha constante interesse por ela. Ele se pergunta como a ideia de ser como o “todo-poderoso” surgiu da nossa transcendência fundamental-ontológica e da nossa compreensão de ser (GA26, 211 n.3). Sugere que a afirmação dc que o “POVO” é o propósito da história é apenas aparentemente não-cristã; ela estabelece uma ideia ou valor transcendente do mesmo modo como o cristianismo postula um Deus transcendente. As várias “visões-de-mundo”, concorrentes entre si, sejam cristãs ou anticristãs, possuem isto em comum: elas pressupõem que o homem seja um ente cuja natureza já é fixa e conhecida e serve de base para a sua transcendência. Em contraste com isso, a transcendência fundamental ontológica, e o “salto” envolvido na posterior filosofia de Heidegger, determina o que o homem deverá ser (GA65, 24s).
Mais tarde, Heidegger cunha o termo “rescendência” (Reszendenz) para o inverso da transcendência que ocorre na tecnologia antropocêntrica (ZF, 56). (Inwood, MIDH)