Husserl (IFP1:203-205) – Vivido no noético e no noema

Graças a seus momentos noéticos, todo vivido intencional é justamente vivido noético; é da essência dele guardar em si algo como um “sentido” e, eventualmente, um sentido múltiplo, é de sua essência efetuar, com base nessas doações de sentido e junto com elas, outras operações que se tornam justamente “plenas de sentido” por intermédio delas. São exemplos de tais momentos noéticos: os direcionamentos do olhar do eu puro para o objeto “visado” por ele em virtude da doação de sentido, para aquele objeto que “não lhe sai do sentido”;1 a apreensão e conservação desse objeto, enquanto o olhar se dirige para outros objetos que entram no “visado”; as operações de explicitar, relacionar, abarcar, e de diversas tomadas de posição como crer, supor, valorar etc. Tudo isso pode ser encontrado nos respectivos vividos, mesmo que sejam construídos de modo diferente e sejam em si variáveis. Conquanto essa série de momentos exemplares aponte para componentes reais dos vividos, ela também aponta para componentes não-reais, a saber, mediante aquilo que se encontra sob a designação de “sentido”.

Aos múltiplos dados do conteúdo real, noético, corresponde uma multiplicidade de dados, mostráveis em intuição pura efetiva, num “conteúdo noemático” correlativo ou, resumidamente, no unoema” — termos que usaremos constantemente a partir de agora.

(204) A percepção, por exemplo, tem o seu noema, tem, no nível mais baixo, o seu sentido perceptivo,2 isto é, o percebido como tal. Da mesma maneirai cada recordação tem o seu recordado como tal, justamente como seu, precisamente como aquilo que nela é “visado”, aquilo de que nela se é “consciente”; o julgar tem, por sua vez, o julgado enquanto tal, o prazer, aquilo que apraz enquanto tal etc. Em tudo é preciso tomar o correlato noemátíco, que aqui se chama “sentido” (em significação bem ampliada), exatamente assim como ele está contido de maneira “imanente” no vivido de percepção, de julgamento, de prazer etc., isto é, tal como nos é oferecido por ele, se interrogamos puramente esse vivido mesmo.

A maneira como entendemos tudo isso será trazida à plena clareza mediante uma análise exemplar (que pretendemos efetuar em intuição pura).

Suponhamos que estejamos olhando com satisfação para uma macieira em flor num jardim, para o gramado com seu verde vicejante etc. Manifestamente, a percepção e a satisfação que a acompanha não são o imediatamente percebido e aprazível. Na orientação natural, a macieira é para nós um existente na efetividade espacial transcendente, e a percepção, assim como a satisfação, um estado psíquico pertencente a nós homens reais. Entre um real e outro, entre o homem real ou percepção real e a macieira real, subsistem relações reais. Em certos casos, se diz o seguinte acerca de tal situação de vivido: a percepção é “mera alucinação”, o percebido, essa macieira que está diante de nós não existe na realidade “efetiva”. A relação real antes visada como subsistindo realmente é agora interrompida. Resta apenas a percepção, não existindo nada de efetivo ali ao qual ela se refira.

Passemos agora à orientação fenomenológica. O mundo transcendente ganha seus “parênteses”, praticamos epoche em relação a seu ser efetivo. Perguntamos então o que se deve encontrar por essência no complexo de vividos noéticos daquela percepção e daquela apreciação prazerosa. A subsistência efetiva da relação real entre percepção e percebido é posta fora de circuito, junto com todo o mundo físico e psíquico; e, no entanto, resta manifestamente uma relação entre percepção e percebido (assim como entre prazer e aquilo que apraz), uma relação que entra na condição de dado eidético em “pura imanência”, a saber, puramente com base no vivido de percepção e de prazer fenomenologicamente reduzido, tal como se insere no (205) fluxo transcendental de vividos. É justamente essa situação, a situação fenomenológica pura, que agora deve nos ocupar. Pode ser que a fenomenologia tenha algo, e talvez muito, a dizer a respeito das alucinações, das ilusões e, em geral, das percepções enganosas: é evidente, porém, que, assumindo o papel que desempenham na orientação natural, estas estão sujeitas à exclusão fenomenológica de circuito. Aqui nós não temos de interrogar a percepção, nem tampouco uma progressão qualquer do encadeamento perceptivo (como se considerássemos ambulando 3 a árvore em flor) com questões do tipo: há algo “na” efetividade que lhe corresponda? Essa efetividade tética não existe judicativamente para nós. Todavia, tudo permanece, por assim dizer, como antes. Também o vivido perceptivo fenomenologicamente reduzido é percepção desta “macieira em flor, neste jardim etc.”, e a satisfação fenomenologicamente reduzida é igualmente satisfação com eles mesmos. A árvore não sofreu a mais leve nuance em nenhum de seus momentos, qualidades, caracteres, com os quais ela aparecia naquela percepção, com os quais era “bela”, “estimulante” “naquela” satisfação etc.

  1. “Para aquele objeto que ‘não lhe sai do sentido’”: Husserl coloca aqui entre aspas as palavras im Sinne liegt, expressão idiomática cujo sentido aproximado é “algo não me sai do pensamento”, “penso sempre em algo”. Literalmente, porém, a expressão quer dizer aquele objeto “contido no sentido”. (NT)[]
  2. Sobre o “sentido que preenche”, cf. Investigações Lógicas II.1, Primeira Investigação, § 14, p. 50 (além disso, Sexta Investigação, § 55, p. 642, sobre o “sentido de percepção”); para o que se segue, cf. a Quinta Investigação, § 20 sobre a “matéria” de um ato; e igualmente, Sexta Investigação, §§ 25 a 29 e passim.[]
  3. “Dando a volta ao redor”, em latim no original. (NT)[]