jogo

Spiel, Spielraum, Zuspiel

Como ser constitui o questionado e ser diz sempre ser de um ente, o que resulta como interrogado na questão do ser é o próprio ente. Este é como que interrogado em seu ser. Mas para se poder apreender sem falsificações os caracteres de seu ser, o ente já deve se ter feito acessível antes, tal como é em si mesmo. Quanto ao interrogado, a questão de ser exige que se conquiste e assegure previamente um modo adequado de acesso ao ente. Chamamos de “ente” muitas coisas e em sentidos diversos. Ente é tudo de que [7] falamos dessa ou daquela maneira, ente é também o que e como nós mesmos somos. Ser está naquilo que é e como é, na realidade, no ser simplesmente dado (Vorhandenheit), no teor e recurso, no valor e validade, no existir {CH: ainda é o conceito corrente e nenhum outro}, no “dá-se”. Em qual dos entes deve-se {CH: duas questões distintas se justapõem aqui; isso dá motivo para um mal-entendido, sobretudo com referência ao papel da presença [Dasein]} ler o sentido de ser? De que ente deve partir a abertura para o ser? O ponto de partida é arbitrário, ou será que um determinado ente possui o primado na elaboração da questão do ser? Qual é este ente exemplar {CH: perigo de mal-entendido. Exemplar é a presença [Dasein] porque ela é o JOGO de apreensão que, em sua essência como presença [Dasein] (resguardando a verdade do ser), o ser como tal joga e articula – porque o ser como tal põe no JOGO de sua ressonância} e em que sentido possui ele um primado? STMSC: §2

De fato, não há nenhum círculo vicioso no questionamento da questão. O ente pode vir a ser determinado em seu ser sem que, para isso, seja necessário já dispor de um conceito explícito sobre o sentido de ser. Não fosse assim, não poderia ter havido até hoje nenhum conhecimento ontológico, cujo teor fático não pode ser negado. Sem dúvida, até hoje, em toda ontologia, “ser” é pressuposto, embora não como um conceito à disposição, não como o que se busca. “Pressupor” ser possui o caráter de uma visualização preliminar de ser, de tal maneira que, partindo dessa visualização, o ente previamente dado se articule antecipadamente em seu ser. Essa visualização de ser, orientadora do questionamento, nasce da compreensão mediana de ser em que nos movemos desde sempre e que, em última instância {CH: isto é, desde o princípio}, pertence à própria constituição essencial da presença [Dasein]. Tal “pressupor” nada tem a ver com o estabelecimento de um princípio indemonstrado do qual se deduziria uma conclusão. Não pode haver “círculo vicioso” na colocação da questão sobre o sentido de ser porque, na resposta, não está em JOGO uma fundamentação dedutiva, mas uma liberação demonstrativa das fundações. STMSC: §2

A presença [Dasein] não é apenas um ente que ocorre entre outros entes. Ao contrário, ela se distingue onticamente pelo privilégio de, em seu ser, isto é, sendo, estar em JOGO seu próprio ser. Mas também pertence a essa constituição de ser da presença [Dasein] a característica de, em seu ser, isto é, sendo, estabelecer uma relação de ser com seu próprio ser. Isso significa, explicitamente e de alguma maneira, que a presença [Dasein] se compreende em seu ser, isto é, sendo. É próprio deste ente que seu ser se lhe abra e manifeste com e por meio de seu próprio ser, isto é, sendo. A compreensão de ser é em si mesma uma determinação de ser da presença [Dasein] {CH: ser aqui não apenas como ser do homem (existência). Isso se esclarece pelo seguinte: o ser-no-mundo abriga em si a remissão da existência ao ser em seu todo: compreensão de ser}. O privilégio ôntico que distingue a presença [Dasein] está em ela ser ontológica. STMSC: §4

O ente que temos a tarefa de analisar somos nós {CH: cada vez “eu”} mesmos. O ser deste ente é sempre e cada vez meu. Em seu ser, isto é, sendo, este ente se relaciona com o seu ser. Como um ente deste ser {CH: mas este é historicamente ser-no-mundo}, a presença [Dasein] se entrega à responsabilidade de assumir seu próprio ser. Ser {CH: qual? ser o pre [das Da] e, com isso, resistir ao ser em geral} é o que neste ente está sempre em JOGO. Desta caracterização da presença [Dasein] resultam duas coisas: STMSC: §9

2. O ser, que está em JOGO no ser deste ente, é sempre meu. Neste sentido, a presença [Dasein] nunca poderá ser apreendida ontologicamente como caso ou exemplar de um gênero de entes simplesmente dados. Pois, para os entes simplesmente dados, o seu “ser” é indiferente ou, mais precisamente, eles são de tal maneira que o seu ser não se lhes pode tornar nem indiferente nem não indiferente. Dizendo-se a presença [Dasein], deve-se também pronunciar sempre o pronome pessoal, devido a seu caráter de ser sempre minha: “eu sou”, “tu és” {CH: isto é, ser sempre meu significa estar entregue à responsabilidade do próprio}. STMSC: §9

A presença [Dasein] se constitui pelo caráter de ser minha, segundo este ou aquele modo de ser. De alguma maneira, sempre já se decidiu de que modo a presença [Dasein] é sempre minha. O ente, em cujo ser, isto é, sendo, está em JOGO o próprio ser, relaciona-se e comporta-se com o seu ser, como a sua possibilidade mais própria. A presença [Dasein] é sempre sua possibilidade. Ela não “tem” a possibilidade apenas como uma propriedade simplesmente dada. E porque a presença [Dasein] é sempre essencialmente sua possibilidade ela pode, em seu ser, isto é, sendo, “escolher-se”, ganhar-se ou perder-se ou ainda nunca ganhar-se ou só ganhar-se “aparentemente”. A presença [Dasein] só pode perder-se ou ainda não se ter ganho porque, segundo seu modo de ser, ela é uma possibilidade própria, ou seja, é chamada a apropriar-se de si mesma. Os dois modos de ser propriedade e impropriedade ambos os termos foram escolhidos em seu sentido rigorosamente literal – fundam-se em a presença [Dasein] determinar-se pelo caráter de ser sempre minha. A impropriedade da presença [Dasein], porém, não diz “ser” menos e nem tampouco um grau “inferior” de ser. Ao contrário, a impropriedade pode determinar toda a concreção da presença [Dasein] em suas ocupações, estímulos, interesses e prazeres. STMSC: §9

Não se deve, porém, tomar a cotidianidade mediana da presença [Dasein] como um simples “aspecto”. Pois a estrutura da existencialidade está incluída a priori na cotidianidade e até mesmo em seu modo impróprio. De certa forma, nele está igualmente em JOGO o ser da presença [Dasein], com o qual ela se comporta e relaciona no modo da cotidianidade mediana, mesmo que seja apenas fugindo e se esquecendo dele. STMSC: §9

Conjuntura é o ser dos entes intramundanos em que cada um deles já, desde sempre, liberou-se. Junto com ele, enquanto ente, sempre se dá uma conjuntura. Dar uma conjuntura constitui a determinação ontológica do ser deste ente e não uma afirmação ôntica que sobre ele se possa fazer. Aquilo junto a que possui uma conjuntura é o para quê (Wozu) da serventia, o em quê (Wofür) da possibilidade de emprego. Com o para quê (Wozu) da serventia pode-se dar, novamente, uma conjuntura própria; por exemplo, junto com esse manual que chamamos, por isso mesmo, de martelo, age a conjuntura de pregar, junto com o pregar dá-se a proteção contra as intempéries; esta “é” em virtude do abrigo da presença [Dasein], ou seja, está em virtude de uma possibilidade de seu ser. A partir da totalidade conjuntural, sempre se delineia que conjuntura se dá com um manual. A totalidade conjuntural que constitui, por exemplo, o manual em sua manualidade numa oficina é “anterior” a cada instrumento singular, da mesma forma que a totalidade conjuntural de uma estância com todos os aparelhos e apetrechos. A própria totalidade conjuntural remonta, em última instância, a um para quê (Wozu) onde já não se dá nenhuma conjuntura, que em si mesmo já não é um ente segundo o modo de ser do manual dentro de um mundo, mas um ente cujo ser se determina como ser-no-mundo onde a própria mundanidade pertence à sua constituição de ser. Esse para quê (Wozu) primordial não é um ser para isso (Dazu), no sentido de um possível estar junto numa conjuntura. O “para quê” (Wozu) primordial é um ser em virtude de. “Em virtude de”, porém, sempre diz respeito ao ser da presença [Dasein], uma vez que, sendo, está essencialmente em JOGO seu próprio ser. Nesse primeiro momento, não se deve aprofundar o contexto indicado que conduz da estrutura da conjuntura para o ser da presença [Dasein] enquanto função única e própria. Antes disso é preciso esclarecer, de modo mais amplo, o “deixar e fazer em conjunto”, a fim de apreendermos a determinação do fenômeno da mundanidade e, assim, podermos colocar seus respectivos problemas. STMSC: §18

Regiões não se formam a partir de coisas simplesmente dadas em conjunto, mas estão sempre à mão nos vários lugares específicos. Os próprios lugares dependem dos entes que se acham à mão na circunvisão da ocupação ou que, como tais, são encontrados. O que constantemente está à mão não tem um lugar, pois é previamente levado em conta pelo ser-no-mundo da circunvisão. O onde de sua manualidade é levado em conta na ocupação e se orienta para os demais entes à mão. Assim, por exemplo, o sol cuja luz e calor são usados cotidianamente possui seus lugares marcados e descobertos pela circunvisão, a partir da possibilidade de emprego variável daquilo que ele propicia: o nascente, o meio-dia, o poente, a meia-noite. Os lugares deste manual em contínua mudança, e não obstante uniforme, tornam-se “indicações” privilegiadas de suas regiões. Esses pontos cardeais, que ainda não precisam ter um sentido geográfico, proporcionam previamente o para onde de todo delineamento ulterior de qualquer região que possa vir a ser ocupada por lugares. A casa tem o seu lado do sol e o seu lado da ventilação; por ele se orienta a distribuição dos “cômodos” e nestes, novamente, a “instalação” de acordo com o seu caráter instrumental. Igrejas e sepulturas, por exemplo, são situadas segundo o nascente e o poente, regiões da vida e da morte, a partir das quais a própria presença [Dasein] se determina no tocante às suas possibilidades mais próprias de ser-no-mundo. A ocupação da presença [Dasein] que, sendo, está em JOGO seu próprio ser, descobre previamente as regiões em que, cada vez, está em JOGO uma conjuntura decisiva. A descoberta prévia das regiões também se determina pela totalidade conjuntural em que se libera o manual enquanto aquilo que vem ao encontro. STMSC: §22

Orientando-se primária ou até exclusivamente pelas distâncias enquanto intervalos medidos, encobre-se a espacialidade originária do ser-em. O que se pretende “mais próximo” não é, de forma alguma, o que tem o menor intervalo “de nós”. O “mais próximo” é o que está distante no raio de uma visão, apreensão e alcance medianos. Porque a presença [Dasein] é essencialmente espacial, segundo os modos do dis-tanciamento, o lidar com as coisas sempre se mantém num “mundo circundante”, cada vez determinado pela distância de um certo espaço de JOGO. Por isso é que, de início, ao ouvirmos e vermos, desconsideramos o que, do ponto de vista dos intervalos, se acha “mais próximo”. Ver e ouvir são sentidos da distância, não devido a seu alcance, mas porque, distanciando-se, a presença [Dasein] neles se mantém de forma predominante. Para quem usa óculos, por exemplo, que, do ponto de vista do intervalo, estão tão próximos que os “trazemos no nariz”, esse instrumento de uso, do ponto de vista do mundo circundante, acha-se mais distante do que o quadro pendurado na parede em frente. Esse instrumento é tão pouco próximo que, muitas vezes, nem pode ser encontrado imediatamente. O instrumento de ver, o de ouvir como o fone do telefone, por exemplo, possuem a não-surpresa caracterizada anteriormente do que está imediatamente à mão. Isso vale também, por exemplo, para a estrada que é o instrumento de caminhar. Ao caminhar, toca-se a estrada a cada passo e assim, aparentemente, ela é o mais próximo e o mais real dos manuais, insinuando-se, por assim dizer, em determinadas partes do corpo, ao longo da sola dos pés. E, no entanto, ela está mais distante do que o conhecido que vem ao encontro “pela estrada” a um “distanciamento” de vinte passos. É a ocupação guiada pela circunvisão que decide sobre a proximidade e distância do que está imediatamente à mão no mundo circundante. A ocupação se atém previamente ao que está mais próximo e regula os dis-tanciamentos. STMSC: §23

De acordo com a análise aqui desenvolvida, o ser com os outros pertence ao ser da presença [Dasein] que, sendo, põe em JOGO seu próprio ser. Enquanto ser-com, a presença [Dasein] “é”, essencialmente, em virtude dos outros. Isso deve ser entendido, em sua essência, como um enunciado existencial. Mesmo quando cada presença [Dasein] fática não se volta para os outros quando acredita não precisar deles ou quando os dispensa, ela ainda é no modo de ser-com. No ser-com, enquanto o existencial de ser em virtude dos outros, os outros já estão abertos em sua presença [Dasein]. Essa abertura dos outros, previamente constituída pelo ser-com, também perfaz a significância, isto é, a mundanidade que se consolida como tal no existencial de ser-em-virtude-de. Por isso, a mundanidade do mundo assim constituída, em que a presença [Dasein] já sempre é e está de modo essencial, deixa que o manual do mundo circundante venha ao encontro junto com a co-presença [Dasein] dos outros, na própria ocupação guiada pela circunvisão. Na estrutura da mundanidade do mundo, os outros não são, de saída, simplesmente dados como sujeitos soltos no ar ao lado de outras coisas. Eles se mostram em seu ser-no-mundo, empenhado nas ocupações do mundo circundante, a partir do ser que, no mundo, está à mão. STMSC: §26

O impessoal possui ele mesmo modos próprios de ser. A tendência do ser-com que denominamos de afastamento funda-se em que a convivência, o ser e estar um com o outro como tal, promove a medianidade. Este é um caráter existencial do impessoal. Em seu ser, o impessoal coloca essencialmente em JOGO a medianidade. Por isso, ele se atém faticamente à medianidade do que é conveniente, do que se admite como valor ou sem valor, do que concede ou nega sucesso. Essa medianidade, designando previamente o que se pode e deve ousar, vigia e controla toda e qualquer exceção que venha a impor-se. Toda primazia é silenciosamente esmagada. Tudo que é originário se vê, da noite para o dia, nivelado como algo de há muito conhecido. O que se conquista com muita luta torna-se banal. Todo segredo perde sua força. O cuidado da medianidade desvela também uma tendência essencial da presença [Dasein], que chamaremos de nivelamento de todas as possibilidades de ser. STMSC: §27

É preciso explicitar a constituição desse ser. Como a existência constitui a essência desse ente, a frase existencial “a presença [Dasein] é a sua abertura” diz, ao mesmo tempo, que o ser em JOGO no ser deste ente deve ser o “pre” [das Da] de sua presença [Dasein]. De acordo com a tendência da análise, além de se caracterizar a constituição primordial do ser da abertura, é preciso interpretar o modo de ser em que esse ente é cotidianamente o pre [das Da] de sua presença [Dasein]. STMSC: §28

O próprio ente que tem medo, a presença [Dasein], é aquilo pelo que o medo tem medo. Apenas o ente em que, sendo, está em JOGO seu próprio ser, pode ter medo. O ter medo abre esse ente no conjunto de seus perigos, no abandono a si mesmo. Embora em diversos graus de explicitação, o medo desvela a presença [Dasein] no ser de seu pre [das Da]. Se tememos pela casa ou pela propriedade, isso não contradiz em nada a determinação anterior daquilo pelo que se teme. Pois enquanto ser-no-mundo, a presença [Dasein] é um ser em ocupações junto a. Numa primeira aproximação e na maior parte das vezes, a presença [Dasein] é a partir do que se ocupa. Estar em perigo é a ameaça de ser e estar junto a. Predominantemente, o medo revela a presença [Dasein] de maneira privativa. Ele confunde e faz “perder a cabeça”. O medo vela, ao mesmo tempo, o estar e ser-em perigo, já que deixa ver o perigo a ponto de a presença [Dasein] precisar se recompor depois que ele passa. STMSC: §30

A presente investigação já se deparou com esse compreender originário sem, no entanto, permitir que aflorasse explicitamente como tema. Dizer que a presença [Dasein] existindo é o seu pre [das Da] significa, por um lado, que o mundo é “presença [Dasein]”, a sua presença [Dasein] é o ser-em. Este é igualmente “presença [Dasein]” como aquilo em virtude de que a presença [Dasein] é. Nesse em virtude de, o ser-no-mundo existente se abre como tal. Chamou-se essa abertura de compreender. No compreender desse em virtude de, abre-se conjuntamente a significância nele fundada. Enquanto abertura do em virtude de e da significância, a abertura do compreender diz respeito, de maneira igualmente originária, a todo o ser-no-mundo. Significância é a perspectiva em virtude da qual o mundo se abre como tal. Dizer que o em virtude de e a significância se abrem na presença [Dasein] significa dizer que a presença [Dasein] é um ente em que, como ser-no-mundo, está em JOGO seu próprio ser. STMSC: §31

O “círculo” do compreender pertence a estrutura do sentido, cujo fenômeno tem suas raízes na constituição existencial da presença [Dasein], enquanto um compreender que interpreta. O ente em que esta em JOGO seu próprio {CH: esse “seu próprio ser”, porém, é determinado em si pela compreensão de ser, isto é, por in-sistir na claridade da vigência em que nem a claridade como tal e nem a vigência como tal são temas de representação} ser como ser-no-mundo possui uma estrutura de círculo ontológico. Deve-se, no entanto, observar que, se do ponto de vista ontológico, o “círculo” pertence a um modo de ser do que e simplesmente dado, deve-se evitar caracterizar ontologicamente a presença [Dasein] mediante esse fenômeno. STMSC: §32

A decadência não determina apenas existencialmente o ser-no-mundo. O turbilhão também revela o caráter de mobilidade e de lance do estar-lançado que se pode impor a si mesmo na disposição da presença [Dasein]. O estar-lançado não só não é um “feito pronto” como também não é um fato acabado. Pertence à facticidade da presença [Dasein] ter de permanecer em lance enquanto for o que é e, ao mesmo tempo, de estar envolta no turbilhão da impropriedade do impessoal. Pertence à presença [Dasein] que, sendo, está em JOGO o seu próprio ser, o estar-lançado no qual a facticidade se deixa e faz ver fenomenalmente. A presença [Dasein] existe faticamente. STMSC: §38

Contudo, nessa demonstração da decadência não se evidencia um fenômeno que fala diretamente contra a determinação pela qual se indicou e caracterizou a ideia formal de existência? Será que a presença [Dasein] pode ser compreendida como no ente em cujo ser está em JOGO o poder-ser, se justamente em sua cotidianidade a presença [Dasein] se perdeu a si mesma e, na decadência, “vive” fora de si mesma? A decadência no mundo só constituirá, porém, uma “prova” fenomenal contra a existencialidade da presença [Dasein], caso se admita a presença [Dasein] como um eu-sujeito isolado, como um si-mesmo pontual, do qual ela parte e se move. Nesse caso, o mundo seria um objeto. A decadência no mundo sofreria assim uma transformação em sua interpretação ontológica, tornando-se algo simplesmente dado nos moldes de um ente intramundano. Se, no entanto, mantivermos o ser da presença [Dasein] na constituição de ser-no-mundo, revelar-se-á que enquanto modo de ser deste ser-em, a decadência apresenta a prova mais elementar a favor da existencialidade da presença [Dasein]. Na decadência, trata-se apenas de poder-ser-no-mundo, embora no modo da impropriedade. A presença [Dasein] só pode decair porque nela está em JOGO o ser-no-mundo, no modo de compreender e dispor-se. Em contrapartida, a existência própria não é nada que paire por sobre a decadência do cotidiano. Em sua estrutura existencial, ela é apenas uma apreensão modificada da cotidianidade. STMSC: §38

A presença [Dasein] existe faticamente. O que se questiona é a unidade ontológica de existencialidade e facticidade, a copertinência essencial destas com relação àquela. A presença [Dasein], em razão da disposição a que pertence de modo essencial, possui um modo de ser em que ela é trazida para diante de si mesma e se abre para si em seu estar-lançado. O estar-lançado, porém, é o modo de ser de um ente que sempre é ele mesmo as suas possibilidades e isso de tal maneira que ele se compreende nessas possibilidades e a partir delas (projeta-se para elas). O ser-no-mundo, ao qual pertencem, de maneira igualmente originária, tanto o ser junto ao que está à mão quanto o ser-com os outros, é sempre em virtude de si mesmo. Todavia, numa primeira aproximação e na maior parte das vezes, o si-mesmo é o impropriamente si-mesmo. O ser-no-mundo já está sempre em decadência. Pode-se, portanto, determinar a cotidianidade mediana da presença [Dasein] como ser-no-mundo aberto na decadência que, lançado, projeta-se e que, em seu ser junto ao “mundo” e em seu ser-com os outros, está em JOGO o seu poder-ser mais próprio. STMSC: §39

A presença [Dasein] é um ente em que, sendo, está em JOGO seu próprio ser. Na constituição de ser do compreender, o “estar em JOGO” evidenciou-se como o ser que se projeta para o poder-ser mais próprio. Esse poder-ser é o em virtude de, onde a presença [Dasein] é sempre como ela é. Em seu ser, a presença [Dasein] já sempre se conjugou com uma possibilidade de si mesma. É na angústia que a liberdade de ser para o poder-ser mais próprio e, com isso, para a possibilidade de propriedade e impropriedade mostra-se numa concreção originária e elementar. Do ponto de vista ontológico, porém, ser para o poder-ser mais próprio significa: em seu ser, a presença [Dasein] já sempre antecedeu a si mesma. A presença [Dasein] já está sempre “além de si mesma”, não como atitude frente aos outros entes que ela mesma não é, mas como ser para o poder-ser que ela mesma é. Designamos a estrutura ontológica essencial do “estar em JOGO” como o anteceder-a-si-mesmo da presença [Dasein]. STMSC: §41

Essa estrutura, porém, diz respeito ao todo da constituição da presença [Dasein]. Esse anteceder-a-si-mesma não significa uma espécie de tendência isolada num “sujeito” sem mundo, mas caracteriza o ser-no-mundo. Pertence a esse ser-no-mundo, contudo, que, entregando-se à responsabilidade de si mesmo, já se tenha lançado em um mundo. É na angústia que o abandono da presença [Dasein] a si mesma se mostra em sua concreção originária. Apreendido em sua plenitude, o anteceder-a-si-mesma da presença [Dasein] diz: anteceder-a-si-mesma-no-já-ser-em-um-mundo. Vendo-se fenomenalmente essa estrutura em sua unidade de essência, evidencia-se também o que foi anteriormente exposto na análise da mundanidade. Lá se obteve que a totalidade referencial da significância que, como tal, constitui a mundanidade, ancora-se num em-virtude-de (Worum-willen). O acoplamento da totalidade referencial, das múltiplas remissões do “para-quê” ao que está em JOGO na presença [Dasein] não significa a fusão de um “mundo” simplesmente dado de objetos com um sujeito. Ao contrário, é a expressão fenomenal da constituição da presença [Dasein] em seu todo originário, cuja totalidade foi agora explicitada como um anteceder-a-simesma no já ser em… Em outras palavras: existir é sempre fático. Existencialidade determina-se essencialmente pela facticidade. STMSC: §41

É no anteceder-a-si-mesma, enquanto ser para o poder-ser mais próprio, que subsiste a condição ontológico-existencial de possibilidade de ser livre para as possibilidades propriamente existenciárias. O poder-ser é aquilo em virtude de que a presença [Dasein] é sempre tal como ela é faticamente. Na medida, porém, em que este ser para o próprio poder-ser acha-se determinado pela liberdade, a presença [Dasein] também pode relacionar-se involuntariamente com as suas possibilidades, ela pode ser imprópria. Faticamente, numa primeira aproximação e na maior parte das vezes, é nessa modalidade que ela se encontra. O próprio em virtude de não é apreendido, e o projeto de poder-ser ela mesma fica entregue ao talante do impessoal. Assim, no anteceder-a-si-mesma, o “si” indica sempre o si-mesmo, no sentido do impessoalmente-si-mesmo. Mesmo na impropriedade, a presença [Dasein] permanece essencialmente um anteceder-a-si-mesma, da mesma forma que a fuga de si mesma na decadência ainda apresenta a constituição de ser na qual está em JOGO o seu ser. STMSC: §41

Conquanto se pretendesse sustentar que o sujeito já sempre deve pressupor, inconscientemente, que o “mundo externo” é algo simplesmente dado, o ponto de partida construtivo de um sujeito isolado ainda estaria em JOGO. O fenômeno do ser-no-mundo permaneceria tão desapercebido como na comprovação de um ser simplesmente dado em conjunto do físico e do psíquico. Nessas pressuposições, a presença [Dasein] chega sempre “muito tarde” porque, do momento em que realiza em seu ser essa pressuposição – e de outro modo essa pressuposição não seria possível – a presença [Dasein] como ente sempre é e está em um mundo. “Antes” de toda pressuposição e atitude caracterizadas pela presença [Dasein], o “a priori” da constituição do ser se oferece no modo de ser da cura. Fé na realidade do “mundo exterior”, legítima ou ilegítima, provar essa realidade, seja de modo suficiente ou insuficiente, pressupor essa realidade, implícita ou explicitamente, todas estas tentativas, não possuindo transparência a respeito de seu solo, pressupõe, de início, um sujeito desmundanizado ou inseguro acerca de seu mundo que, antes de tudo, precisa assegurar-se de um mundo. Nesses casos, o ser-no-mundo é, desde o início, colocado diante de um apreender, de um presumir, de um assegurar-se e crer, de uma atitude que, em si mesma, já é um modo derivado de ser-no-mundo. STMSC: §43

O que diz “pressupor”? Compreender alguma coisa como a base e o fundamento do ser de um outro ente. Essa compreensão dos entes em seus nexos ontológicos só é possível com base na abertura, ou seja, no ser-descobridor da presença [Dasein]. Pressupor “verdade” significa, pois, compreendê-la como algo em virtude da qual a presença [Dasein] é. Presença, no entanto – e isso reside na constituição de ser como cura – já sempre antecedeu a si mesma. Ela é um ente em que, em seu ser, está em JOGO o poder-ser mais próprio. A abertura e o descobrimento pertencem, de modo essencial, ao ser e ao poder-ser da presença [Dasein] como ser-no-mundo. Na presença [Dasein] está em JOGO o seu poder-ser-no-mundo e, com isso, a ocupação que descobre na circunvisão o ente intramundano. Na constituição de ser da presença [Dasein] como cura, no anteceder-a-si mesma, reside o “pressupor” mais originário. Porque esse pressupor a si mesmo pertence ao ser da presença [Dasein], “nós” devemos pressupor também a “nós” como algo que se determina pela abertura. Esse “pressupor” radicado no ser da presença [Dasein] não se comporta com os entes não dotados do caráter de presença [Dasein], mas unicamente consigo mesmo. A verdade pressuposta, o “se dá”, pelo qual se deve determinar o seu ser, possui o modo e o sentido de ser da própria presença [Dasein]. Devemos “fazer” a pressuposição de verdade porque ela já se “fez” com o ser do “nós”. STMSC: §44

O que se conquistou e o que se busca na análise preparatória da presença [Dasein]? O que achamos foi a constituição fundamental desse ente tematizado, isto é, o ser-no-mundo, cujas estruturas essenciais estão centradas na abertura. A totalidade desse todo estrutural desvelou-se como cura. Nela encontra-se inserido o ser da presença [Dasein]. A análise desse ser tomou como fio condutor a existência que, numa concepção prévia, foi determinada como essência da presença [Dasein]. Enunciado formalmente, isso significa: enquanto poder-ser que compreende, a presença [Dasein] é o que, sendo, está em JOGO como seu próprio ser. O ente, que desse modo está sendo, é sempre eu mesmo. A elaboração do fenômeno da cura permitiu vislumbrar a constituição concreta da existência, ou seja, em seu nexo igualmente originário com a facticidade e a decadência da presença [Dasein]. STMSC: §45

Como é a visão prévia que, até aqui, orientou o procedimento ontológico? Determinamos a ideia de existência como o poder-ser que compreende, e onde está em JOGO seu próprio ser. Sendo porém sempre meu, o poder-ser é livre para a propriedade e a impropriedade ou ainda para um modo de indiferença. Tomando como ponto de partida a cotidianidade mediana, a interpretação limitou-se à análise da existência indiferente e imprópria. Na verdade, por essa via, foi possível e necessário alcançar uma determinação concreta da existencialidade da existência. Entretanto, a caracterização ontológica da constituição existencial ainda guardou uma falta essencial. Existência significa poder-ser, mas também um poder-ser próprio. Enquanto não se incorporar a estrutura existencial do poder-ser próprio à ideia de existência, a visão prévia, orientadora de uma interpretação existencial, ressentir-se-á de originariedade. STMSC: §45

Se a temporalidade constitui o sentido ontológico originário da presença [Dasein], onde está em JOGO o seu próprio ser, então a cura deve precisar de “tempo” e, assim, contar com “o tempo”. A temporalidade da presença [Dasein] constrói a “contagem do tempo”. O “tempo” nela experimentado é o aspecto fenomenal mais imediato da temporalidade. Dela brota a compreensão cotidiana e vulgar do tempo. E essa se desdobra, formando o conceito tradicional de tempo. STMSC: §45

A possibilidade de substituição fracassa inteiramente quando se trata de substituir a possibilidade de ser, que constitui o chegar-ao-fim da presença [Dasein] e, como tal, lhe confere totalidade. Ninguém pode retirar do outro sua morte. Decerto, pode-se “morrer por outrem”. No entanto, isso quer dizer sempre: sacrificar-se pelo outro “numa coisa e causa determinada”. Esse morrer por…, no entanto, jamais pode significar que a morte do outro lhe tenha sido, de alguma maneira, retirada. Cada presença [Dasein] deve, ela mesma e a cada vez, assumir a sua própria morte. Na medida em que “é”, a morte é, essencialmente e cada vez, minha. E de fato, significa uma possibilidade ontológica singular, pois coloca totalmente em JOGO o ser próprio de cada presença [Dasein]. No morrer, evidencia-se que, ontologicamente, a morte {CH: a remissão da presença [Dasein] à morte; a própria morte = seu advento – ocorrência, o morrer} se constitui pela existência e por ser, cada vez, minha. O morrer não é, de forma alguma, um dado, mas um fenômeno a ser compreendido existencialmente num sentido privilegiado, o qual deve ser delimitado mais de perto. STMSC: §47

A morte é uma possibilidade ontológica que a própria presença [Dasein] sempre tem de assumir. Com a morte, a própria presença [Dasein] é impendente em seu poder-ser mais próprio. Nessa possibilidade, o que está em JOGO para a presença [Dasein] é pura e simplesmente seu ser-no-mundo. Sua morte é a possibilidade de poder não mais ser presença [Dasein]. Se, enquanto essa possibilidade, a presença [Dasein] é, para si mesma, impendente, é porque depende plenamente de seu poder-ser mais próprio. Sendo impendente para si, nela se desfazem todas as remissões para outra presença [Dasein]. Essa possibilidade mais própria e irremissível é, ao mesmo tempo, a mais extrema. Enquanto poder-ser, a presença [Dasein] não é capaz de superar a possibilidade da morte. A morte é, em última instância, a possibilidade da impossibilidade pura e simples de presença [Dasein]. Desse modo, a morte desvela-se como a possibilidade mais própria, irremissível e insuperável. Como tal, ela é um impendente privilegiado. Essa possibilidade existencial funda-se em que a presença [Dasein] está, essencialmente, aberta para si mesma e isso no modo de anteceder-a-si-mesma. Esse momento estrutural da cura possui sua concreção mais originária no ser-para-a-morte. O ser-para-o-fim torna-se, fenomenalmente, mais claro como ser-para essa possibilidade privilegiada da presença [Dasein]. STMSC: §50

Tentação, tranquilização e alienação caracterizam, porém, o modo de ser da decadência. Decadente, o ser-para-a-morte cotidiano é uma insistente fuga dele mesmo. O ser-para-o-fim possui o modo de um escape dele mesmo, que desvirtua, vela e compreende impropriamente. Que a própria presença [Dasein] sempre morre de fato, ou seja, que é num ser para o fim, esse fato fica velado porque transforma-se a morte num caso da morte dos outros, que ocorre todos os dias e que, de todo modo, nos assegura com mais evidência que “ainda se está vivo”. com a fuga decadente da morte, porém, a cotidianidade da presença [Dasein] também atesta que o próprio impessoal, mesmo quando não está explicitamente “pensando na morte”, já está sempre se determinando como ser-para-a-morte. Também na cotidianidade mediana, o que está em JOGO na presença [Dasein] é este poder-se mais próprio, irremissível e insuperável, conquanto seja apenas no modo da ocupação de uma indiferença imperturbável frente à possibilidade mais extrema de sua existência. STMSC: §51

A morte é a possibilidade mais própria da presença [Dasein]. O ser para essa possibilidade abre à presença [Dasein] o seu poder-ser mais próprio, em que sempre está em JOGO o próprio ser da presença [Dasein]. Pode-se então revelar para a presença [Dasein] que, na possibilidade privilegiada de si mesma, ela permanece desgarrada do impessoal, ou seja, antecipando, ela sempre pode dele desgarrar-se. Contudo, somente a compreensão desse “poder” é que desvela que ela está de fato perdida na cotidianidade do impessoalmente-si-mesmo. STMSC: §53

A possibilidade mais própria é irremissível. O antecipar permite à presença [Dasein] compreender que o poder-ser, onde o que está em JOGO é o seu próprio ser, só pode ser assumido por ela mesma. A morte não apenas “pertence” de forma não indiferente à própria presença [Dasein], como reivindica a presença [Dasein] enquanto singular. A irremissibilidade da morte, compreendida no antecipar, singulariza a presença [Dasein] em si mesma. Essa singularização é um modo de se abrir o “pre” [das Da] para a existência. Ela revela que todo ser-junto a uma ocupação e todo ser-com os outros falha quando se trata de seu poder-ser mais próprio. Assim, a presença [Dasein] só pode ser propriamente ela mesma quando ela mesma dá a si essa possibilidade. A falha da ocupação e da preocupação não significa, contudo, de forma alguma, que esses modos da presença [Dasein] se descartem de seu ser próprio em sua propriedade. Enquanto estruturas essenciais da constituição da presença [Dasein], esses modos também pertencem à condição de possibilidade da existência. A presença [Dasein] é propriamente ela mesma, apenas à medida que, enquanto ser-junto a… na ocupação e ser-com… na preocupação, ela se projeta primariamente para o seu poder-ser mais próprio e não para a possibilidade do impessoalmente-si-mesma. O antecipar da possibilidade irremissível obriga o ente que assim antecipa a possibilidade de assumir seu próprio ser a partir de si mesmo e para si mesmo. STMSC: §53

Nada “mundano” pode determinar quem apela em seu modo de ser. Quem apela é a presença [Dasein] em sua estranheza, o ser-no-mundo originariamente lançado enquanto um não sentir-se em casa, o nu e cru “que” (a presença [Dasein] é) no nada do mundo. Quem apela também não é familiar ao impessoalmente-si-mesmo da cotidianidade é algo como uma voz estranha. O que poderia ser mais estranho para o impessoal, perdido no “mundo” das múltiplas ocupações, do que o si-mesmo singularizado na estranheza de si e lançado no nada? O apelo “se” faz e, ao mesmo tempo, nada oferece à escuta do ouvido curioso das ocupações que pudesse ser divulgado e discutido em público. Mas o que a presença [Dasein] deve também relatar a partir da estranheza de seu estar-lançado? O que ainda lhe resta senão o poder-ser de si mesma, desvelado na angústia? Como se faz o apelo senão enquanto um fazer apelo a esse poder-ser, unicamente em JOGO para si? STMSC: §57

O que a consciência testemunha só poderá adquirir plena determinação caso se delimite, com clareza e suficiência, o caráter que deve ter o ouvir que genuinamente corresponde ao apelo. A compreensão própria, aquela que “segue” o apelo, não é um mero acréscimo do fenômeno da consciência, um processo que poderia ou não advir. Só se pode apreender a vivência plena da consciência, partindo da e junto com a compreensão do interpelar. Se a própria presença [Dasein] é em si mesma sempre ao mesmo tempo quem apela e o interpelado, então quando não se dá ouvidos ao apelo, quando não se dá ouvidos a si, está em JOGO um modo determinado de ser da presença [Dasein]. Do ponto de vista existencial, um apelo solto no ar, ao qual “nada se segue”, é uma ficção impossível. No modo de ser da presença [Dasein], o “que nada segue” significa algo positivo. STMSC: §57

E como é esse fundamento lançado? Ele só é projetando-se em possibilidades nas quais está lançado. O si-mesmo, que, como tal, tem de colocar o fundamento de si-mesmo, nunca dele pode-se apoderar, embora, ao existir, tenha de assumir ser-fundamento. Ser o próprio fundamento lançado é o poder-ser em JOGO na cura. STMSC: §58

O apelo é apelo da cura. O ser e estar em dívida constitui o ser que chamamos de cura. Na estranheza, a presença [Dasein] se encontra originariamente reunida consigo mesma. A estranheza coloca esse ente diante de seu nada inconfundível, o qual pertence à possibilidade de seu poder-ser mais próprio. Na medida em que, para a presença [Dasein] enquanto cura, o que está em JOGO é o seu ser, a partir da estranheza, ela faz apelo a si mesma, enquanto faticamente decadente no impessoal, para assumir o seu poder-ser. A interpelação é uma reclamação apeladora: a-pelar a possibilidade de, em existindo, assumir, em si mesmo, o ente-lançado que é; re-clamar para o estar-lançado de modo a se compreender como fundamento do nada a ser assumido na existência. A reclamação apeladora da consciência oferece para a presença [Dasein] a compreensão de que ela, na possibilidade de seu ser, é o fundamento nulo de seu projeto nulo, devendo recuperar-se para si mesma da perdição no impessoal, ou seja, de que ela é e está em dívida. STMSC: §58

Com a decisão conquistamos, agora, a verdade mais originária da presença [Dasein] porque a mais própria. A abertura do pre [das Da] abre, cada vez de modo igualmente originário, a totalidade do ser-no-mundo, ou seja, o mundo, o ser-em e o si-mesmo que esse ente é enquanto “eu sou”. Com a abertura do mundo, sempre já se descobriram entes intramundanos. A descoberta do que está à mão e do que é simplesmente dado funda-se na abertura de mundo; pois a liberação do todo conjuntural de qualquer manual exige um pre-compreender [Vorverstehen] da significância. Compreendendo-a, a presença [Dasein] ocupada numa circunvisão remete para o que vem ao encontro da mão. O compreender da significância como abertura de cada mundo funda-se, assim, no compreender em virtude de… a que está remetida toda descoberta da totalidade conjuntural. O abrigo, a manutenção, o abandono de suas funções são possibilidades constantes e imediatas da presença [Dasein] para as quais esse ente, em que está em JOGO seu ser, sempre já se projetou. Lançada em seu “pre” [das Da], a presença [Dasein] já está sempre faticamente remetida a um “mundo” determinado, o seu. Junto com ele, os projetos são faticamente conduzidos da perdição nas ocupações para o impessoal. Essa perdição pode ser interpelada pelo próprio de cada presença [Dasein], e a interpelação pode ser compreendida no modo da decisão. Essa abertura própria, porém, modifica, de forma igualmente originária, a descoberta do “mundo” e a abertura da co-presença [Dasein] dos outros nela fundada. Quanto a seu “conteúdo”, o “mundo” à mão não se torna um outro mundo, o círculo dos outros não se modifica, embora, agora, o ser-para o que está à mão, no modo de compreender e ocupar-se, e o ser-com da preocupação com os outros sejam determinados a partir de seu poder-ser mais próprio. STMSC: §60

É na existencialidade da presença [Dasein], como um poder-ser no modo da preocupação em ocupações, que se prelineia, ontologicamente, o para quê da decisão. Todavia, enquanto cura, a presença [Dasein] se determina por facticidade e decadência. Aberta em seu “pre” [das Da], ela se mantém, de modo igualmente originário, na verdade e na não-verdade. “Propriamente” isso vale justamente para a decisão enquanto verdade própria. Ela se apropria propriamente da não-verdade. A presença [Dasein] já está e, talvez sempre esteja, na indecisão. Esse termo designa apenas o fenômeno já interpretado como abandono à interpretação predominante do impessoal. A presença [Dasein] é “vivida” como o impessoal-si-mesmo pela ambiguidade do senso comum, característica do público em que ninguém se decide e que, no entanto, já sempre incide. A decisão significa deixar-se receber o apelo a partir da perdição no impessoal. A indecisão do impessoal permanece também predominante, embora não seja capaz de alcançar a existência decidida. Enquanto conceito inverso à decisão em sua compreensão existencial, a indecisão não significa uma qualidade ôntica e psíquica, no sentido de sobrecarga de repressões. O decisivo também continua referido ao impessoal e a seu mundo. A possibilidade disto ser compreendido depende do que se abre na decisão, já que só a decisão propicia à presença [Dasein] a transparência própria. Na decisão está em JOGO o poder-ser mais próprio da presença [Dasein] que, lançado, só pode projetar-se para possibilidades faticamente determinadas. O decisivo não se retira da “realidade” mas descobre o faticamente possível, a tal ponto que o apreende como o poder-ser mais próprio, possível no impessoal. A determinação existencial da presença [Dasein] decidida a cada possibilidade abrange os momentos constitutivos do fenômeno existencial, até agora desconsiderado, que chamamos de situação. STMSC: §60

A indicação formal da ideia de existência orientou-se pela compreensão ontológica subsistente na própria presença [Dasein]. Mesmo sem transparência ontológica, desvelou-se, na verdade, que o ente chamado presença [Dasein] sou sempre eu mesmo e isso enquanto poder-ser, pois o que nele está em JOGO é seu ser esse estar sendo. Não obstante a falta de determinação ontológica suficiente, a presença [Dasein] se compreende como ser-no-mundo. Sendo desse modo, vêm-lhe ao encontro entes que possuem o modo de ser do manual e do ser simplesmente dado. Por mais que a diferença entre existência e realidade esteja longe de um conceito ontológico, por mais que a presença [Dasein] até compreenda, inicialmente, a existência como realidade, ela não apenas não é algo simplesmente dado mas ela já sempre se compreendeu, em qualquer interpretação mítica ou mágica. Pois, do contrário, ela não “viveria” num mito e não se ocuparia, no rito e no culto, de sua magia. A ideia de existência suposta é o prelineamento, existenciariamente não obrigatório, da estrutura formal de toda compreensão de presença [Dasein]. STMSC: §63

Sem dúvida, a interpretação ontológica do “eu” não obtém, de forma alguma, a solução do problema, negando-se a seguir o cotidiano falar eu, mas prelineando a direção em que se deve prosseguir o questionamento. O eu significa o ente que se é, “sendo-no-mundo”. O já-ser-em-um-mundo enquanto ser-junto-a-um-manual-intramundano diz, porém, de modo igualmente originário, anteceder-se. “Eu” significa o ente em que está em JOGO o ser deste ente que ele é. Numa primeira aproximação e na maior parte das vezes, com o “eu” pronuncia-se a cura na fala “fugaz” do eu nas ocupações. O impessoalmente-si-mesmo diz, em alto e bom tom, eu-eu porque, no fundo, ele não é propriamente ele mesmo e escapole de seu poder-ser próprio. Se a constituição ontológica do si-mesmo não se deixa remontar a uma substância-eu e nem a um “sujeito” mas, inversamente, o dizer-eu-eu fugaz e cotidiano é que deve ser compreendido a partir do poder-ser próprio, disso ainda não segue que o si-mesmo seja, então, o fundamento constantemente e simplesmente dado da cura. O si-mesmo só pode ser lido existencialmente no poder-ser si-mesmo em sentido próprio, ou seja, na propriedade do ser da presença [Dasein] como cura. A partir dela é que se esclarece a consistência do si-mesmo enquanto pretensa permanência do sujeito. Mas o fenômeno do poder-ser próprio abre também uma visão para a consistência do si-mesmo no sentido de ter adquirido sustento. A consistência do si-mesmo no duplo sentido da solidez consistente do que permanece é a contra-possibilidade própria da consistência do que não é si-mesmo, na indecisão decadente. Do ponto de vista existencial, a autoconsistência nada mais é do que a decisão antecipadora. A estrutura ontológica desta desvela a existencialidade do si-mesmo que ele, em si-mesmo, é. STMSC: §64

Em si mesma, a presença [Dasein] se abre em sua existência de modo próprio ou impróprio. Existindo, ela se compreende de tal maneira que este compreender não constitui uma pura apreensão mas o ser existenciário do poder-ser fático. O ser que se abriu é o ser de um ente em que está em JOGO o seu ser. O sentido deste ser, isto é, da cura, que lhe possibilita a constituição, constitui, originariamente, o ser do poder-ser. O sentido ontológico da presença [Dasein] não é algo diferente e “fora” de si-mesmo, solto no ar, mas a própria presença [Dasein] que se compreende. O que possibilita o ser da presença [Dasein] é, com isso, sua existência fática? STMSC: §65

O anteceder-a-si-mesma funda-se no porvir. O já-ser-em… anuncia em si o vigor de ter sido. O ser-junto-a encontra sua possibilidade na atualização. O que foi dito não permite, de modo algum, apreender o “ante” de “anteceder” (Vor im Vorweg) e o “já” de “já-ser-em” a partir da compreensão vulgar de tempo. O “ante” (Vor) não significa o “antes” no sentido de “agora-ainda-não, mas depois”; da mesma forma, o “já” não significa um “agora-não-mais, mas antes”. Se estas expressões “ante” (Vor) e “já” possuíssem este significado temporal, que aliás também podem possuir, então com temporalidade da cura estar-se-ia dizendo que cura é alguma coisa que se dá “antes” e “depois”, “ainda não” e “não mais”. Nesse caso, a cura seria concebida como um ente que ocorre e transcorre “no tempo”. O ser de um ente com caráter de presença [Dasein] tornar-se-ia, portanto, algo simplesmente dado. Se isso é impossível, então o significado temporal das expressões mencionadas deve ser outro. “Ante” (Vor) e “anteceder” (vorweg) indicam o porvir que, como tal, os possibilita, de maneira que possa dar-se um ente em que está em JOGO seu poder-ser. O projetar-se “em virtude de si-mesmo”, fundado no porvir, é um caráter essencial da existencialidade. O seu sentido primário é o porvir. STMSC: §65

A interpretação temporal da cotidianidade e da historicidade prende suficientemente a visão ao tempo originário e o faz de tal maneira que o descobre como condição de possibilidade e necessidade da experiência cotidiana do tempo. Primordialmente, a presença [Dasein] se aplica, em si e para si mesma, de forma expressa ou não, como o ente em que está em JOGO o seu ser. Numa primeira aproximação e na maior parte das vezes, a cura é ocupação guiada por uma circunvisão. Aplicando-se em virtude de si mesma, a presença [Dasein] se “desgasta”. Desgastando-se, a presença [Dasein] gasta a si mesma, ou seja, gasta o seu tempo. Gastando tempo, ela conta com ele. A ocupação que conta e controla na circunvisão descobre, de início, o tempo, e leva à elaboração de uma contagem do tempo. Contar com o tempo é constitutivo do ser-no-mundo. Contando com seu tempo, o descobrir da circunvisão nas ocupações deixa vir ao encontro no tempo o manual e o ser simplesmente dado descobertos. O ente intramundano é, então, acessível como “o que está sendo no tempo”. Chamamos de intratemporalidade a determinação temporal dos entes intramundanos. O “tempo” que nela, de início, se pode encontrar onticamente torna-se a base da formação do conceito vulgar e tradicional de tempo. O tempo enquanto intratemporalidade surge, no entanto, de um modo essencial de temporalização da temporalidade originária. Esta origem diz que o tempo “no qual” nasce e perece um ente simplesmente dado é um fenômeno autêntico do tempo e não a exteriorização para o espaço de um “tempo qualitativo”, como pretende fazer crer a interpretação do tempo feita por Bergson, que, do ponto de vista ontológico, é inteiramente insuficiente e indeterminada. STMSC: §66

Por outro lado, a possibilidade de se deixar espantar por alguma coisa funda-se em que a atualização que aguarda um manual aguarda um outro que se acha num possível nexo conjuntural com aquele. É o não aguardar da atualização perdida que abre o espaço “horizontal” de JOGO em que o espantoso pode sobrevir à presença [Dasein]. STMSC: §69

Porque, enquanto temporalidade, a presença [Dasein] é, em seu ser, ekstática e horizontal, ela pode, fática e constantemente, trazer consigo um espaço arrumado. Em consideração a este espaço ekstaticamente tomado, o aqui de cada posto e situação fática nunca pode significar uma posição no espaço. Significa, porém, o espaço de JOGO que se abre no direcionamento e distanciamento da periferia da totalidade instrumental a ser logo ocupada. STMSC: §70

Reflexões complicadas, poder-se-ia dizer. Ninguém nega que, no fundo, a presença [Dasein] humana seja o “sujeito” primário da história. Isto é explicitado de forma suficientemente clara pelo conceito vulgar de história. Todavia, a tese: “a presença [Dasein] é histórica” não significa apenas o fato ôntico de que o homem representa um “átomo” mais ou menos importante no fluxo da história do mundo, sendo a bola deste JOGO de circunstâncias e acontecimentos. A tese coloca o seguinte problema: Em que medida e em quais condições ontológicas, a historicidade, enquanto constituição essencial, pertence à subjetividade do sujeito “histórico”? STMSC: §73

A presença [Dasein] existe como um ente em que está em JOGO seu próprio ser. Em sua essência precedendo a si mesma, ela já se projetou para o seu poder-ser, antes de qualquer consideração posterior de si mesma. É como lançada que ela se desvela no projeto. Lançada, ela se entrega ao “mundo” e decai, ocupando-se dele. Enquanto cura, ou seja, existindo na unidade do projeto já lançado na decadência, ela é o ente que se abriu como pre [das Da]. Sendo-com os outros, ela se mantém numa interpretação mediana, que se articula na fala e se pronuncia na linguagem. O ser-no-mundo sempre já se pronunciou e, enquanto ser junto aos entes que vêm ao encontro dentro do mundo, ele se anuncia, constantemente, no dizer e na discussão daquilo de que se ocupa. A ocupação, comumente compreendida a partir de uma circunvisão, funda-se na temporalidade e no modo de uma atualização que aguarda e retém. Nas ocupações em que desconta, planeja, providencia e previne, sempre já se diz, de forma perceptível ou não: “então”isso deve acontecer, “antes”disso se concluir, “agora” vai se recuperar o que “outrora” malogrou e fracassou. STMSC: §79