Ingarden (1979:376-378) – vida

A palavra «vida» significa sobretudo duas coisas: a totalidade dos acontecimentos de um ser vivo do princípio até à sua morte e, em segundo lugar, o «processo» do devir destes mesmos acontecimentos. Quando tomamos a palavra «vida» neste segundo sentido chama-nos sobretudo a atenção o facto de todo o ser que «vive» durar como um e o mesmo indivíduo um certo tempo. Enquanto ele simplesmente existir não pode haver (377) nenhuma fase de interrupção da sua vida. Mas também em sentido inverso: se a vida de um indivíduo cessa então esse indivíduo cessa também de existir. A vida, neste sentido, é um modo especial do ser de indivíduos de determinada natureza. A duração contínua da vida não chega, porém, para a caracterizar exaustivamente dado que também coisas «mortas» duram um certo tempo e continuamente. Tem, pois, de se acrescentar ainda um segundo elemento: cada ser vivo transforma-se constantemente durante a sua vida (no primeiro sentido da palavra). Pode perguntar-se se este transformar-se deve estender-se por continuidade a toda a vida (como alguns investigadores afirmam, p. ex. Bergson). Ora este transformar-se como tal não é característico da vida. Tem de haver um sistema especial de transformações que apesar de todas as contingências em que vive um determinado indivíduo se mantém como típico em todos os seres vivos e determina a «vida» de um indivíduo (no primeiro sentido) como um todo típico e unitário. Cada ser vivo possui um sistema determinado de transformações em que este ser se «desenvolve» e que levam a uma fase de culminação em que aquilo que anteriormente apenas estava em germe e implicado numa especial potencialidade 1 actual se «desenvolve» no que o ser vivo respectivo deve «propriamente» ser. A esta fase de culminação segue-se de novo um sistema de transformações características em que se processa um retroceder mais lento ou mais rápido (ou mesmo abrupto), um decair até ao momento da incapacidade de vida, até à «morte». Atravessar estas fases características de transformação parece-nos ser o momento essencial da vida. Sem dúvida que diferentes circunstâncias em que se desenvolve um ser vivo podem impedir que ele chegue à sua fase culminante, por assim dizer prescrita, de modo que ele ainda imaturo definha precocemente e tende para a morte, como é também possível que a vida de um indivíduo seja abruptamente «interrompida» por circunstâncias exteriores. Mas o facto de aqui, em geral, se poder falar com direito de um «período de maturidade» ou de um desenvolvimento por determinadas circunstâncias diferente daquele que «seria propriamente de esperar» mostra do melhor modo possível a exactidão desta concepção de vida. E ainda mais: se aquilo que vive tem necessariamente de ser um ser psíquico ou mesmo (378) até consciente pode pelo menos ser posto flagrantemente em dúvida. Quer seja psíquico, quer não, cada ser vivo tem um modo activo de reacção que dele emana às forças que sobre ele actuam (ou pelo menos parece tê-lo). Este modo de reacção é inteiramente diferente da maneira como as coisas (mortas) se «submetem passivamente» às suas alterações 2. Os momentos essenciais da vida por nós indicados não chegam, sem dúvida, para esgotar a sua essência. Mas o que dissemos é o bastante para o nosso objectivo.

  1. É de recordar aqui a frase paradoxalmente formulada de M. Heidegger: «Existir é a sua própria possibilidade.» (Cf. Sein und Zeit, pp. 42 e 43.)[]
  2. Cf. M. Scheler, Über die Stellung des Menschen im Kosmos, 1928.[]