Heidegger interpreta Gestell como um substantivo coletivo formado por ge- e stellen, indicando um novo significado ao escrever Ge-stell. Ele a utiliza para expressar o modo pelo qual a “ fissura” conflitual entre terra e mundo é localizada e composta na Gestalt (“ forma, figura” — também de stellen) de uma obra de arte, tal como um templo (GA5, 52). Posteriormente, Ge-stell aproxima-se da Gestalt do trabalhador, que “mobiliza dispositivos (Bestand) disponíveis como um todo sem distinção” (Jünger, 1932), 160), um conceito introduzido por Ernst Jünger para transmitir a “total mobilização” do tecnocrata devotado à produção, transporte e administração sem propósitos. Ge-stell, “armação”, agora “significa aquilo que reúne este localizar (Stellens) que localiza (stellt), i.e., requisita (herausfordert, ‘desafia, provoca’) o homem para desvelar (entbergen) o real de modo a dele dispor (Bestellens) numa ordem enquanto dispositivos disponíveis (Bestand)” (GA7, 24). Stellen significa “pôr (algo) de pé”, embora também possua muitos outros sentidos, p.ex., “contribuir, prover” algo para um estoque comum. Dá origem a bestellen, “ordenar (p.ex., materiais), reservar, dispor etc.”. A associação de stellen com “estar/ficar/encontrar-se de pé” (stehen; Stand) sugere uma ligação entre bestellen e Bestand, “continuação; estoque, reserva (disponível), recurso” (GA7, 20ss). De início, Heidegger associa Technik a Vergegenständlichung, “tornar as coisas Gegenstände, objetos” (GA6T2, 387). Depois, passa a distinguir entre Bestand e Gegenstand: um avião parado pode ser um Gegenstand, embora voando seja um Bestand, devido ao seu “estar disponível” ao uso que dele fazemos (GA7, 20s).
Estas palavras por si mesmas não são suficientes para distinguir a tecnologia da produção pré-tecnológica. Bestellen também significa “cultivar” os campos, uma ocupação respeitavelmente pré-tecnológica (GA7, 18). De que modo uma usina elétrica provida por uma represa no Reno difere do tomo de oleiro ou de um moinho de vento? O torno revela vasos ao “trazê-los à luz”, o moinho de vento revela a energia eólea, mas nenhum deles “requisita (herausfordert)” as energias da natureza nem as acumula para uso futuro (GA7, 18). Quando fazemos isso, consideramos o todo da natureza como Bestand, como um armazenamento, um dispositivo de reservas; enxergamos os campos como jazidas e como um sítio de riqueza mineral. O homem também é visto como Bestand, como o poder humano explorável e como recurso humano (GA7, 30; GA6T2, 387). A visão instrumental da Technik que a toma como um modo de preencher nossos propósitos, diferindo da manufatura pré-tecnológica unicamente pela sua maior eficiência — é “ correta”, mas não “ verdadeira”; ela é certa até o ponto que atinge, mas não alcança a profundeza das coisas (GA7, 11). Technik revela a terra, o próprio homem, e atualmente até mesmo a lua e os planetas, como Bestand. Não é apenas algo feito por nós, mas uma fase de nosso destino (GA7, 28s; GA65, 126, 131). Como todo modo de revelar, ela nos ultrapassa, tanto moldando quanto preenchendo nossos propósitos; pois “ não há uma coisa tal como um homem, que seja simplesmente homem apenas por sua livre vontade” (GA7, 36). A Technik engole e diminui o mundo, ameaçando assim transformar o homem de um ser-no-mundo em um “animal mecanizado” (GA6T2, 165, 395; GA65, 98, 442, 495).
Por que a Technik, a tecnologia industrial, surge no final do século XVIII? Ela não foi apenas uma aplicação da ciência natural matemática do século XVII. A própria ciência envolve a “reunião que requisita para um desvelamento ordenador”, mas nós não o havíamos percebido até que a Technik o evidenciou (GA7, 25). Ciência e Technik possuem uma fonte comum no modo como compreendem e descobrem as coisas, a metafísica antropocêntrica iniciada por Descartes (GA6T1, 24). Mas isto também pode ser remontado ao Deus criador da cristandade, à concepção de tudo como ens creatum (GA65, 107, 111, 126s, 130ss, 348s) e, ainda mais longe, à associação feita por Platão entre techne e as ideias (GA6T1, 494; GA65, 135,336).
Como deveríamos reagir à tecnologia? Não por meio de uma fuga para o misticismo, a superstição e o irracionalismo; essas são características essenciais do racionalismo tecnológico (GA6T1, 531, GA6T2, 28). Deveríamos refletir sobre os entes de modo a “fundar a clareira, de forma que ela não se torne o vácuo no qual tudo se apresenta como uniformemente ‘inteligível’ e controlável” (GA65, 349; cf. 391). Podemos particularmente refletir sobre a essência da Technik, “onde há perigo cresce a salvação” (Hölderlin). Embora não sendo em si mesma tecnológica, essa afirmação relaciona-se com a Technik e nos levará a pensar sobre a arte (GA7, 39). Fazemos uso inevitável de máquinas que tendem a nos desarraigar de nosso habitat nativo. Deveríamos, no entanto, cultivar a “serenidade”, não deixando que a Technik nos ultrapasse (GA16, 23ss). (DH)