Para nos orientarmos na análise deste fenômeno transcendental do mundo, vamos antecipar uma caracterização, sem dúvida necessariamente incompleta, das principais significações que se impõem na história do conceito de mundo. No caso de tais conceitos elementares, não é a significação vulgar, o mais das vezes, a originária e essencial. Esta última é sempre de novo encoberta e somente chega a ser conceituada com muito esforço e assaz raramente.
Já nos decisivos começos da filosofia antiga se mostra algo essencial. 1 Kosmos não quer dizer este ou aquele ente mesmo que irrompe e se impõe com insistência, nem quer dizer também tudo isto reunido; mas significa “estado”, isto é, o como, em que o ente, e em verdade, na totalidade, é. Kosmos houtos não designa, por isso, este âmbito de entes em contraste com outro, mas este mundo dos entes à diferença de um outro mundo do mesmo ente, o éon mesmo kata kosmon 2. O mundo enquanto este “como em sua totalidade” já está na base de toda possível divisão do ente: esta não destrói o mundo, mas sempre dele carece. Aquilo que está en to heni kosmo 3 não o formou primeiramente por um processo de aglomeração, mas é dominado prévia e inteiramente pelo mundo. Heráclito reconhece um outro rasgo essencial do kosmos 4: ho Herakleitos phesi tois egregorosin hena kal kosmon eivai, ton de koimomenon hekaston eis idion apostrephesthai. “Aos despertos pertence um mundo comum; cada um dos que dormem, no entanto, volta-se para seu próprio mundo.” Aqui o mundo está posto em relação com modos fundamentais em que o ser-aí humano existe faticamente. Na vigília, o ente se mostra num como sempre uníssono, em geral acessível a cada um. No sono, o mundo do ente é exclusivamente individuado para cada ente em particular.
Estas breves indicações tornaram visíveis vários aspectos: 1. Modo quer dizer, muito antes, um como do ser do ente, que o próprio ente. 2. Este como determina o ente em sua totalidade. É, em última análise, a possibilidade de cada como em geral enquanto limite e medida. 3. Este como em sua totalidade é, de certa maneira, prévio. 4. Este como prévio, em sua totalidade, é ele mesmo relativo ao ser-aí humano. O mundo, por conseguinte, pertence ao ser-aí humano, ainda que abarque todos os entes, também o ser-aí, em sua totalidade.
Por mais certo que seja o resumo que se possa fazer desta compreensão, sem dúvida, ainda pouco explícita e crepuscular, do kosmos nos significados acima mencionados, tão inegável é também que esta palavra nomeia muitas vezes apenas o ente mesmo que se experimenta no tal como.
Não é, porém, nenhum acaso que no contexto da nova compreensão ôntica da existência que interrompeu no cristianismo, se radicalizasse e esclarecesse a relação de kosmos e ser-aí humano e com isto o conceito de mundo em geral. A relação é experimentada tão originariamente que kosmos passa a ser usado, de agora em diante, diretamente como expressão para um determinado modo fundamental de ser da existência humana. kosmos houtos significa em Paulo (vide 1. Coríntios e Gálatas) não apenas e não primariamente o estado do “cósmico”, mas o estado e a situação do homem, a espécie de sua postura diante do cosmos, seu modo de apreciar os bens. kosmos é o ser-homem no como de uma mentalidade afastada de Deus (he sophia too kosmou). kosmos houtos designa o ser-aí humano, numa determinada existência “histórica” que se distingue de uma outra que já está despontando (aion ho mellon). Com inusitada frequência — sobretudo, em comparação com os sinóticos — , usa o Evangelho de São João 5 o conceito de kosmos, e ao mesmo tempo em um sentido bem central. Mundo caracteriza a forma fundamental de afastamento de Deus do ser-aí humano, o caráter do ser-homem simplesmente. De acordo com isto, é então mundo um nome que designa de maneira geral todos os homens juntos, sem distinção entre sábios e tolos, justos e pecadores, judeus e pagãos. O significado central deste conceito de mundo, absolutamente antropológico, chega a expressar-se no fato de funcionar como conceito antônimo da filiação divina de Jesus, a qual é compreendida como Vida (zoe), Verdade (aletheia) e Luz (phos). (GA9; MHeidegger: Sobre a essência do fundamento)
- Cf. K. Reinhardt, Parmênides e a Hist. da Filos. Grega, 1916, p. 174 ss. e 216, nota. (N. do A.)[
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- 2 Cf. Diels, Fragmentos dos Pré-socráticos. Melissos, Fragor. 7, Parmênides, Fragor. 2. (N. do A.)[
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- Ibidem, Anaxágoras, Fragor. S. (N. do A.)[
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- Ibidem, Heráclito, Fragm. 89. (N. do A.)[
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- No que se refere às passagens do Evangelho de São João, cf. o escorço sobre os kosmos, em W. Bauer, O Evangelho de São João (Manual de Lietzmann, sobre o Novo Testamento, 6), segunda edição totalmente reelaborada, 1925, p. 18. — Para a interpretação teológica ver a excelente exposição de A. Schlatter, A teologia do Novo Testamento, Parte II, 1910, p. 114 ss. (N. do A.)[
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