LDMH: Ser e Tempo

Dito de outro modo: porque é certamente, em seu abrigamento em retiro, o esquecimento do ser que constitui a experiência ou melhor a prova fundamental que presidiu à redação de Ser e Tempo, estamos no direito de dizer que a sua maneira — uma maneira excepcional — Ser e Tempo foi também um desastre.

Estas palavras são em realidade de Heidegger ele mesmo! O verão de 1942, Max Kommerell, abalado e ao mesmo tempo desarmado pelo comentário que Heidegger lhe enviara de “Como um dia de festa” de Hölderlin, lhe escrevera: “Vosso ensaio poderia, não digo que ele é, poderia mesmo ser um desastre [Unglück]” — e Heidegger lhe tinha respondido de maneira desconcertante: “Tendes razão. Este escrito é um desastre. Ser e Tempo foi também um desastre”. Examinemos esta questão.

É talvez a princípio de um ponto de vista exterior que o livro parece ser um “desastre”, tanto a celebridade que foi a sua no mundo público competamente mascarou o fato que ninguém entre os contemporâneos não o compreendeu verdadeiramente, a ponto que não é exagerado dizer que a história dos contrassensos sobre Ser e Tempo constitui a trama principal do pensamento do século XX. Heidegger disso ficou então logo logo consciente. Na última hora de seu curso sobre Hegel, do inverno 1931-1932, evocando o “sucesso de curiosidade ridícula de que nos honram hoje em dia”, ele se apoia em uma citação do Rodin de Rilke para apontar a facticidade da glória: “Finalmente a glória não é senão o conjunto de mal-entendidos que se reúnem ao redor de um novo nome” — antes de concluir nestes termos:

<poesie>Ser e Tempo […] não é a etiqueta de um novo medicamento que se poderia e se deveria simplesmente ensaiar, é o nome de uma tarefa [Aufgabe], quer dizer de um trabalho… (GA32, 212).

Por volta de 1938-1940, no limiar de um de seus tratados não publicados, ele faz para ele mesmo esta nota:

<poesie>Todo este agito de contrassenso que se amontoou sobre o conceito de Da-sein em Ser e Tempo! Jaspers no final das contas — o nivelamento mais desolador. De onde virão então uma orelha, um olho — um coração? (História do Ser, GA69, 9).

Neste agito de contrassenso, o pior é talvez aquele que transformou Ser e Tempo em porta-bandeira de uma filosofia antropológica da existência que se projeta como humanismo. Na versão integral de seu “Superação da Metafísica”, Heidegger põe claramente os pontos sobre os is. Por ter instalado o ser humano no centro da preocupação de pensar, Sócrates é o verdadeiro fundador da metafísica, posto que é a partir deste meio humano que se institui uma verdade do ente. Ser e Tempo é precisamento esforço para desalojar o ser humano deste lugar central:

<poesie>Que Ser e Tempo visa pôr seriamente de lado o ser humano e sua primazia, para conceder ao seer sua dinidade em toda amplitude de seu átrio, que com o Da-sein, não é somente a subjetividade do ser humano, mas o conjunto do papel desempenhado pelo ser humano que seja abalado — se acabará certamente por reconhecê-lo um dia. (GA67, 90)

No entanto, e sem portanto subestimar a solidão que foi aquela de Heidegger após a publicação de seu livro, não é de todo a este tipo de “desastre” que ele pensa em sua carta a Kommerell. O que é um desastre? Como diz a palavra, o próprio de um desastre é de manifestar claramente a parte destinal que assinala toda verdadeira catástrofe — toda verdadeira virada. A mui célebre Kehre não é de todo uma “virada” que teria tomado o pensamento de Heidegger “depois” de Ser e Tempo — mas todavia a catástrofe da qual ele retorna ao coração mesmo de Ser e Tempo: é em realidade nele mesmo que Ser e Tempo é um “desastre”.

Antes de ver em que, precisemos ainda um ponto importante: Heidegger sempre claramente distinguiu o tratado Ser e Tempo disto que el chama frequentemente a tarefa ou ainda o caminho de “Ser e Tempo”. Enquanto tratado, com sua língua específica e maravilhosa arquitetônica, Ser e Tempo é certamente esta catedral fenomenológica única, vinda se juntar a roda destas outras irmãs góticas que são a Crítica da Razão Pura ou a Fenomenologia do Espírito. Que aí falte uma torre ou que a construção do coro da catedral (que ser é tempo) não seja do mesmo período que a edificação da nave principal (a explicação de fundo com Aristóteles no horizonte de uma hermenêutica da existência em obra) nada muda ao afazer e refere-se inteiramente à obra-prima da catedral. Perfeitamente consciente deste sucesso (Glück!), Heidegger não cessou, de reler Ser e Tempo, de anotá-lo, e de desdobrar as grandes linhas de uma constante autointerpretação, da qual seu leitor ideal que é F.-W. von Herrrmann não cessou de retraçar os momentos.

[…]

Nas notas de um seminário do semestre de verão 1941 (editadas em 1971 ao final da primeira edição de seu Schelling), ou seja vários anos depois de ter escrito as Contribuições à Filosofia onde ele desdobra pela primeira vez o pensamento da Ereignis (“avenance”), Heidegger retoma uma nova vez sobre seu livro de 1927:

<poesie>[…] Ser e Tempo não se tornou para mim algo que pertence ao passado; hoje em dia ainda não fui “mais longe”, e isso pela boa razão que sei sempre mais claramente que não me é permitido ir “mais longe”. No entanto, me aproximei um pouco disto que foi empreendido com Ser e Tempo. […] Que este livro tenha faltas, creio saber eu mesmo algo. Aqui se passa como da ascensão de uma montanha que jamais foi escalada. Porque ela é escarpada e ao mesmo tempo desconhecida, acontece por vezes que aquele que aí se aventura se encontra diante de um precipício; o viajante bruscamente se perdeu. Por vezes também ele despenca, sem que o leitor o note, pois apesar de tudo a paginação continua.