Eudoro de Sousa – horizonte

1. Conhecimentos geográficos e astronômicos, acumulados e sedimentados durante mais de vinte séculos de reflexão filosófica e investigação científica, já não nos permitem a vivência primordial do horizonte: por de mais sabemos que a esfera é o estereograma da realidade que se ocultava sob a aparência dos distantes confins do céu e da terra. Mas teriam ficado definitivamente relegados para o domínio de uma curiosidade ociosa todos os esforços por relembrar ou reviver os tempos em que o horizonte aparente era aparição de um limitante real, sempre ao alcance dos nossos olhos, nunca acessível aos nossos passos? Não o cremos. Pois sendo certo não haver propositado olvido ou ignorância deliberada, que nos consinta o regresso àquela vivência primordial, tão certo é que ela se renova, transfigurada, ou transposta para mais altas cotas de conhecimento: e tanto mais que, ao nível da imaginação mítica ou da especulação metafísica, já não importa a ingenuidade com que fora interpretada a experiência natural. Aliás, uma visão ingênua do horizonte, inteiramente destituída de conotações mito-poéticas, é pressuposto gratuito; e quem se aventure a prescrutar o mais longínquo do passado e o mais profundo da consciência, sempre ganhará, no lance, o gosto indelével de um mistério fascinante. Pelo menos, não há dúvida que, pelos caminhos da história, ainda se nos depara uma Grécia bem exposta ao fascínio dos lugares onde a terra acaba: de Homero a Eurípides, os poetas nos falam, com flagrante veracidade e peculiar objectividade estéticas, de um circundante do horizonte extremo. E havemos de verificar como, por força avassaladora do mito, fonte inestancável de imaginação divinatória e prospectiva, essa verdade e (31) essa objectividade se mantiveram ilesas, mesmo sob o impacto da grande descoberta, pitagórica ou eleática: precioso indício de que jamais o horizonte mítico foi simplesmente o lugar geométrico de todos os pontos em que o céu parece unir-se à terra.

2. Que exista a circunferência do horizonte, como lugar geométrico de todos os pontos em que o céu parece unir-se à terra, não surpreende nem inquieta os nossos hábitos mentais. A esfericidade do planeta dá suficiente razão à aparência; explica facilmente como os antigos poderíam ter concebido o universo em termos de uma terra plana, coberta pela abóbada do céu, e como, na singeleza deste modelo, o horizonte se reduz à intersecção circular dos dois grandes componentes cósmicos. Surpresa e inquietação vêm depois, ao verificarmos que a redução geométrica deixou intacta e intangível toda a mitologia do horizonte-símbolo, queremos dizer, daquele que é realmente o que parece: a maravilhosa conjunção do céu e da terra. É claro que poucos se resignam a perder a razão no fundo de seus sentimentos perante o insólito. Mas, para racionalizar a persistência de uma diacosmese supostamente ultrapassada, pouco valem os argumentos que decorrem de situar a verdade só para o lado da ciência, condescendendo, embora, com o erro dos poetas, por falsa ou autêntica afeição à beleza. Não precisamos deter-nos aqui, rebuscando o já tão revolvido campo problemático da verdade ou não verdade da poesia, nem desviar caminho, em demanda de soluções inéditas. Basta perguntar, com toda a seriedade que o tema nos merece, se o horizonte geográfico podia substituir o horizonte mítico; ou, equivalentemente, se um e outro correspondem ao mesmo interesse humano pela realidade instante e circunstante. Ora, se a única resposta que obviamente se impõe é a efectividade histórica da substituição, já não havendo na terra lugar em que a mesma terra acaba, contíguo a qualquer lugar em que o céu começa, também não é fácil recusar-nos à mal esclarecida certeza de que o horizonte mítico não provém do mesmo nível de consciência, que deu origem ao horizonte geográfico e, por conseguinte, que de um para outro não vai só a distância que separa o erro da verdade.

3. A vivência primordial do horizonte é susceptível de transposições e encontramo-la efectivamente transposta, por exemplo mais notado, onde quer que a cosmologia não se arreceie de encaminhar-se até onde, por via racional, esbarra com a irracionalidade que circunda toda a imagem científica do universo. Perguntar agora pelo que existe além dos confins do mundo, como outrora se procurava saber (32) o que há para além de onde a terra acaba, só teria sentido razoável a partir de interesses que precedem e excedem o âmbito a que a ciência física se recolheu, por exigência de rigor. Admitamo-lo. Mas não como irrefutável argumento contra a legitimidade da pergunta, embora tenhamos de reconhecer-lhe a desajeitada formulação e, sobretudo, o desajuste ao profundo anseio do perguntar. Na verdade, desde a primeira transposição mítica até à derradeira transposição metafísica da incógnita e talvez incognoscível vivência que situamos no início da história e no limiar da consciência, o fascinante mistério do horizonte sempre se nos revela em sua enorme espessura existencial. O presente ensaio não fará senão desentranhar o pleno significado desta última proposição, explorando o vasto campo de um referencial concreto, bem cultivado pela filologia clássica, especialmente onde nele amadurecem os frutos de todos os esforços indagadores das origens do pensamento filosófico. Rodeios e repetições são necessários e inevitáveis. Mas deixamos consignado o propósito de jamais perder de vista o tema a que nos apegamos por indelineado pressentimento de que, percorrendo-lhe o inteiro contorno, em algum lugar nos defrontaremos com uma figura coerente do que quer se possa haver por originário.

Excertos de

Heidegger – Fenomenologia e Hermenêutica

Responsáveis: João e Murilo Cardoso de Castro

Twenty Twenty-Five

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