Jocelyn Benoist (2013) – percepção e as ciências cognitivas

(…) A explosão das ciências cognitivas e da filosofia do espírito em geral foi acompanhada de uma verdadeira reavaliação da percepção e apoiou-se fortemente nela. O fregeanismo tinha legado à filosofia analítica um paradigma linguístico. O abandono progressivo deste paradigma levou a que a percepção fosse cada vez mais tomada em consideração como fonte sui generis de conhecimento do mundo e de acesso ao mundo em geral 1. É esta a questão que está em causa em debates que se tornaram centrais na filosofia da mente atual, como o que diz respeito à existência ou não existência de “conteúdos não conceituais”.

Mas quanto mais conhecia estes debates, mais me chamava a atenção para uma coisa: no fundo, a percepção nunca foi verdadeiramente discutida. A referência a ela permanecia essencialmente fantasmagórica e profundamente abstrata, mesmo quando se tratava de proclamar a “finesse de sua granularidade 2”.

É certamente feliz que uma certa filosofia esteja a redescobrir que a percepção pode ser uma verdadeira fonte de conhecimento. No entanto, o mais preocupante pode ser o fato de este ponto nunca ter sido posto em causa. Poderíamos ser tentados a ver este ceticismo em relação à percepção como um mero tigre de papel filosófico.

No entanto, o debate torna-se mais claro se tivermos em conta a pressão exercida na filosofia contemporânea, em particular na inglesa, por um certo tipo de naturalismo que, tendo como pano de fundo o fisicalismo, lança uma forma de dúvida sobre o mundo tal como os nossos sentidos supostamente no-lo apresentam. Por outro lado, parece ter chegado o momento de a filosofia analítica fazer uma espécie de “viragem fenomenológica”, reabilitando e reivindicando assim a percepção.

Se se trata de sublinhar a importância da percepção na nossa visão do mundo e naquilo a que teremos de chamar a nossa ontologia, não podemos deixar de nos congratular com essa viragem. De um ponto de vista gramatical, parece ser inteiramente salutar, uma vez que tantos conceitos se tornam opacos, ou pelo menos perdem uma ou outra das suas dimensões constitutivas, se a sua ancoragem perceptiva for ignorada.

Por outro lado, quando lemos um panfleto consagrado à “percepção como capacidade de conhecer”3, não podemos deixar de ficar impressionados com um certo tipo de miséria teórica. Trata-se precisamente do teoricismo que consiste em confundir a percepção com o conhecimento perceptivo — isto é, o conhecimento baseado na percepção ou que mobiliza essencialmente uma referência a ela — e em nada dizer, no fundo, sobre a percepção.

Um tal título levanta já um problema de gramática, pois não é de todo certo que faça sentido tratar a percepção como uma “capacidade”. Capacidade, de fato, por oposição a quê? O que seria não ter percepção? Em vez de uma capacidade, gostaríamos de chamar à percepção um fato: um fato que nasceu com cada um de nós e que só morrerá com cada um de nós, com todos os seus caprichos, incluindo o sono e os comas. Num certo sentido, é certamente verdade que fazemos todo o tipo de coisas na percepção, e é também verdade que todo o tipo de coisas se faz “em nós sem nós”, como teria dito muito bem um filósofo clássico. Mas, de acordo com uma outra dimensão muito essencial do conceito de “percepção”, a percepção não é algo que se faz, mas algo que é. Um dos nomes próprios da realidade, ou de um dos aspectos da realidade — aquilo a que acabaremos por chamar “o sensível”.

  1. La référence linguistique, du reste, n’empêchait pas Frege, fondamentalement philosophe de l’esprit plus que du langage, d’avoir une riche et intéressante philosophie de la perception. Voir Jacques Bouveresse, Langage, perception et réalité, Nîmes, Jacqueline Chambon, 1995, t. I, chap. iv. Toutefois, celle-ci consistait à déléguer à des entités telles que celles qui peuvent être linguistiquement exprimées le rôle du « contenu » dans la perception.[↩]
  2. Sur la « finesse de grain » de la perception, voir Gareth Evans, The Varieties of Reference, Oxford, Clarendon Press, 1982, p. 229.[↩]
  3. John McDowell, Perception as a Capacity for Knowledge, Milwaukee, Marquette University Press, 2011.[↩]

Heidegger – Fenomenologia e Hermenêutica

Responsáveis: João e Murilo Cardoso de Castro

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