Na reflexão natural que se efetua na vida corrente, mas também em psicologia (portanto, na experiência psicológica dos meus próprios estados psíquicos), somos colocados no terreno do mundo, do mundo posto como existente. É assim que enunciamos na vida corrente: «Vejo além uma casa», ou ainda: «Lembro-me de ter ouvido esta melodia», e assim de seguida. Pelo contrário, na reflexão fenomenológica transcendental, deixamos este terreno, praticando a epoche universal quanto à existência ou não existência do mundo. Pode-se dizer que a experiência assim modificada, a experiência transcendental, consiste então nisto: examinamos o cogito transcendentalmente reduzido e descrevemo-lo sem efetuar, além disso, a posição de existência natural implicada na percepção espontaneamente realizada (ou em qualquer outro cogito), posição de existência que o eu «natural» tinha, com efeito, espontaneamente efetuado. Um estado essencialmente diferente vem assim substituir, verdade seja, o estado primitivo e pode-se dizer, nesse sentido, que a reflexão altera o estado primitivo. Mas isto é verdade de cada reflexão, portanto também da reflexão natural. A alteração é essencial, pois o estado vivido, ingênuo primeiramente, perde a sua «espontaneidade» primitiva precisamente pelo fato de a reflexão tomar por objeto o que primeiramente era estado e não objeto. A reflexão tem como tarefa não reproduzir uma segunda vez o estado primitivo, mas observá-lo e explicitar-lhe o conteúdo. A passagem a esta atitude reflexiva dá naturalmente origem a um novo estado intencional, estado que, na singularidade intencional que lhe é própria de «se relacionar ao estado anterior», torna consciente, e até evidente, não um outro estado, mas este estado mesmo. E é assim somente que se torna possível esta experiência descritiva, à qual devemos todo o saber e todo o conhecimento concebíveis no que concerne a nossa vida intencional. E igualmente para a reflexão fenomenológica transcendental. O fato de o eu reflexivo não efetuar a afirmação existencial da percepção espontânea da casa não muda nada ao fato desta experiência reflexiva ser experiência da percepção «da casa», com todos os elementos que lhe eram e continuam a ser próprios. Ora, entre esses elementos, figuram, no nosso exemplo, quer os elementos da própria percepção enquanto fluxo vivido, quer os da casa percepcionada enquanto tal. Há, realmente, de um lado a posição existencial própria à percepção normal (isto é, a certeza inerente à percepção), tal como, do lado da casa que aparece, há, realmente, o carácter da «existência» pura e simples. A epoche, a abstenção do eu na atitude fenomenológica, é seu assunto próprio, não assunto da percepção que ele observa em e pela reflexão. Ela mesma é, de resto, acessível a uma reflexão deste gênero, e só por ela sabemos qualquer coisa.
O que aqui acontece pode também descrever-se da seguinte maneira se dizemos do eu, que percepciona o «mundo» e nele vive muito naturalmente, que está interessado no mundo, então teremos, na atitude fenomenológica modificada, uma reduplicação do eu; por cima do eu ingenuamente interessado no mundo estabelecer-se-á, como espectador desinteressado, o eu fenomenológico. Esta reduplicação do eu é, por sua vez, acessível a uma nova reflexão, reflexão que, enquanto transcendental, exigirá ainda uma vez a atitude «desinteressada do espectador»; preocupado apenas com ver e descrever de maneira adequada.
{(Meditações Cartesianas, trad. G. Peiffer e E. Levinas, J. Vrin, 1947, pp. 28-30)}