Kockelmans (1989:59-61) – Limitações da concepção de tempo em Ser e Tempo

Na visão do próprio Heidegger, Ser e Tempo (1927) deveria ser uma “ontologia fundamental” que prepararia o caminho para uma “ontologia genuína”, cuja principal tarefa seria enfocar a questão do sentido do Ser. A ontologia fundamental, por outro lado, consiste substancialmente em uma análise do Ser do Dasein como Ser-no-mundo, a ser desenvolvida por meio de uma fenomenologia hermenêutica. Na primeira parte do livro, Heidegger concebe o Dasein em termos de cuidado (Sorge), enquanto na segunda parte o cuidado é entendido como temporalidade: o sentido do Ser do Dasein é a temporalidade. Tudo isso foi feito para preparar a resposta para uma pergunta mais básica sobre o caráter temporal (Zeithaftigkeit) do sentido do próprio Ser.

Na última seção de Ser e Tempo, Heidegger escreve:

Em nossas considerações até agora, nossa tarefa tem sido interpretar o todo primordial do Dasein fático com relação às suas possibilidades de Ser autêntico e inautêntico, e fazê-lo de uma maneira eksistencial-ontológica em termos de sua própria base. A temporalidade se manifestou como essa base e, consequentemente, como o sentido do Ser do cuidado… No entanto, nossa maneira de mostrar a constituição do Ser do Dasein é apenas uma das maneiras que podemos adotar. Nosso objetivo é elaborar a questão do Ser em geral. (SZ, 436)

Em outras palavras, uma vez que a temporalidade é revelada como o sentido do Ser do Dasein, o passo decisivo ainda precisa ser dado: o passo que leva desse tipo de temporalidade à temporalidade característica do sentido do Ser. Esse último passo não é dado em Ser e Tempo. Heidegger publicou o livro em uma forma incompleta e, nas últimas frases, apontou para o trabalho que, em sua opinião, ainda precisa ser feito: “A constituição eksistencial-ontológica da totalidade do Dasein está fundamentada na temporalidade. Portanto, a projeção ekstática do Ser deve ser possibilitada por algum modo primordial no qual a temporalidade ekstática se temporaliza. Como esse modo de temporalizar a temporalidade deve ser interpretado? Existe um caminho que (320) leva do tempo primordial ao sentido do Ser? O próprio tempo se manifesta como o horizonte do Ser”? (SZ, 437)

Ao publicar o livro de forma incompleta em 1927, Heidegger admitiu que não havia sido completamente bem-sucedido na tarefa que havia estabelecido para si mesmo. A questão básica com a qual ele se deparou foi a seguinte: Uma vez que a temporalidade do Dasein é compreendida na unidade de suas três ekstases, como essa temporalidade do Dasein pode ser interpretada como a temporalidade da compreensão do Ser, e como esta última, por sua vez, está relacionada ao sentido do Ser e ao caráter temporal do próprio Ser? Originalmente, Heidegger pensou ter encontrado uma maneira de responder a essa pergunta, mas quase imediatamente percebeu que essa maneira o afastava do que ele realmente desejava realizar, ou seja, mostrar que o tempo é o horizonte transcendental da questão do Ser. (SZ, 39) Pois, com base nas análises que se encontram em Ser e Tempo, ainda não está claro exatamente o que deve ser entendido por “transcendência”, tomada como a superação dos entes na direção do Ser. Além disso, há a questão da relação exata entre a temporalidade do Dasein e o tempo como o horizonte transcendental para a questão relativa ao sentido do Ser. O que exatamente se quer dizer aqui com “transcendental”? Isto é claro: o termo “transcendental” não significa a objetividade de um objeto de experiência como constituído pela consciência (Kant, Husserl), mas se refere ao domínio-do-projeto para a determinação do Ser como visto do ponto de vista do Dasein aí.1

Heidegger havia estudado alguns desses modos de Ser nas análises interpretativas de Ser e Tempo e, assim, no final do livro, viu-se levado a considerar a questão de se há ou não um sentido básico de Ser do qual todos os outros sentidos podem ser derivados, tomando o tempo (entendido como temporalidade) como uma pista orientadora. Tendo em vista o fato de que a compreensão do homem é intrinsecamente histórica, deve-se perguntar se a compreensão do sentido do Ser pelo homem também é intrinsecamente histórica ou se a compreensão do Ser pode, em algum sentido, ter um caráter “supratemporal”. Em Ser e Tempo, Heidegger não conseguiu responder adequadamente à primeira pergunta porque não havia conseguido encontrar uma solução satisfatória para a segunda. Após uma análise mais cuidadosa, sua concepção de historicidade, conforme encontrada em Being and Time, parece ser ambígua. A historicidade é descrita no livro primeiro como a temporalização genuína do tempo e o princípio da distinção entre os modos de Ser do Dasein e, mais tarde, é dito que a historicidade é o meio no qual toda compreensão ontológica deve se manter. (SZ, 19-39, 372-377) Não parece ser possível defender ambas as teses simultaneamente; e mesmo que houvesse uma posição a partir da qual se pudesse defender ambas, ainda assim não estaria claro em que sentido o sentido do próprio Ser é afetado pela historicidade.

Na década seguinte à publicação de Ser e Tempo, Heidegger eliminou parte da ambiguidade inicial ao examinar mais cuidadosamente como os diferentes sentidos do Ser se diferenciam no sentido fundamental do Ser e como a temporalidade, de fato, é o princípio dessas distinções. Ao fazer isso, ele poderia manter sua visão original de que o sentido do Ser é o “fundamento” no qual todas os sentidos do Ser devem ser fundamentadas e do qual toda a compreensão do Ser se nutre. Por outro lado, entretanto, o sentido do Ser não pode ser entendido em termos de um ser padrão eterno (“o Deus dos filósofos”); em vez disso, ele deve ser concebido como um “chão” abismal e sem fundamento. Pelo fato de o Ser vir a acontecer da maneira como acontece, e pelo fato de uma compreensão do Ser emergir da maneira como realmente o encontramos, ninguém pode indicar um fundamento, porque cada processo de fundamentação já pressupõe o sentido do Ser. Quando o sentido do Ser permite que uma determinada significação do Ser se torne a significação padrão, então ele “sem fundamento” barra outras significações e até mesmo a si mesmo como o fundamento das múltiplas possíveis outras significações. É nesse sentido que o Ser se mostra e se oculta ao mesmo tempo, e é por isso que o sentido do Ser deve ser chamado de “verdade”, não ocultação, cuja realização é e permanece um mistério e cujo “acontecimento” é histórico em um sentido que não pode ser entendido com base no que normalmente chamamos de história.

Além disso, o mundo tomado como a estrutura de construção da verdade do Ser é aquela estrutura organizada que é estratificada de muitas maneiras e é construída de acordo com a maneira pela qual o tempo se temporaliza. Essa temporalização do tempo em si é histórica e, portanto, a estratificação da estrutura organizada da verdade do Ser também é histórica; como tal, ela pode ser distinguida em várias épocas. Em cada época, encontramos no mundo, como a estrutura de construção da verdade do Ser, múltiplas “camadas” de sentido organizadas e sistematizadas, todas as quais se referem a formas básicas de “experiência” entre as quais há uma tensão e em relação às quais é difícil ver como todas elas poderiam pertencer umas às outras. A principal preocupação de Heidegger é explicar como, em uma determinada época (particularmente a nossa), todas essas “camadas” podem pertencer a um todo, o mundo, e como, nesse mundo, como a estrutura de construção da verdade do Ser para essa era específica, os “cursos do Ser já estão traçados” e como, portanto, o Ser pode nos encontrar dessas maneiras específicas e diferentes, e não de outras; assim, como nesse mundo o próprio Ser se mostra e se esconde ao mesmo tempo. 2.

  1. Martin Heidegger, On Time and Being, p. 27 (GA14)]. Mas, mesmo nessa suposição, ainda não está claro qual é a relação precisa entre a temporalidade do Dasein e o tempo como horizonte transcendental para a questão do Ser, porque não está claro como a compreensão do Ser pelo Dasein deve ser relacionada ao sentido do Ser. Heidegger diz que o sentido é aquilo em que a inteligibilidade de algo se mantém. (SZ, 151) O sentido do Ser, então, é aquilo em que a inteligibilidade do Ser se mantém. Mas como pode a temporalidade (Temporalität) ser o sentido do Ser? Além disso, qual é a relação precisa entre a inteligibilidade do Ser e a compreensão do Ser pelo Dasein? Na introdução da segunda parte do livro, Heidegger argumentou que “desnudar o horizonte dentro do qual algo como o Ser em geral se torna inteligível equivale a esclarecer a possibilidade de se ter qualquer compreensão do Ser — uma compreensão que pertence à constituição do ser chamado Dasein”. (SZ, 231) Mas o que exatamente significa “ser equivalente a”? Se tomarmos essa afirmação (321) literalmente, isso significaria que o Dasein tem uma prioridade absoluta sobre o sentido do Ser e, então, o relativismo parece ser o resultado final da investigação. Heidegger percebeu esse perigo e levou vários anos para encontrar uma maneira de evitá-lo sem ser forçado a apelar para um “Deus dos filósofos”, independentemente da forma concreta em que esse “Deus” pudesse ser proposto.

    Há várias outras questões que não receberam respostas finais em Being and Time, problemas como a ideia de fenomenologia, a relação entre ontologia e ciência, a relação entre tempo e espaço, uma determinação adicional de logos, a relação entre linguagem e Ser, a diferença ontológica, a relação entre Ser e verdade, etc.[[SZ, pp. 100-101, 160-161, 230, 333, 349-350, 357, 359-361, 371-372, 406, 436-437.] Mas, em vez de nos concentrarmos em qualquer um deles, vamos voltar a atenção novamente para o problema da relação entre a temporalidade do Dasein e o tempo como horizonte transcendental para a questão do Ser e, desta vez, vamos olhar para ele de um ponto de vista ligeiramente diferente.

    Em Ser e Tempo, Heidegger foi guiado pela ideia de que, na tradição ontológica, o Ser era entendido principalmente como presença-à-mão (Vorhandenheit) (SZ, 19-27, 200-212), como presença contínua e, portanto, a partir de uma das dimensões do tempo, a saber, o presente. Heidegger desejava trazer a “presença contínua”, acentuada unilateralmente, de volta ao tempo pleno e pluridimensional, para então tentar compreender o sentido do Ser a partir do tempo originalmente vivenciado, ou seja, a temporalidade. Em sua tentativa de materializar esse objetivo, ele foi guiado por uma segunda ideia básica, a saber, que cada ente pode se manifestar em relação ao seu Ser de muitas maneiras, de modo que é preciso fazer a pergunta sobre qual é a determinação penetrante, simples e unificada do Ser que permeia todos os seus múltiplos sentidos. Mas essa pergunta levanta outras: O que, então, significa Ser? Até que ponto (por que e como) o Ser dos entes se desdobra em vários modos? Como esses vários modos podem ser colocados em uma harmonia compreensível? De onde o Ser como tal (não meramente o ser como ser) recebe sua determinação final?[[Heidegger em uma carta a Richardson, em William J. Richardson, Heidegger, p. x.[↩]

  2. Otto Pöggeler, “Heideggers Topologie des Seins”, em Man and World, 2(1969) 331-357, pp. 337-345.[↩]
Excertos de

Heidegger – Fenomenologia e Hermenêutica

Responsáveis: João e Murilo Cardoso de Castro

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