Lévinas (1991:24-26) – Mesmo – Outro – Eu

João Pinto Ribeiro

A (alteridade), a heterogeneidade radical do (Outro), só é possível se o Outro é realmente outro em relação a um termo cuja essência é permanecer no ponto de partida, servir de entrada na relação, ser o Mesmo não relativa, mas absolutamente. Um termo só pode permanecer absolutamente no ponto de partida da relação como Eu.

Ser eu é, para além de toda a individualização que se pode ter de um sistema de referências, possuir a identidade como conteúdo. O eu não é um ser que se mantém sempre o mesmo, mas o ser cujo existir consiste em identificar-se, em reencontrar a sua identidade através de tudo o que lhe acontece. É a identidade por excelência, a obra original da identificação.

O Eu é idêntico mesmo nas suas alterações: representa-as e pensa-as para si. A identidade universal em que o heterogêneo pode ser abrangido tem a ossatura de um sujeito, da primeira pessoa. Pensamento universal, é um «eu penso».

O Eu é idêntico mesmo nas suas alterações, num outro sentido ainda. Com efeito, o eu que pensa dá por si a pensar ou espanta-se com as suas profundidades e, em si, é um outro. Descobre assim a famosa ingenuidade do seu pensamento que pensa «perante dele», como se caminha «diante de si». Dá por si a pensar e surpreende-se como dogmático, estranho a si próprio. Mas o Eu é o (Mesmo) perante a alteridade, confunde-se consigo, incapaz de apostasia em relação a esse «si» surpreendente. A fenomenologia hegeliana — onde a consciência de si é a distinção daquilo que não é distinto — exprime a universalidade do Mesmo que se identifica na alteridade dos objectos pensados e apesar da oposição de si a si. «Distingo-me a mim de mim próprio e, neste processo, é imediatamente (evidente) para mim que o é distinto não é distinto. Eu, o Homônimo, repilo-me a mim próprio, mas o que foi distinguido e posto como diferente é, enquanto imediatamente distinto, desprovido para mim de toda a diferença.»1 A diferença não é uma diferença, o eu, como outro, não é um «outro». Não vamos reter desta citação o carácter provisório que comporta, para Hegel, a evidência imediata. O eu que repele o «si», vivido como repugnância, o eu preso ao «si», vivido como aborrecimento — são modos da (consciência) de si e assentam na ilacerável identidade de eu e de si. A alteridade do eu, que se toma por um outro, pode impressionar a imaginação do poeta, precisamente porque é apenas o jogo do Mesmo: a navegação do eu pelo si — é precisamente um dos modos de identificação do eu.

A (identificação) do Mesmo no Eu não se produz como uma monótona tautologia: «Eu sou Eu». A originalidade da identificação, irredutível ao formalismo de A é A, escaparia assim à atenção. Há que fixá-la não reflectindo sobre a abstracta representação de si por si: é preciso partir da relação concreta entre um eu e um mundo. Este, estranho e hostil, deveria, em boa lógica, alterar o eu. Ora a verdadeira e original relação entre eles, e onde o eu se revela precisamente como o Mesmo por excelência, produz-se como permanência no mundo. A maneira do Eu contra o «outro» do mundo consiste em permanecer, em identificar-se existindo aí em sua casa. O Eu, num mundo, à primeira vista, outro, é no entanto autóctone. É o próprio reviramento dessa alteração; encontra no mundo um lugar e uma casa. Habitar é a própria maneira de se manter; não como a famosa serpente que se agarra mordendo a sua cauda, mas como o corpo que, na terra, exterior a ele, se aguenta e pode. O «em sua casa» não é um continente, mas um lugar onde eu posso, onde, dependente de uma realidade outra, sou, apesar dessa dependência, ou graças a ela, livre. Basta andar, fazer para apoderar-se seja do que for, para apanhar. Tudo, num certo sentido, está no (lugar), tudo está à minha disposição no fim de contas, mesmo os astros, por pouco que eu faça contas, que eu pense nos outros intermediários ou nos meios. O lugar, ambiente, oferece meios. Tudo está ao alcance, tudo me pertence; tudo é de antemão apanhado com a tomada original do lugar, tudo está com-preendido. A possibilidade de possuir, isto é, de suspender a própria alteridade daquilo que só é outro à primeira vista e outro em relação a mim — é a maneira do Mesmo. No mundo estou em minha casa, porque ele se oferece ou se recusa à posse. (O que é absolutamente outro não só se recusa à posse, mas contesta-a e, precisamente por isso, pode consagrá-la.) É preciso tomar a sério o reviramento da alteridade do mundo na identificação de si. Os «momentos» dessa identificação — o corpo, a casa, o trabalho, a posse, a economia — não devem figurar como dados empíricos e contingentes, chapeados sobre uma ossatura formal do Mesmo; são as articulações dessa estrutura. A identificação do Mesmo não é o (25) vazio de uma (tautologia), nem uma oposição dialéctica ao Outro, mas o concreto do egoísmo. Isso tem a ver com a possibilidade da metafísica. Se o Mesmo se identificasse por simples oposição ao Outro faria já parte de uma totalidade englobando o mesmo e o Outro. A pretensão do (desejo) metafísico, de que tínhamos partido — relação com o absolutamente Outro —, ver-se-ia desmentida. Ora, a separação do metafísico relativamente ao metafísico, que se mantém no âmago da relação — produzindo-se como (egoísmo) — não é o simples inverso dessa relação.

Original

  1. Hegel, Phénoménologie de l’Esprit, Traduction Hyppolite, pp. 139-40.[↩][↩]
Excertos de

Heidegger – Fenomenologia e Hermenêutica

Responsáveis: João e Murilo Cardoso de Castro

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