Husserl – A redução e o resíduo fenomenológico

É claro agora que, de fato, ao contrário da atitude teórica natural cujo correlato é o mundo, uma nova atitude deve ser possível, a qual, mesmo quando toda a natureza física foi posta fora de circuito, deixa subsistir algo, a saber todo o campo da consciência absoluta. Portanto, em lugar de viver ingenuamente na experiência e de submeter a ordem empírica, a natureza transcendente, a uma investigação teórica, operemos a «redução fenomenológica»1. Por outras palavras, em vez de operar de maneira ingênua, com as suas teses transcendentes, os atos que dependem da consciência constituinte da natureza e de nos deixar determinar, pelas motivações que neles estão incluídas, a posições de transcendência sempre novas, ponhamos todas essas teses «fora de jogo»; não tomamos mais parte nelas; dirigimos o nosso olhar de maneira a poder captar e estudar teoricamente a consciência pura no seu ser próprio absoluto. É, portanto, ela que fica como o «resíduo fenomenológico» buscado; ela permanece, ainda que tenhamos posto «fora de circuito» todo o mundo, com todas as coisas, os seres vivos, os homens, nós mesmos incluídos. Não perdemos, propriamente, nada, mas ganhamos a totalidade do ser absoluto, o qual, se o entendemos corretamente, esconde em ti todas as transcendências do mundo, as «constitui» no seu seio 2.

Elucidemos este ponto em pormenor. Guardemos a atitude natural e operemos 3 pura e simplesmente todos os atos graças aos quais o mundo está aí para nós. Vivemos ingenuamente no percepcionar e no experimentar, nesses atos téticos no seio dos quais nos aparecem unidades de coisa, e não somente nos aparecem como nos são dados com a marca do «presente», do «real». Passando às ciências da natureza, operemos atos de pensamento regulados segundo a lógica experimental, no seio dos quais estas realidades, tomadas como se dão, são determinadas em termos de pensamento, no seio dos quais igualmente inferimos novas transcendências tomando por fundamento essas transcendências determinadas pela experiência direta. Coloquemo-nos, agora, na atitude fenomenológica: interceptemos no seu princípio geral a operação de todas estas teses cogitativas; isto é, «ponhamos entre parêntesis» as que foram operadas e «não nos associemos mais a essas teses» para as novas investigações; em lugar de vivermos nelas, de as operar, operemos atos de reflexão dirigidos para elas; captá-las-emos então elas mesmas como o ser absoluto que são. Vivemos doravante exclusivamente nestes atos de segundo grau cujo dado é o campo infinito dos vividos absolutos — o campo fundamental da fenomenologia.

{[HUSSERL, E. Idées directrices pour une phénoménologie. Tradução: Paul Ricoeur. Paris: Gallimard, 1950, p. 165-167]}

  1. Confrontation avec la réduction phénoménologique : le renversement des rapports entre conscience et réalité rend possible l’ἐποχή. En quoi sens ? Comprendre que le monde est le corrélât de l’attitude naturelle c’est être prêt à suspendre la croyance qui soutient cette attitude. En ce sens, l’hypothèse de la destruction du monde est un des chemins en direction de l’ἐποχή : imaginer le non-monde, c’est déjà nous soustraire au prestige de l’ordre qui est là. Mais l’ἐποχή est plus que cette subordination de la réalité à la conscience, c’est le passage au « je » spectateur qui ne coopère plus à la croyance ; à la compréhension de l’attitude naturelle sur son propre terrain, elle ajoute un geste libre de retrait ; cf. p. 94, n. 3.[]
  2. Cette phrase capitale marque le tournant de la réduction,, qui laisse un « résidu », à la constitution qui· retient « en » soi ce qu’elle parait exclure « de » soi. La réduction demeurait restreinte tant qu’elle « séparait la conscience » (chap. Il) ; en lui) « rapportant » la réalité (chap. III), elle devient indiscernable de la constitution transcendantale qui découvre le sens du monde.[]
  3. La répétition du verbe vollziehen marque le passage à la phénoménologie transcendantale ; c’est elle qui fait apparaître l’attitude naturelle comme une opération que nous sommes libres de ne pas faire. — La présence-là est l’horizon de notre «vie enfoncée dans le monde » (hineinleben) ; mais vivre enfoncé dans… c’est opérer sans le savoir la position du monde. Réduire l’inscience de l’attitude naturelle, c’est cela l’ἐποχή. Dès que je connais l’attitude naturelle comme opération, je suis la conscience absolue qui non seulement la réduit, mais la constitue.[]